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Imunidades parlamentares

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18/09/2023

Desde os primeiros anos da República, vários dos nossos publicistas têm clamado contra a deturpação dos preceitos constitucionais concernentes às imunidades parlamentares.

No capítulo intitulado “Os maiores males da República”, do seu livro – “O Regime Federativo”, dizia AMARO CAVALCÂNTI constituir “documento irrecusável da nossa incapacidade política, o abuso das imunidades parlamentares”.

Referia-se êle à prática do Congresso Legislativo sistemàticamente negar licença para o processo criminal dos parlamentares, quando esta negativa foi reservada apenas para casos excepcionais, em que o processo tem origens em perseguições políticas, ou servem de pretexto para afastá-los ou intimidá-los no exercício do mandato.

Ultrapassando os seus fins, que é defender a integridade do Poder Legislativo contra possíveis atentados, escreveu VIVEIROS DE CASTRO, a imunidade “converte-se em um odioso e repugnante privilégio destrutivo dos princípios cardeais que constituem a fôrça e eficácia da Constituição que adotamos – a divisão dos poderes e a igualdade de todos perante a lei” (“Rev. de Direito”, vol. 39, pág. 621).

Sob o título “As imunidades Parlamentares”, escreveu o desembargador FLÓSCOLO DA NÓBREGA:

“A democracia é o regime da plena responsabilidade e os agentes do poder, em razão mesma das vantagens que desfrutam, devem ser responsáveis em maior grau. Se cometem crime, não violam apenas a lei, violam ainda um dever funcional; não é justo, pois, que procurem escapar pela porta travessa dos privilégios, adredemente arranjados. Cabe-lhes, mais que a todos, dar o exemplo de respeito às instituições”.

“A recusa de licença do Congresso para o processo e prisão de um de seus membros incurso em crime, afeta a dignidade do poder público, além de desprestigiar a Lei e a Justiça; e o desprestígio da Lei e da Justiça é sintoma de morte para os povos, sinal de que a moralidade afrouxa e a sociedade camilha para a decomposição” (“REVISTA FORENSE”, volume 115, pág. 33).

E, referindo-se ao abuso da linguagem, escreveu CARVALHO DE MENDONÇA:

“A imunidade de um dos ramos do poder público expõe os outros ao desprestígio das afirmações sem provas, desenvolvendo êsse sistema de corrução que tem surgido nos últimos tempos da nossa vida política e que consiste em atassalhar, sem piedade, a reputação alheia” (“O Direito”, vol. 86, pág. 456).

Imunidade parlamentar e erros na interpretação dos dispositivos

Ùltimamente novos abusos têm aparecido à sombra de uma errada interpretação dos dispositivos constitucionais.

Interêsses personalíssimos e o horror à responsabilidade, que crescem avassaladoramente no país, em detrimento da causa pública, têm levado a se dar uma amplitude deplorável às imunidades parlamentares.

Pretende-se agora que estas imunidades ultrapassem a pessoa das parlamentares, que se estendam às suas propriedades, ao seu domicílio, a terceiros, mesmo criminosos, que nêle se encontram, aos seus veículos, ao porte de armas proibidas, aos seus discursos injuriosos, mesmo fora do Parlamento, etc.

E, na Câmara federal, um deputado arrogantemente proclamou que desobedeceria a uma intimação para depor em um importante inquérito para a apuração de crimes gravíssimos, porque tinha imunidades…

Chegamos, no Brasil, a um ponto em que se viola um dever moral e jurídico, e o violador afrontosamente declara que o faz porque, no momento, ninguém lhe pode aplicar a sanção coercitiva.

Até a imprensa panfletária tem se aproveitado do abuso das imunidades parlamentares, cobrindo o principal responsáveis pelo jornal, com o nome de um deputado a fim de dificultar a punição das injúrias e calúnias publicadas.

Origem das imunidades parlamentares

As imunidades parlamentares nasceram na Inglaterra ao tempo em que o Parlamento, além da função de legislar e fiscalizar os atos do Poder Executivo, exercia funções judiciárias. Na época medieval, em que não havia ainda um Poder Judiciário independente. Foram elas instituídas para que os parlamentares pudessem exercer as suas funções sem temer as violências do Executivo, por vezes feitas contra elas, quer servindo-se diretamente da sua fôrça, quer servindo-se da fraqueza dos juízes, através de processos perseguidores.

Com o evolver dos tempos, com a maior independência do Judiciário, as imunidades parlamentares foram-se restringindo ao imprescindível para o desempenho do mandato (JOBIM, “Imunidades Parlamentares”).

Com êste caráter restrito elas figuram na generalidade das Constituições dos povos cultos.

Se as imunidades parlamentares, por um lado, podem ser justificadas como um mal necessário, para evitar outro maior, ocorrido em situações graves e excepcionais, por outro lado, são condenadas como contrárias à democracia por ferirem o princípio de que todos são iguais perante a lei, e pelos abusos que proporcionam em detrimento da ordem pública.

A Constituição suíça não as admitiu, e grandes vozes têm se oposto a elas, ora para restringi-las, ora para aboli-las totalmente.

No Brasil, por ironia, existe parlamentares que querem passar como extremados e corajosos democratas, que a cada passo isto apregoam, mas que a cada momento estão a proclamar e invocar as suas imunidades.

Quem quer passar como democrata e destemido, deve, ao contrário, guardar discretamente as suas imunidades para sòmente invocá-las em situações graves, quando realmente periga o livre exercício do seu mandato.

Imunidade parlamentar e a Constituição brasileira

As Constituições republicanas do Brasil excederam a tôdas as outras na extensão das imunidades, contra as idéias de democratas, como VERNECK, PESTANA, MAGALHÃES CASTRO, RUI BARBOSA, LOPES TROVÃO e JOÃO PINHEIRO, que estabeleceram restrições, e de BARBALHO, que opinou pela sua abolição total.

Instituídas quanto às opiniões, palavras e votos proferidos pelos parlamentares no exercício do voto, para que não pudessem ser responsáveis penal ou civilmente, e também para que não fôssem processados criminalmente, sem licença da Câmara, e presos fora do flagrante, não emudeceram as grandes vozes contra estas prerrogativas (AMARO CAVALCÂNTI, CARVALHO DE MENDONÇA, CARLOS XAVIER, “A Constituição do Estado Novo”, pág. 130; FLÓSCOLO DA NÓBREGA, “REVISTA FORENSE”, vol. 115, pág. 32, etc.; AURELINO LEAL, “Teoria e Prática da Constituição Federal”, pág. 286).

Além de ferir o dogma republicano da igualdade de direitos, já hoje não há necessidade de imunidades para os parlamentares poderem exercer livremente o seu mandato, porque o Poder Judiciário, com a sua atual autoridade e independência, pode assegurar a todos as garantias necessárias.

Nem se objete que o Judiciário pode ser dominado pelo Executivo. Dada a organização do Legislativo e do Judiciário, o governo que se serve do abuso mais fàcilmente vence o Legislativo do que a Judiciário, poder vitalício, alheio às ambições e paixões, e que se desdobra em várias instâncias.

A história da República registra vários desrespeitos às imunidades do Legislativo pelos governos dos Estados e ato pelo governo federal. E, nestes casos, tem sido o Judiciário que tem assegurado o direito dos parlamentares.

Em Alagoas, há poucos anos, um governador não hesitou em prender ilegalmente alguns deputados. Foi o Tribunal de Justiça que lhes restituiu a liberdade por habeas corpus.

Entendimento sobre a interpretação das imunidades parlamentares

Se é controvertida a tese da adoção das imunidades parlamentares, todos os constitucionalistas estão de acôrdo em que elas constituem uma medida excepcional, um privilégio, e como tal, tem que ser interpretada e aplicada estritamente.

“O princípio que deve presidir à interpretação, ou construção dos privilégio, parlamentares é o de que devem ser entendidos nos seus termos estritos, como tôda exceção às regras gerais de imputabilidade e responsabilidade, particularmente em regimes democráticos, em que o postulado de igualdade perante a lei só deve declinar em casos absolutamente excepcionais e por motivos de imperiosa necessidade ou utilidade. (FRANCISCO CAMPOS, “Direito Constitucional”, pág. 72).

No mesmo sentido: BARBALHO, “Constituição Federal”, pág. 94; CARLOS MAXIMILIANO, “Hermenêutica e Aplicação do Direito”, pág. 275, e “Comentários à Constituição de 1891”, nº 263; FLÓSCOLO DA NÓBREGA, “REVISTA FORENSE”, vol. 115, pág. 35; DUGUIT, “Direito Constitucional”; ac. do Tribunal de São Paulo, “REVISTA FORENSE”, vol. 112, página 258; JOÃO VIEIRA, “Código Penal”, vol. 1, pág. 76; MUNIZ BARRETO, “Revista do Supremo Tribunal”, vol. 1, pág. 31; “Parecer da Câmara dos Deputados”, em “Boletim Eleitoral”, nº 29, pág. 203; ac. do Supremo Tribunal Federal de 9 de outubro de 1922.

E esta interpretação restrita do privilégio mais se impõe no Brasil, cuja Constituição já o instituiu com exagerada largueza.

Todos estão de acôrdo que a “inviolabilidade dos deputados e senadores, no exercício de seu mandato, por suas opiniões, palavras e votos”, a que se referem as Constituições de 1891, 1934 e a atual, não abrange a irresponsabilidade penal e civil por atos praticados pelos parlamentares fora, ou mesmo dentro do Parlamento, sem serem no exercício de seu mandato.

São acordes, todos, em que, pelos abusos estranhos à finalidade do seu mandato, dentro ou fora do Parlamento, respondem os parlamentares, gozando apenas do favor da suspensão do processo até que a Câmara a que pertençam autorize o seu prosseguimento.

O disposto do art. 44 da Constituição tem em vista apenas as opiniões dos congressistas nos atos parlamentares.

Fora do momento em que exerce o mandato, o deputado ou senador é responsável pelo que praticou. Apenas, não poderão ser processados sem licença da Câmara (CLODOMIR CARDOSO, JOSÉ DUARTE, “A Constituição de 1946”, volume 1, pág. 38).

“O art. 44 não cobre senão os discursos e em geral os atos dos membros das Câmaras que se compreendam no exercício do mandato. Não cobre os atos de violência, nem a reprodução pelo parlamentar de discurso pronunciado no exercício das suas funções, se essa reprodução é feita fora da publicidade legal dos debates da Câmara” (AGUIAR DIAS, “Extensão das Imunidades Parlamentares”, “REVISTA FORENSE”, volume 131, pág. 5; FRANCISCO CAMPOS, “Direito Constitucional”, pág. 75).

Neste sentido são a jurisprudência norte-americana e Argentina (OTO PRAZERES, “As Imunidades Parlamentares na América”).

A irresponsabilidade limita-se às palavras pronunciadas ou escritas no exercício do mandato, e abrange não só os discursos, pareceres, e votos proferidos no edifício de uma das Câmaras, como também as opiniões emitidas fora, “no desempenho de comissão parlamentar” (CARLOS MAXIMILIANO, “Comentários à Constituição Federal”, vol. 2, pág. 30).

A inviolabilidade parlamentar não aproveita senão as opiniões e votos emitidos no exercício do mandato. Não compreende as infrações dos parlamentares em reunião em que vão dar contas do exercício do mandato. A expressão, no exercício do mandato, deve entender-se como no exercício das suas atribuições parlamentares (MARNOGO SOUSA, AGUIAR DIAS, “Extensão das Imunidades Parlamentares”, “REVISTA FORENSE”, volume 151, págs. 5 e 8).

A liberdade da palavra, de passear em qualquer rua, de escolher o seu candidato ou de fazer propaganda eleitoral deve ser garantida a todos. Exatamente por isso, o parlamentar que, no exercício dêsses direitos, se veja coarctado, não deve invocar as prerrogativas do mandato que não se destinam a estas prerrogativas genéricas, e não estão em causa, mas a liberdade do cidadão comum.”

“É mais bonito, e sem nenhuma dúvida mais juridicamente acertado” (AGUIAR DIAS, ob. cit.).

Mesmo no recinto do Parlamento e no exercício do mandato, o legislador não pode usar de linguagem injuriosa, sob pena de advertência do presidente da Câmara e de serem riscadas as injúrias na publicação dos discursos (PONTES DE MIRANDA, “Comentários à Constituição”, vol. 2, pág. 29; FRANCISCO CAMPOS, “Direito Constitucional”, pág. 75; PAULO LACERDA, “Direito Constitucional”, volume 1, nº 3.871).

É responsável o parlamentar: que, mesmo nos debates parlamentares, profere injúrias em forma de “gestos” (ORBAN, AURELINO LEAL, “Comentários à Constituição”, pág. 289); que der publicidade a discursos injuriosos, mesmo proferidos no edifício do Parlamento, no exercício do mandato (DUGUIT, AURELINO LEAL, ob. cit, página 289); pelo que disse ou escreveu, fora da Câmara e do mandato, como em reuniões para que não foi por ela designado, em jornais ou revistas (PONTES DE MIRANDA, ob. cit., vol. 2, pág. 30: MAXIMILIANO, ob. cit., nº 297; VEDEL, AGUIAR DIAS, “REVISTA FORENSE”, vol. 131, página 6); pelas vias de fato no recinto da Câmara (VEDEL, AGUIAR DIAS, “REVISTA FORENSE”, vol. 131, pág. 6; COSTA E SILVA, “Código Penal”, vol. 1, pág. 38); pelo que fêz fora do mandato, mesmo dentro do edifício da Câmara (PAULO LACERDA, “Direito Constitucional”, volume 1, nº 386).

A imunidade é pessoal, não se estende família, a terceiros, aos criados do parlamentar (ac. do Supremo Tribunal Federal, de 9 de outubro de 1922; CARLOS MAXIMILIANO, “Comentários à Constituição de 1946”, nº 301; PONTES DE MIRANDA, ob. cit., pág. 33; LAUDO DE CAMARGO, “REVISTA FORENSE”, vol. 120, pág. 226).

“Não impede que a polícia penetre no domicílio do deputado para, fazer investigações criminais” (MAXIMILIANO, ob. cit., nº 301, nota 4; DUGUIT, DALLOZ, “Repertório da Doutrina e Jurisprudência”, palavra Constituição, nº 57).

Não se estende à propriedade do parlamentar (PONTES DE MIRANDA, ob. cit., pág. 33; MAXIMILIANO, ob. cit.).

“As imunidades não protegem os congressistas contra os mandados de busca e apreensão, exames criminais na sua residência, quando de tais informações precisar o juiz para um caso sujeito a instrução judiciária” (DUGUIT, AURELINO LEAL, “Teoria e Prática da Constituição”, pág. 298).

A imunidade do deputado não obsta o direito da polícia de autuá-lo como contraventor de porte-de-arma, e mesmo revistá-lo para apreensão da arma proibida, se tem motivo para suspeitar que ela seja usada para o crime (ac. do Tribunal de Justiça de Alagoas, nº 2.911, relatado pelo desembargador TENÓRIO DE ALBUQUERQUE, e resolução do Tribunal Regional Eleitoral de Alagoas, nº 2.609, de 3 de setembro de 1952).

Sobre o autor

Meroveu de Mendonça, desembargador do Tribunal de Justiça de Alagoas.

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