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CLÁSSICOS FORENSE

CONSTITUCIONAL

REVISTA FORENSE

Governador – Impedimento – Ausência – Substituição temporária – Competência do Poder Legislativo para regulamentar os preceitos constitucionais

AUSÊNCIA

GOVERNADOR

IMPEDIMENTO

PARECER

REVISTA FORENSE

REVISTA FORENSE 151

Revista Forense

Revista Forense

27/06/2022

REVISTA FORENSE – VOLUME 151
JANEIRO-FEVEREIRO DE 1954
Semestral
ISSN 0102-8413

FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO

FUNDADORES
Francisco Mendes Pimentel
Estevão L. de Magalhães Pinto,

Abreviaturas e siglas usadas
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CRÔNICAcapa revista forense 151

DOUTRINA

PARECERES

NOTAS E COMENTÁRIOS

  • Privilégios e imunidades dos organismos internacionais – Hildebrando Accioly
  • Responsabilidade civil no Código brasileiro do ar – Prescrição da ação – Alcides de Mendonça Lima
  • Capacidade para testemunharem o testamento cerrado os membros da administração da instituição ou fábrica legatária – Raul Floriano
  • O conceito de parte no processo – Homero Freire
  • A revisão judicial e a “Lei Maior” – Edward S. Corwin
  • As certidões e as comissões de inquérito – Oto Prazeres
  • Homenagem ao juiz José de Aguiar Dias
  • Prêmio Teixeira de Freitas
  • Discurso de agradecimento do Ministro Carlos Maximiliano
  • Banco do Brasil S.A. – Sua transformação em êmpresa pública – Bilac Pinto

BIBLIOGRAFIA

JURISPRUDÊNCIA

LEGISLAÇÃO

Sobre o autor

Francisco Campos, professor na Faculdade Nacional de Direito.

PARECERES

Governador – Impedimento – Ausência – Substituição temporária – Competência do Poder Legislativo para regulamentar os preceitos constitucionais

– Ao Poder Legislativo cabe legislar sôbre tudo aquilo que não esteja regulado na Constituição, inclusive sôbre os meios e processos de executar os preceitos constitucionais que requeiram, para se tornarem executórios, medidas complementares ou de caráter instrumental.

– Se a lei ordinária, no silêncio da Constituição, não pudesse regular os casos de impedimento do governador do Estado, ficaria ao arbítrio dêste denunciar, ou não, a sua ocorrência, ou, ainda, considerar um impedimento óbvio ou notório, como não tendo ocorrido, ou destituído de fôrça bastante para obrigá-lo a passar o govêrno ao seu substituto.

– Interpretação do art. 41 da Constituição do Estado de Santa Catarina e da lei estadual que o regulamentou, dispondo sôbre o impedimento e a substituição do governador.

PARECER*

I. A Constituição do Estado de Santa Catarina dispõe em seu art. 41 que:

“Em caso de impedimento ou vaga do governador, serão sucessivamente chamados ao exercício do Govêrno o presidente da Assembléia Legislativa e o presidente do Tribunal de Justiça do Estado”.

A Assembléia Legislativa entendeu de regular o art. 41 da Constituição do Estado, para o fim de especificar os casos em que se verificam o impedimento e a vaga do governador. Assim, aprovou um projeto de lei em cujo art. 2º se dispunha:

“Consideram-se casos de impedimento do governador:

a) férias anuais até 30 dias;

b) enfermidade que o inabilite, transitòriamente, para o exercício de suas funções;

c) ausência do território do Estado por tempo superior a 24 horas;

d) licença”.

Remetido o projeto ao governador, êste o vetou. A Assembléia, nos têrmos do artigo 27, § 4°, reiterou a sua aprovação ao projeto e o enviou novamente ao governador para que o promulgasse. Decorridas 24 horas, sem que ocorresse a promulgação pelo governador, o presidente da Assembléia, na conformidade do art. 29 da Constituição, promulgou o projeto, que se transformou em lei do Estado de Santa Catarina.

Podia a Assembléia Legislativa de Santa Catarina legislar sôbre a matéria relativa ao impedimento do governador do Estado, para o fim de especificar os casos em que o mesmo deveria ser considerado como impedido para exercer as suas altas funções?

É claro que o podia. É de manifesta evidência que não só podia, como devia regular a matéria, uma vez que a Constituição se limitara a enunciar a hipótese do impedimento do governador, sem que, contudo, especificasse os casos em que o impedimento deveria ser considerado como existente para o efeito da substituição temporária do governador.

Quando se deveria ter como impedido o governador para o efeito da sua substituição? Quem declararia a existência do impedimento? A estas duas questões, cuja solução é capital para o funcionamento normal e constitucional do Govêrno do Estado, a Constituição não dá qualquer resposta. Se a lei ordinária não pudesse regular a matéria, ficaria ao arbítrio do governador denunciar ou não o impedimento, considerar um impedimento de fato, de manifesta obviedade e de notoriedade pública, como não tendo ocorrido, ou como destituído da necessária fôrça compulsiva para determiná-lo a passar o Govêrno ao substituto designado na Constituição.

O governador seria, em última análise, o único juiz da causa e da oportunidade da sua substituição temporária. Invalidado no Govêrno, continuaria a ocupar o cargo para cujo exercício não reuniria mais a necessária habilitação física e mental; ausente do território da sua jurisdição, e nulo podendo, portanto, exercê-la, persistiria em conservar em suas mãos um poder cuja plenitude do exercício exige, como condição necessária e indispensável, a presença atual e continua, pois a natureza do Poder Executivo se caracteriza, precisamente, pela atualidade continua ou pela continuidade atual, e não sòmente virtual, do seu exercício.

É, portanto, de natureza postulatória a afirmação de que o governador do Estado não pode ser o exclusivo juiz dos casos do seu próprio impedimento para o exercício do cargo, nem à sua discrição poderá ser confiado o juízo definitivo em relação à natureza do impedimento que o obriga, nos têrmos da Constituição do Estado, a passar o exercício das funções ao seu substituto legítimo. Dispõe a Constituição de Santa Catarina que:

“Em caso de impedimento ou vaga do governador, serão sucessivamente chamados ao exercício do Govêrno o presidente da Assembléia Legislativa e o presidente do Tribunal de Justiça do Estado”.

A Constituição não especificou os casos de impedimento, nem condicionou à sua duração o efeito de produzir a substituição temporária do governador. Limitou-se a dizer que nos casos de impedimento do governador “serão sucessivamente chamados ao exercício do Govêrno o presidente da Assembléia Legislativa e o presidente do Tribunal de Justiça do Estado”. Chamados por quem? Chamados quando? Chamados pelo governador? E se o governador não os chamar? Chamados pelo governador quando êste se julgar impedido? Mas, se, apesar de notòriamente impedida por ausência, ou por outro motivo de natureza igualmente impeditiva, o governador entende, entretanto, que o impedimento não constitui a causa ou o impedimento de que a Constituição faz depender a passagem ou a transmissão do poder?

Estamos, portanto, em que, havendo a Constituição se abstido de definir a duração, a extensão e a natureza do impedimento por fôrça do qual se opera a substituição temporária do governador, se se contesta ao Poder Legislativo a atribuição de regular a matéria, que a Constituição deixou de regular, então o que se veda ao Poder Legislativo, que dispõe por via geral e para o futuro, se reconhece como poder inerente às prerrogativas do governador, para que êste o exerça em cada caso e na conformidade de um juízo pessoal e discriminatório, facultando-se à sua discrição variar de critério na estimação de idênticas circunstâncias, – poder tanto mais repugnante com a natureza da nossa organização constitucional, quanto nêle se envolve não sòmente um juízo arbitrário, como um juízo a ser proferido em causa própria.

Ora, o cargo de governador não é propriedade do seu ocupante eventual; em relação a êle não tem o seu titular o mesmo poder de disposição que lhe assiste na esfera jurídica em que sc acham compreendidos os seus bens ou interesses de caráter pessoal ou privado.

Não podendo, portanto, como é de obviedade manifesta e de caráter evidentemente postulatório (pois da própria organização constitucional, para substituir, resulta o postulado ou o princípio de caráter postulatório), outorgar-se ao governador a discrição de decidir em que casos se verifica o impedimento que o obriga a passar o exercício do cargo ao seu substituto legítimo, e como a Constituição não regulou a matéria, limitando-se a dispor que nos seus impedimentos o governador será substituído, sem especificar os impedimentos que pela sua duração tornam necessária a passagem do exercício do cargo, – a que podar senão ao Legislativo deveria caber à competência para formular as normas destinadas à execução do preceito constitucional?

Nem todos os preceitos constitucionais podem ser executados, se a legislação ordinária não dispõe quanto ao modo ou ao processo da sua execução; e em outros casos, fazendo depender a sua aplicação de circunstâncias de fato que a própria Constituição não configura quanto aos seus elementos constitutivos ou definidores, impenderá, forçosamente, ao Poder Legislativos completar o enunciado constitucional, não para ampliá-lo, restringi-lo ou modificá-lo, mas para definir os têrmos que a Constituição não define, ou para configurar de modo concreto as circunstâncias ou as condições de que o preceito constitucional faz depender a sua aplicação, sem que contudo especifique onde se torna necessária a especificação, ou sem cuja especificação o texto constitucional correrá o risco de vir a ser aplicado de modo discricionário, ou à mercê de juízos variáveis quanto ao seu conteúdo ou à sua significação. Sem a lei que introduz ou insere o texto constitucional no plano da aplicação, quando no próprio texto não se encontram os elementos que o tornam aplicável imediatamente, ou independentemente de qualquer mediação legislativa, não se poderia predicar, como me parece ser da essência de qualquer lei, e, com maior fôrça de razão, da lei constitucional, quando, em que casos e em que sentido aquele texto seria aplicado pelas autoridades administrativas ou judiciárias.

É da natureza da lei, ou pelo menos uma exigência pragmática da sua função na economia da ordem social, o de admitir a predição quanto aos seus efeitos, e, portanto, quanto aos casos a serem subsumidos sob os seus imperativos hipotéticos. O princípio de direito positivo de que a ninguém é lícito ignorar a lei, impõe, necessariamente, ao legislador a obrigação correlata de enunciar, sem equívoco quanto ao seu sentido ou à sua extensão, o conteúdo do preceito legal. Quanto mais gerais, porém, as leis, tanto mais abstratos os seus conceitos, ou mais genéricos os seus enunciados. A Constituição, por sua própria natureza, não comporta enunciados casuísticos, nem, muitas vêzes, nela mesma se podem encontrar definidas, inequìvocamente, as condições ou os processos de que ela faz depender a aplicação de alguns dos seus preceitos. Nesta hipótese, a execução de tais preceitos requer medidas complementares. Tais medidas, como é óbvio, por serem de caráter ou de natureza legislativa, são, necessariamente, da competência do órgão a que a própria Constituição outorga a prerrogativa de legislar.

No exercício do poder de introduzir em execução textos constitucionais, cujo conteúdo demande, para ter correta e inequívoca aplicação, especificações ou definições quanto aos termos, ou regras de ação ou de processo, o órgão legislativo só encontra limitações na própria Constituição, cujos preceitos as leis orgânicas, ao contrário de se destinarem a modificar, têm por exclusiva finalidade tornar executórios ou suscetíveis de serem aplicados de conformidade com o fim para que foram instituídos ou editados. Ora, o dispositivo da Constituição do Estado de Santa Catarina, relativo à substituição do governador nos casos de impedimento, está, evidentemente, compreendido entre aquêles dispositivos constitucionais que requerem, para se tornarem, plena e satisfatòriamente executórios, medidas legislativas complementares, destinadas a especificar os casos em que se verifica o impedimento e o processo pelo qual se há de operar a substituição. Na ausência de legislação complementar, tanto a definição dos casos de impedimento, como a substituição do governador ficariam à discrição precisamente da autoridade que a Constituição põe em causa, o que seria, manifestamente, anular o texto constitucional pela frustração dos efeitos que êle entende produzir.

A competência da Assembléia Legislativa de Santa Catarina para legislar sôbre a matéria seria inatacável teoricamente, ou do ponto de vista da necessidade de introduzir em execução preceitos constitucionais incompletos, por nêles não estarem previstos os meios ou processos de sua própria execução. A Assembléia Legislativa é outorgado o poder legislativo do Estado; o único limite a êsse poder é a Constituição. Acontece, porém, que, no caso, não é necessário recorrer à teoria da Constituição para justificar o ato da Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, em o qual se definem os casos de impedimento do governador e se regula o processo da sua substituição temporária. O art. 21 da Constituição de Santa Catarina dispõe, com efeito:

“Compete à Assembléia, com a sanção do governador, fazer leis, alterá-las, revogá-las e especialmente:

I – decretar leis orgânicas para completa observância desta Constituição”.

No exercício dêste poder que lhe é expressamente outorgado pela Constituição, para o fim de lhe assegurar a completa observância, é que a Assembléia de Santa Catarina votou a lei que regula a substituição temporária do governador nos casos de impedimento. Ao Poder Legislativo caberá legislar sôbre tudo aquilo que não esteja regulado na Constituição e inclusive, portanto, sôbre os meios e processos de introduzir em execução os preceitos constitucionais que requeiram, para se tornarem executórios, medidas complementares ou de caráter instrumental. No exercício dêste poder de habilitar os textos constitucionais à sua cabal execução, o único limite ao Poder Legislativo consiste na vedação de, sob pretexto de legislar complementarmente à Constituição, modificar os seus têrmos, adulterar os seus preceitos ou substituir às enunciadas na Constituição normas que sejam incompatíveis com as normas constitucionais que o legislador se propõe precisamente a introduzir em execução.

Examinemos, portanto, se, na hipótese, a Assembléia Legislativa de Santa Catarina se manteve nos limites do poder que lhe é expressamente atribuído pela Constituição do Estado (art. 21) de:

“Decretar leis orgânicas para completa observância da Constituição”.

Teria a Assembléia modificado o texto constitucional, definindo como de impedimento casos que, manifestamente, o não sejam?

Que diz a Constituição? A Constituição de Santa Catarina dispõe que:

“Em caso de impedimento etc.”.

Será que a Assembléia Legislativa, ao legislar sôbre a matéria, no exercício do poder que lhe é outorgado em têrmos expressos pela Constituição (art. 21), haja determinado a substituição temporária do governador em casos em que êste não esteja manifestamente impedido de exercer o cargo?

É suficiente recorrer-se aos têrmos da lei para que de logo se torne manifesto que, estabelecendo a substituição do governador quando êste se ausente por mais de 24 horas do território do Estado, a lei se manteve dentro nos marcos do preceito constitucional relativo ao impedimento do governador. A Constituição determina, com efeito, sem qualquer discriminação quanto à duração do impedimento, que a substituição se opere em caso de impedimento, seja qual fôr, portanto, a natureza e a duração do impedimento.

A Assembléia se limitou a temperar ou abrandar os têrmos demasiadamente absolutos em que está concebido o preceito constitucional, ao admitir que a ausência por 24 horas não constitua um impedimento que implique a substituição do governador.

Será que a ausência do território do Estado não constitua impedimento ao exercício do cargo de governador? Ninguém poderá, de boa-fé, contestar que a ausência de uma autoridade da circunscrição territorial a que se limita o exercício da sua jurisdição não lhe permite continuar a exercer os poderes jurisdicionais de incidência especificamente espacial ou territorial.

Não seria necessário que a Constituição de modo expresso e declarasse para que da natureza mesma da função resultasse, com tôda evidência, que o governador não poderá, ausente do território da sua jurisdição, continuar a exercer uma jurisdição de caráter eminente e especificamente territorial. Assim, o que se encontra disposto na lei do Estado de Santa Catarina, em a qual se regulam os casos e o processo da substituição interina do governador, não destoa do preceito constitucional correspondente, ou se limita a medidas inteiramente compatíveis com os seus têrmos e destinadas a assegurar a sua completa observância.

Ausência do governador

II. Alega-se, entretanto, que o art. 48 da Constituição de Santa Catarina, ao admitir que o governador possa ausentar-se do Estado por tempo não-superior a 20 dias, independentemente de licença da Assembléia, admite, implicitamente, que tal ausência não implica em substituição do ausente.

Ora, o que o art. 48 regula é coisa diversa do que se acha regulado no art. 41 da Constituição de Santa Catarina. Naquele artigo, com efeito, se regulam os casos em que para se ausentar do Estado o governador necessita da licença da Assembléia; no art. 41 se dispõe que, em caso de impedimento, o governador passará o Governo ao substituto designado na Constituição.

Ora, a ausência, ainda que autorizada pela Assembléia, constitui, palas óbvias razões já enunciadas, causa tão eficaz de impedimento quanto a ausência sem licença da Assembléia. É a ausência em si mesma, independentemente de qualquer qualificação, autorizada ou não-autorizada, sem licença ou mediante licença, que constitui o impedimento previsto na Constituição.

O fato de dispor a Constituição que para ausentar-se por 20 dias o governador não necessita de licença da Assembléia, não induz à conclusão de que, não necessitando de licença da Assembléia, no caso da ausência de duração igual ou menor de 20 dias, o governador poderá ausentar-se sem passar o govêrno ao seu substituto, na ordem da vocação constitucional.

Não é da licença da Assembléia que resulta o impedimento; o impedimento resulta do fato de que, sendo territorial a jurisdição do governador, a sua ausência do território, sem deixar substituto, cria a situação, a um só tempo singular, paradoxal e perplexa de uma jurisdição sem autoridade jurisdicional e de uma autoridade jurisdicional sem jurisdição.

Por todos êsses fundamentos, sou de parecer, salvo melhor juízo, que a lei orgânica nº 19, de 1º de agôsto de 1951, votada pela Assembléia de Santa Catarina e promulgada pelo seu presidente, e em a qual se regulam os casos de impedimento do governador e o processo da sua substituição interina, é manifestamente constitucional.

Rio de Janeiro, 9 de novembro de 1951. –

______________

Nota:

* N. da R.: V., sôbre o assunto, o acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina publicado na pág. 336 dêste volume.

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