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Incidência imediata dos pisos em saúde e educação após revogação do teto
Ingo Wolfgang Sarlet
25/10/2023
Há cerca de duas semanas os pisos federais em saúde e educação voltaram a ser regidos pelos artigos 198 e 212 do texto permanente da Constituição. Isso ocorre por força do artigo 9º da Emenda nº 126, de 21 de dezembro de 2022, que determinou a imediata revogação do artigo 110 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (inserido sob o marco do Teto de Despesas Primárias), a partir da sanção da Lei Complementar nº 200, de 30 de agosto de 2023 (mais conhecida como Novo Arcabouço Fiscal).
Ao invés da mera garantia de correção monetária do quanto aplicado no exercício anterior, foi retomado o dever de a União aplicar em Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS) o patamar mínimo de 15% da sua receita corrente líquida (RCL), à luz do artigo 198 da CF. Em igual medida, foi restabelecido o dever de aplicação mínima em Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE) de montante equivalente a 18% da receita de impostos da União, conforme prescreve o artigo 212 da CF/1988.
Destaca-se que o artigo 110 do ADCT não havia revogado os pisos em saúde em educação fixados pelos artigos 198 e 212 da Constituição, apenas suspendera sua incidência no período de 2018 a 2036. Uma vez revogada a regra do teto de despesas primárias, voltou a valer imediatamente o texto permanente da CF, donde resta afastada qualquer suspeita apressada de que haveria um indevido efeito repristinatório nessa seara.
Possibilidade de transição de regime fiscal da execução orçamentária em andamento
Muito embora a sanção da LC 200/23 tenha revogado imediatamente o Teto, o Executivo federal tem suscitado a possibilidade de consultar o Tribunal de Contas da União (TCU) acerca da transição de regime fiscal da execução orçamentária em andamento, em busca da postergação da incidência dos artigos 198 e 212 da CF para 2024.
Quem defende tal adiamento alega que o artigo 12 da LC 200/23 teria estendido os limites individualizados do teto até o final de 2023 e que haveria suposta dificuldade de o governo federal requantificar as dotações em ASPS e MDE no último quadrimestre do ano, diante do incremento da arrecadação verificada ao longo do presente exercício. Como os pisos são porcentuais incidentes sobre a receita, eles tenderiam a reduzir a margem fiscal disponível para as demais políticas públicas.
A bem da verdade, ambas as argumentações são frágeis, seja porque pretendem subordinar os artigos 198 e 212 da CF a regras infraconstitucionais, seja porque contingentemente relativizam apenas para a União o regime jurídico dos pisos em saúde e educação. Todos os entes da federação são obrigados a acomodar as demais políticas públicas ao cumprimento dos pisos, monitorando eventuais ajustes na estimativa da arrecadação para que sejam incorporados, dinâmica e periodicamente, no fluxo das despesas sanitárias e educacionais — embora exista o risco de que os demais entes federados decidam seguir o precedente da União, o que seria juridicamente lastimável. Esse, aliás, é o comando expresso do parágrafo único do artigo 23 da Lei Complementar nº 141/2012 em relação ao piso em ASPS, bem como do §4º do artigo 69 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em relação ao piso em MDE.
Tampouco cabe — na atual transição de regime dos pisos (com a revogação artigo 110 do ADCT e a retomada dos artigos 198 e 212 da CF) — invocar soluções aplicadas em transições anteriores. O presente contexto se distingue do quanto apreciado no Acórdão TCU nº 1.048/2018-Plenário, onde foi analisada a transição de regime do piso federal em saúde, até então regido pela Emenda nº 86/15, para o piso determinado pelo Teto. Naquela ocasião, o TCU debateu algo específico e datado. Discutiu-se se a revogação do artigo 2º da Emenda 86, empreendida pelo artigo 3º da Emenda 95 (Teto) produziria efeitos imediatos e impactaria a execução orçamentária dos últimos 15 dias de 2016. O arranjo dado pela Emenda nº 86/15 foi trocado pela garantia de mera correção monetária ao longo da vigência vintenária do “Novo Regime Fiscal” da Emenda 95 (Teto de Despesas Primárias).
O referido Acórdão do TCU sedimentou a aplicação do piso federal em saúde de 13,2% da RCL em 2016 e 15% da RCL em 2017, de modo que, a partir de 2018, passaria a haver correção monetária sobre a base de cálculo de 2017 e assim sucessivamente em relação aos exercícios posteriores, enquanto o Teto vigorou. Tal entendimento do TCU acabou sendo validado nos autos da ADI 5.595, onde, em decisão apertada do STF (6 votos a 5), foi negada a procedência do pleito de inconstitucionalidade dos arts. 2º e 3º da EC nº 86.
Não se pode confundir o cenário de 2023 com o de 2016. Agora não há qualquer dúvida razoável a ser esclarecida acerca do imediato restabelecimento dos gastos mínimos fixados em bases proporcionais à RCL federal já durante o exercício financeiro em curso, pois é patente a revogação do teto de despesas primárias e a plena vigência dos pisos de saúde e educação previstos anteriormente na CF, embora faltem quatro meses para o encerramento do exercício.
Tanto pelo prisma jurídico, quanto sob o foco estritamente fiscal, a implícita proposta de conferir ultratividade ao artigo 110 do ADCT – mediante mera interpretação administrativa e, portanto, sem a promulgação de uma nova emenda constitucional – fere a Separação de Poderes e ofende a CF. Nesse sentido, deve-se observar a decisão do Supremo Tribunal Federal ao declarar a inconstitucionalidade da Súmula 277 do TST e das decisões judiciais que reconheciam o princípio da ultratividade de acordos e convenções coletivas no âmbito trabalhista.
Não cabe ao Executivo federal realizar tal fuga hermenêutica para que seja adiada para 2024 a transição determinada pelo constituinte derivado no final de 2022. Para ocorrer assim, seria necessário que constasse da lei complementar prevista no artigo 9º da Emenda 126, que foi editada em 30 de agosto passado — na qual não consta tal diferimento. Caso o Congresso quisesse diferir a incidência dos pisos em saúde e educação como proporção da arrecadação da União para o próximo exercício financeiro, teria indicado tal opção de forma literal no bojo da Emenda nº 126/22; bem como teria claramente conferido ultratividade ao artigo 110 do ADCT, como fez com os limites individuais de despesa primária na forma do art. 12 da LC nº 200/23.
A revogação da regra transitória que previa mera correção monetária dos deveres de gasto mínimo em saúde e educação opera efeitos imediatos e prospectivos, restabelecendo imediatamente a plena vigência dos pisos inscritos no texto permanente da CF/1988.
Obedecendo os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, tão caros ao STF, espera-se que o restabelecimento dos pisos conforme o texto permanente da CF ocorra imediatamente após a sanção da LC nº 200, relativamente ao último quadrimestre do ano de 2023. Descabido será adiar a incidência dos artigos 198 e 212 da Constituição para 2024, tampouco é possível propor que o cômputo dos pisos como porcentuais da receita federal retroaja a janeiro de 2023. Tal compreensão parte, dentre outras normas, do artigo 2º da Lindb.
O fato é que o orçamento de 2023 foi aprovado pelo Congresso ocupando toda a grande margem fiscal dada pela Emenda nº 126, ou seja, sem espaço para o restabelecimento dos pisos — o que estava correto, pois adequado à norma então vigente (o Teto dado pela EC 95), que foi expressamente revogada pela EC 126, a partir da edição da LC 200. Logo, com a mudança constitucional — destaca-se: constitucional — não pode vigorar lei que não atenda aos pisos de educação e saúde, devendo ser aplicada a norma constitucional de forma proporcional ao quadrimestre em curso, e nãoretroativa a 1/1/2023.
A atual transição precisa ajustar o fluxo da programação orçamentária e financeira no último quadrimestre do ano (1º de setembro até 31 de dezembro) para torná-lo constitucional. Estima-se um impacto de cerca de R$ 6 bilhões no orçamento federal que deve ser absorvido primordialmente em favor do piso em saúde.
Muito há por ser feito em relação ao aprimoramento qualitativo dos pisos em saúde e educação, mas negar-lhes os recursos constitucionalmente vinculados é a forma mais abusiva de encerrá-los em um círculo vicioso de precarização fiscal, baixo apreço social pelos correspondentes serviços públicos, aumento da demanda pelos seus congêneres serviços privados e desvios que impedem a consecução dos respectivos planos setoriais.
Só com saúde e educação fortes e para todos é que se poderá reconstruir esse país. Afinal, aludidos direitos fundamentais têm uma posição preferencial na CF, dentre os Desca (Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais), não só por serem os únicos com prescrição de piso de recursos públicos, como também por serem essenciais à realização dos objetivos do artigo 3º da CF.
Sobre os autores
Élida Graziane Pinto é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).
Fábio Konder Comparato é professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Ingo Wolfgang Sarlet é advogado e professor.
Misabel Abreu Machado Derzi é professora titular de Direito Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da UFMG.
Regis Fernandes de Oliveira é professor titular aposentado de Direito Financeiro da USP.