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Evolução do regime federativo

REVISTA FORENSE 158

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22/09/2023

SUMÁRIO: Antecedentes históricos. A Constituição do Império. O germe da federação. O manifesto de 1870, do Partido Republicano. Triunfo da federação com a República. Opinião de RUI BARBOSA. Confronto com o modêlo norte-americano. A Constituição de 1891. Depoimentos eloqüentes. As Constituições de 1934 e 1946. A tendência à centralização e suas causas. Exemplos de outros países. Conclusão.

* I. A Constituição vigente, no artigo 1º, dispõe que “os Estados Unidos do Brasil mantêm, sob o regime representativo, a Federação e a República”. E no art. 217, § 6°, ao regular o processo de emenda de seu texto, acrescenta que “não serão admitidos, como objeto de deliberação, projetos tendentes a abolir a Federação e a República”.

A leitura dêstes preceitos mostra que a federação, quando foi promulgada a Constituição, era um regime preexistente, vindo de textos anteriores, e que deve perdurar.

Mas êste regime, que o legislador constituinte resolveu manter, ao mesmo tempo em que proibia a sua abolição, não foi estruturado em 1946 da mesma forma por que o fôra anteriormente, nas Constituições proscritas de 1937, 1934 e 1891. Houve modificações sensíveis na letra e no espírito dos textos e a prática constitucional revela que a federação não é um regime rígido e impermeável, mas dútil e elástico, capaz de adaptar-se às injunções do progresso e de atender às transformações sociais e econômicas do país.

A demonstração desta tese resultará da exposição, que vamos fazer, do conceito de federação, corrente no Brasil e no estrangeiro, nos últimos cem anos.

A Constituição do Império

A Constituição do Império, outorgada por D. PEDRO I, em 1824, estabeleceu, entre nós, um Estado unitário. As Províncias tinham presidentes, nomeados pelo imperador, e as suas atribuições eram definidas em lei geral, votadas pelo poder central (arts. 156 e 166). Os conselhos gerais das Províncias tinham competência restrita e seus atos eram submetidos à Assembléia Geral (arts. 82-88), de caráter nacional, com sede na capital do Império.

A descentralização administrativa, reclamada pelas necessidades locais, foi o germe da federação. O ato adicional de 1834 ampliou a competência legislativa das assembléias provinciais e tornou excepcional a revisão de suas resoluções. A Assembléia Geral só eram submetidos os projetos por provocação do presidente da Província (art. 16) ou, depois de sancionados, para confronto com a Constituição, e as leis sôbre impostos grais, os direitos da outras Províncias ou os tratados (artigo 20). A lei interpretativa nº 105, de 1840, precisou o sentido de alguns dos dispositivos do ato, restringindo o seu alcance.

Em verdade, rara muitos estadistas de prol, como BERNARDO DE VASCONCELOS, o ato adicional, como veículo da descentralização, era um germe de anarquia e da ruína da unidade brasileira (AURELINO LEAL, “História Constitucional do Brasil”, 1915, págs. 178-180).

Mas, anteriormente, em 14 de outubro de 1831, já havia surgido o primeiro projeto de reforma constitucional, com um dispositivo declarando que o govêrno do Império do Brasil seria uma monarquia federativa.

E TAVARES BASTOS, no seu livro famoso intitulado “A Província – Estudo sôbre a descentralização no Brasil”, cujo prefácio é datado de 14 de agôsto de 1870, pugnando pela ampliação dos governos locais, censurava as “usurpações de 1840”, contra êles decretada. “A centralização é essa fonte perene de corrupção que envenena as mais elevadas regiões do Estado” (pág. 27), dizia o ardoroso publicista. E aos apologistas da centralização advertia: “Julgais unir estreitamente a comunhão brasileira, apertando-a com os vossos regulamentos e sufocando-a na papelada das vossas Secretarias? Engano manifesto! Estais, sem dúvida, estais preparando a obra, talvez fatal, da dissolução do Império” (pág. 399).

O Partido Republicano, no manifesto de 3 de dezembro de 1870, se fêz o arauto do ideal federativo. São expressivos e eloqüentes os têrmos de sua justificação, que, pela repercussão que teve nos acontecimentos políticos ulteriores, convém reproduzir:

“No Brasil, antes ainda da idéia democrática, encarregou-se a natureza de estabelecer o princípio federativo. A topografia do nosso território, as zonas diversas em que êle se divide, os climas vários e as produções diferentes, as cordilheiras e as águas estavam indicando a necessidade de modelar a administração e o govêrno local, acompanhando e respeitando as próprias divisões criadas pela natureza física e impostas pela imensa superfície do nosso território. Foi a necessidade que demonstrou, desde a origem, a eficácia do grande princípio que, embalde a fôrça compressora do regime centralizador, tem procurado contrafazer e destruir. Enquanto colônia, nenhum receio salteava o ânimo da Monarquia portuguêsa por assim repartir o poder que delegava aos vassalos diletos ou preferidos. Longe disso, era êsse o meio de manter, com a metrópole, a unidade severa do mando absoluto. As rivalidades e os conflitos que rebentavam entre os diferentes delegados do poder central, enfraquecendo-os e impedindo a solidariedade moral, quanto às idéias, e a solidariedade administrativa, quanto aos interêsses e às fôrças disseminadas, eram outras tantas garantias de permanência o solidez para o princípio centralizador e despótico. A eficácia do método havia sido comprovada, por ocasião do movimento revolucionário de 1787, denominado – a inconfidência. Nenhum interêsse portanto, tinha a Monarquia portuguêsa quando se homiziou no Brasil, para repudiar o sistema que lhe garantira, com a estrangulação dos patriotas revolucionários, a perpetuidade do seu domínio nessa parte da América. A divisão política e administrativa permaneceu, portanto, a mesma, na essência, apesar da transferência da sede monárquica para as plagas brasileiras. A Independência proclamada oficialmente em 1822 achou e respeitou a forma da divisão colonial. A idéia democrática, representada pela primeira Constituinte brasileira, tentou, é certo, dar ao princípio federativo todo o desenvolvimento que êle comportava e de que carecia o país para poder marchar e progredir. Mas a dissolução da Assembléia Nacional, sufocando as aspirações democráticas, cerceou o princípio, desnaturou-o, e a Carta outorgada em 1824, mantendo o status quo da divisão territorial, ampliou a esfera da centralização pela dependência em que colocou as Províncias e seus administradores do poder intruso e absorvente, chave do sistema, que abafou todos os respiradouros da liberdade, enfeudando as Províncias à Corte, à sede do único poder soberano que sobreviveu ruína da democracia. A revolução de 7 de abril de 1831, trazendo à superfície as idéias e as aspirações sufocadas pela reação monárquica, deu novamente azo ao princípio federativo para manifestar-se e expandir-se. A autonomia das Províncias, a sua desvinculação da Côrte, a livre escolha dos seus administradores, as suas garantias legislativas por meio de assembléias provinciais, o alargamento da esfera das municipalidades, essa representação resumida da família política, a livre gerência dos seus negócios em tôdas as relações morais e econômicas, tais foram as condições características dêsse período de reorganização social, claramente formuladas das deliberações do govêrno e das assembléias dêssa tempo. A reação democrática não armou, sòmente, os espíritos para essa luta grandiosa. A convicção de alguns e o desencanto de muitos, fazendo fermentar o levedo dos ódios legados pela Monarquia que se desnacionalizara, a ação irritante do Partido Restaurador, desafiando a cólera dos oprimidos da véspera, armou, também, o braço de muitos cidadãos e a revolução armada pronunciou-se, em vários pontos do país, sob a bandeira das franquezas provinciais,

Desde 1824 até 1848, desde a federação do Equador até a revolução de Pernambuco, pode-se dizer que a corrente elétrica, que perpassou pelas Províncias, abalando o organismo social, partiu de um só foco – o sentimento da independência local, a idéia da federação, o pensamento da autonomia provincial. A obra da reação monárquica, triunfante em todos os combates, pôde, até hoje, a favor do instinto pacífico dos cidadãos, adormecer o elemento democrático, embalando-o sempre com a esperança do seu próprio resgate. Mas, ainda quando, por sinais tão evidentes, não se houvesse já demonstrado a exigência das províncias quanto a êsse interêsse superior, a ordem de coisas que prepondera não pode deixar de provocar o estigma de todos os patriotas sinceros. A centralização, tal qual existe, representa o despotismo, dá fôrça ao poder pessoal que avassala, estraga e corrompe os caracteres, perverte e anarquiza os espíritos, comprime a liberdade, constrange o cidadão, subordina o direito de todos ao arbítrio de um só poder, nulifica de fato a soberania nacional, mata o estímulo do progresso local, suga a riqueza peculiar das Províncias, constituindo-se satélites obrigados do grande astro da Côrte – centro absorvente e compressor que tudo corrompe e tudo concentra em si – na ordem moral e política, como na ordem econômica e administrativa. O ato adicional interpretado, a lei de 8 de dezembro, o Conselho de Estado, criando, com o regime da tutela severa, a instância superior e os instrumentos independentes que tendem a cercear ou anular as deliberações dos parlamentos provinciais, apesar de truncados; a dependência administrativa em que foram colocadas as Províncias, até para os atos mais triviais; abuso do efetivo seqüestro dos saldos dos orçamentos provinciais para as despesas e para as obras peculiares do Município Neutro; a restrição imposta ao desenvolvimento dos legítimos interêsses das Províncias pela uniformidade obrigada, que forma o tipo da nossa absurda administração centralizadora, tudo está demonstrando que posição precária ocupa o interêsse pròpriamente nacional, confrontado com o interêsse monárquico, que é, de si mesmo, a origem e a fôrça da centralização. Tais condições, como a história o demonstra e o exemplo dos nossos dias está patenteando, são ás mais próprias para, com a enervação interior, expor a pátria às eventualidades e aos perigos de usurpação e da conquista. O nosso Estado é, em miniatura, o Estado da França de NAPOLEÃO III. O desmantelamento daquele país, que o mundo está presenciando com assombro, não tem outra causa explicativa. E a própria guerra exterior, que tivemos de manter pelo espaço de sais anos, deixou ver, com a ocupação de Mato Grosso e a invasão do Rio Grande do Sul, quanto é impotente e desastroso o regime da centralização para salvaguardar a honra e a integridade nacional. A autonomia das Províncias é, pois, vara nós, mais do que um interêsse impôsto pela solidariedade dos direitos e das relações provinciais, é princípio cardeal e solene que inscrevemos na nossa bandeira. O regime da federação, baseado, portanto, na independência recíproca das Províncias, elevando-se à categoria de Estados próprios, ùnicamente ligados pelo vínculo da mesma nacionalidade e da solidariedade dos grandes interêsses da representação e da defesa exterior, é aquêle que adotamos no nosso programa, como sendo o único capaz de manter a comunhão da família brasileira. Se carecêssemos de uma fórmula para assinalar, perante a consciência nacional, os efeitos de um e outro regime, nós a resumiríamos assim: centralização, desmembramento; descentralização, unidade (PONTES DE MIRANDA, “Comentários à Constituição de 1946”, 2ª ed., vol. I, págs. 295-298).

Como TAVARES BASTOS, o manifesto de 1870 sustentava que a centralização levaria o país ao desmembramento e que a preservação de sua unidade dependia da descentralização administrativa.

ASSIS BRASIL publicou, em 1881, o livro intitulado “A República Federal”, defendendo as mesmas idéias. JOAQUIM NABUCO, em 1885, apresentou, sem êxito, à Câmara dos Deputados um projeto de cunho federalista e RUI BARBOSA tentou incluir a federação no programa do Partido Liberal, em 1889.

O germe da federação

Com o advento da República a idéia federativa empolgou o país e triunfou sob os mais entusiásticos auspícios.

O dec. nº 1, do Govêrno Provisório, proclamou como forma de govêrno da Nação Brasileira a república federativa. As Províncias do Brasil, reunidas pelo laço da federação, ficam constituindo os Estados Unidos do Brasil, diz o texto. Cada um dêsses Estados, no exercício da sua legítima soberania, decretará, oportunamente, a sua Constituição definitiva, elegendo os seus corpos deliberantes e seus governos locais.

O principal inspirador da nova Constituição, RUI BARBOSA, em discurso pronunciado em 1890, antes, portanto, da sua promulgação, assim confessou os seus pendores federalistas: “Eu era, senhores, federalista, antes de ser republicano. Não me fiz republicano, senão quando a evidência irrefragável dos acontecimentos me convenceu de que a Monarquia se incrustara irredutivelmente na resistência a Federação. Êsse non possumus dos partidos monárquicos foi o seu êrro fatal. A mais grave responsabilidade, a meu ver, dos que presidiram à administração do país no derradeiro estádio do Império está na oposição obcecada, inepta, criminosa de uns, na fraqueza imprevidente e egoística de outros contra as aspirações federalistas da nação. A federação teria demorado o advento do regime republicano por pouco tempo; mas teria poupado à República as dificuldades de organização, com que temos arcado, e continuaremos a arcar, talvez, por não breves dias.”

“A revolução federativa penetrou, pois, nos fatos como torrente violentamente represada, cujos diques se arrazassem de um momento para outro; e, invadindo a atmosfera política do país com a pujança de uma reação sem contrapêso, operou como um princípio eliminador das fôrças de equilíbrio moral, que devem corrigir-lhe as demasias. Já não há senão federalista. Já os federalistas antigos se vêem desbancados e corridos pelo fanatismo dos conversos. Já muitas vêzes os mais intransigentes no serviço do princípio triunfante são os que, ontem, embaraçavam as pretensões mais módicas da reforma federativa. Federação tornou-se moda, entusiasmo, cegueira, palavra mágica, a cuja simples invocação tudo há de ceder, ainda que a invoquem mal, fora de propósito e em prejuízo da federação mesma” (“Comentários à Constituição Federal Brasileira”, coligidos por H. PIRES, 1932, vol. I, páginas 60-61).

Triunfo da federação com a República

Na Constituição de 1891, o regime federativo foi estruturado de acôrdo com o modêlo norte-americano. Mas, circunstâncias peculiares à nossa formação histórica e política tiveram influência salutar.

De fato, as 13 antigas colônias inglêsas, ao firmarem por seus representantes a “Declaração de Independência”, de 4 de julho de 1778, se constituíram em Estados livres e independentes. Logo depois, em 1777, celebraram um pacto de união sob a forma de confederação, com o objetivo principal e imediato de levar a bom têrmo a guerra da independência. Dêste pacto constou a afirmação, segundo a qual, cada Estado conservaria a sua “soberania, liberdade, independência e todo o poder, jurisdição e direito”, não expressamente delegados aos Estados Unidos, reunidos em congresso.

A Confederação que não deu bons frutos, decorridos 10 anos, era substituída pela Federação.

Na estruturação desta, como é natural, havia de se fazer sentir o espírito autonomista dos antigos Estados confederados. Por êste motivo a Constituição, apesar de reforçar consideràvelmente os poderes da União, ainda deixou larga margem de atribuições aos Estados-membros.

Partia-se da periferia para o centro, enquanto que, no Brasil, o movimento era em sentido inverso. O poder central organizado e forte durante o Império, é que se demitia de suas prerrogativas, ao fundar-se a República, em benefício da descentralização política e administrativa.

AMARO CAVALCANTI, em obra clássica, acentua que a Constituição norte-americana foi votada por delegados dos Estados, reunidos em convenção, e depois pelas assembléias legislativas dêstes, donde resulta que a Federação americana de 1787 é, històricamente, senão a continuação, por certo a sucessora da Confederação de Estados de 1777, muito embora refundida e transformada pela Constituição federal, ora vigente”. “Mas, – prossegue o mesmo autor, – o que não se pode, também, esquecer é que, antes da Constituição federal, houve o pacto federativo de Estados soberanos, e que, antes do govêrno nacional, existiu e predominou o govêrno de vários Estados, circunstâncias estás que deram Federação americana um elemento de formação, formação, ou origem, verdadeiramente diferente da Federação brasileira” (“Regime Federativo e a República Brasileira”, 1900, págs. 127-128).

Esta razão histórica, diz ainda AMARO CAVALCANTI, “é fundamental na determinação do caráter jurídico dos Estado federados; porquanto em vista dela não é lícito aos mesmos alegar ou pretender direito ou poder algum, que não tenha, inteiramente, a sua origem na própria Constituição federal” (ob. cit., pág. 131).

FELISBELO FREIRE comentou que “a federação chegou aos Estados, não como uma conquista própria, mas, sim, como uma dádiva que não lhes custou o menor esfôrço, o menor abalo, a menor alteração da ordem” (“História Constitucional da República dos Estados Unidos do Brasil”, 1894, vol. II, pág. 41).

No texto constitucional de 1891, a federação aparece estruturada, pelos motivos expostos, com menor amplitude do que no modêlo norte-americano. A República federativa, como forma de govêrno, vem inscrita no seu art. 1°, e da união perpétua e indissolúvel das antigas Províncias surgem os Estados Unidos do Brasil. A cada Estado incumbe prover, a expensas próprias, às necessidades de seu govêrno e administração. A intervenção é prevista, para o caso de atentado à forma republicana federativa. Discriminou o texto a competência da União e a dos Estados em matéria tributária. Em seguida, ao dispor sôbre as atribuições do Congresso Nacional, indica a matéria legislativa pertinente à União. Todo o direito substantivo lhe é reservado, ao contrário do que acontece na América do Norte. Os Estados, ao adotarem as suas Constituições, deveriam respeitar os princípios constitucionais da União e assegurar a autonomia dos Municípios em tudo quanto tocasse ao seu peculiar interêsse.

No confronto que vamos fazer do primeiro texto constitucional republicano com os demais, mostraremos a evolução do regime federativo.

Mas, antes dêste exame, é interessante ouvir o depoimento de eminentes estadistas, contemporâneos da implantação desta, forma de govêrno no país.

RUI BARBOSA, em artigo publicado em 25 de novembro de 1898, no jornal “A Imprensa”, depois de verberar a situação em que se encontravam os Estados, assim conclui: “Eis o que vem a ser a federação no Brasil. Eis no que dá, por fim, a autonomia dos Estados, êsse princípio retumbante, mentiroso, vazio de vida como um sepulcro, a cuja superstição se está sacrificando a existência do país, o princípio da nossa nacionalidade, oferecida em pasto às cobiças intestinas, até que outras a venham devorar” (apud AMARO CAVALCÂNTI, ob. cit., pág. 340). Mais tarde, em conferência pronunciada em Buenos Aires (20 de julho de 1916), dizia o grande tribuno que, “apesar de não haverem, a República e a Federação, encontrado um terreno onde hajam prosperado”, a sua substituição por outra forma de govêrno seria impossível. E justificou-se, acrescentando: “A Federação é uma dessas instituições de tal energia adesiva ao país onde se estabelecem, de uma fôrça de impregnação tão orgânica nos costumes da nação onde entraram, que nunca mais se podem remover, sem destruição de tecidos vitais” (HOMERO PIRES, ob. cit., vol. I, pág. 74).

FELISBELO FREIRE anotou que foi o Govêrno Provisório quem começou a restringir a autonomia dos Estados por êle mesmo outorgada: “Os representantes do Govêrno Provisório”, – disse o ilustre publicista, em 1894, – “foram os primeiros a dar arras a um federalismo que chegava às raias da confederação. Mas cedo retrocederam, porque viram a insubsistência de tais doutrinas e os atritos que podiam prova de tal delegação. Vê-se que o Govêrno Provisório, em comêço, legislou mais sob a sugestão de doutrinas do que sob a influência da realidade dos acontecimentos que lhes fizeram, depois, invadir a esfera de ação que traçou às administrações locais” (ob. cit., vol. II, pág. 41). E explica os “excessos e desordens na vida administrativa dos Estados, na transformação rápida e radical por que passaram as Províncias, de um regime centralizador, para a posse e uso de atribuições tão vastos, sem a educação política à sombra de instituições autônomas” (ob. cit., vol. II, pág. 43).

AMARO CAVALCÂNTI, na sua obra, famosa, denunciou os abusos contra o regime federativo praticados, quer pela União, quer pelos Estados. Mas o fêz, não com o propósito de demonstrar que a Federação era inadequada ou incompatível com o nosso país e o nosso povo, e sim de advertir a nação dos males que a sua deturpação vinha causando ao regime. Proclamou a Federação, apesar dos frutos mesquinhos produzidos nos primeiros 10 anos de rua, implantação no país, “muito superior ao Estado unitário” (ob. cit., pág. 395).

ASSIS BRASIL, para quem “a Federação foi a verdadeira causa da República, do mesmo modo que é a Federação que lhe mantém o prestígio contra erros indesculpáveis e inevitáveis desvios dêstes primeiros tempos” (“Do Govêrno Presidencial”, 1896, pág. 133), dizia em 1896 que a federação é hoje, para o Brasil, uma dessas conquistas feitas e acabadas, por cuja sorte não há mais que temer” (ob. cit., pág. 134).

VIVEIROS DE CASTRO, professor de Direito e publicista, em 1906 afirmava que “o nosso regime federativo, forçoso é confessar, ainda não tem existência real. Os Estados, em sua, maioria, são verdadeiras capitanias enfeudadas a donatários felizes, que, usufruindo a título precário, procuram tirar das suas concessões o maior lucro possível” (“Estudos de Direito Público”, 1914, pág. 210).

SÍLVIO ROMERO, o ilustre homem de letras, em artigos de imprensa, publicados em 1911 e 1912 (“Jornal do Comércio”, do Rio, e “Diário Popular”, de Juiz de Fora), proclamou a falência da federação no Brasil, dizendo: “Não há mais nada a esperar dela: está irramediàvelmente morta e de fato abolida de todo”.

ALFREDO VALADÃO, professor de Direito, também à mesma época, levantou a sua voz, no Instituto dos Advogados, contra o que denominou a “nossa extravagante federação: de Estados que são Estados e de Estados que não são Estados, porque há Estados que deliberam e Estados que não deliberam; de Estados grandes e de Estados pequenos: de Estados ricos e de Estados pobres!” (apud VIVEIROS DE CASTRO, ob. cit., pág. 215).

Contra estas manifestações antifederalistas se pronunciou VIVEIROS DE CASTRO, confiante no aperfeiçoamento das práticas constitucionais.

AURELINO LEAL, nos seus eruditos comentários à Constituição, publicados em 1925, não teve reservas em afirmar que a nossa federação se assentara em “combinação artificialíssima”. “O que há no Brasil não é, não pode ser uma federação legítima”, porque “improvisar Estados, transformar Províncias, pròpriamente ditas, em Estados, que nunca foram independentes, é, apenas, mudar o nome às coisas, porque a essência é a mesma”. E prognosticou a marcha para a centralização (“Teoria e Prática da Constituição Federal Brasileira”, 1925, págs. 21-22).

CASTRO NUNES, em obra sôbre a revisão constitucional, defendia a tese de que ela deveria “traduzir a resistência à involução do princípio federativo, a êsse unitarismo revolucionário que revive o lema Regresso é Progresso” (“A Jornada Revisionista”, 1924, pág. 32).

LEVI CARNEIRO, em conferência pronunciada em 1925, no Instituto dos Advogados, denunciava o crescente movimento antifederalista, aqui e nos Estados Unidos da América do Norte.

Depois de enumerar alguns fatos de natureza política e administrativa indicativos desta mudança de orientação, escreveu: “A corrente antifederalista vai, ao mesmo tempo, ganhando novas fôrças, no terreno doutrinário”. E citou as obras de AMARO CAVALCANTI (“República Brasileira e Regime Federativo”, 1900), SAMUEL DE OLIVEIRA (“A verdadeira revisão constitucional”, 1912), FELIX CONTREIRAS RODRIGUES (“Novos rumos políticos”, 1921), ALBERTO TORRES (“A Organização Nacional”, 1914) e OLIVEIRA VIANA (“Populações Meridionais do Brasil”) como testemunhos da evolução da idéia federalista.

Mas LEVI CARNEIRO, a despeito destas tendências, se confessava crente da “excelência do verdadeiro regime federativo, e em sua conveniência para nossa organização política” (“Federalismo e Judiciarismo”, pág. 163).

O debate em tôrno do federalismo no Brasil, como acabamos de mostrar, precedeu a sua implantação e continuou depois dela, em linguagem viva e extremada. A par dos publicistas, observadores da prática constitucional e administrativa e de nossos costumes políticos se manifestaram, ora contra, ora a favor do regime federativo.

Surgiu, como desfecho da campanha da sucessão presidencial, em 1930, um fato inédito na história nacional. Os governos constituídos de três Estados da Federação – Minas, Rio Grande do Sul e Paraíba mobilizaram as suas fôrças e os seus recursos contra a União e conseguiram dominar-lhe o govêrno.

Seguiu-se um regime de intervenção generalizada nos Estados e de centralização administrativa, através do decreto nº 19.398, de 11 de novembro de 1930 que instituiu o govêrno provisório, e do decreto nº 20.348, de 29 de maio de 1931, que traçou normas para a administração local.

A Assembléia Constituinte, reunida em 1933, empreendeu a sua obra, depois de um triênio de forte e decidida centralização. As relações entre a União e os Estados foram objeto de larga discussão. As tendências centrífugas e centrípetas se chocaram de novo.

LEVI CARNEIRO pronunciou, então, um discurso sôbre a matéria, combatendo emendas, num e noutro sentido, apresentadas ao projeto constitucional em discussão. Confessou, entretanto, que em todos os países se tem notado “uma forte tendência centralizadora” (“Pela Nova Constituição”, 1937, pág. 177).

O texto constitucional de 1934, no artigo 1º, manteve a República federativa proclamada em 1889. A competência privativa da União foi discriminada nos artigos 5° e 6°; a dos Estados, enumerada nos arts. 7º e 8°. As relações de ordem internacional e serviços de âmbito nacional ficaram, como é óbvio, na órbita federal. Transferiu-se à União o poder de legislar sôbre o direito processual, civil e penal, a par do direito substantivo, que já lhe cabia. Os Estados ficaram com a competência para decretar a Constituição e as leis necessárias à sua administração, respeitados certos princípios e garantias de cunho institucional, bem como a autonomia dos Municípios.

No que toca à discriminação de rendas, houve maior preocupação por parte do legislador constituinte.

Alguns publicistas vão buscar na repartição tributária entre a União e os Estados a origem do Estado federal, nos Estados Unidos. De fato, concertada a Confederação, ficou esta sem receita privativa; os seus recursos, então urgentemente reclamados para fazer face à guerra da independência, eram fornecidos pelos Estados e a Confederação ficava na expectativa de sua diligência, e capacidade impositiva. O poder tributário foi reclamado pela Confederação mediante atos administrativos, que não surtiram o efeito desejado. Finalmente na Convenção de Filadélfia, os Estados delegaram à União o poder de lançar impostos.

ALIOMAR BALEEIRO, comentando o fato, observou: “Essa foi a mais importante novidade do Estado federal, pois as confederações sem poder fiscal direto não eram desconhecidas da História. Esta mostrara que acabavam pelo malôgro irremediável, tanto que não sobreviveram no mundo contemporâneo” (“Estados; Discriminação de Rendas e Reforma Constitucional”, in “Rev. de Direito Administrativo”, vol. 30, pág. 12).

Adotou-se, entre nós, em 1891, um sistema rígido de distribuição de tributos e, em 1930, a arrecadação da União era muito superior à dos Estados. No seio da Constituinte de 1934, LEVI CARNEIRO observava.: “Há uma, série de defeitos decorrentes do sistema tributário de 91, que é necessário encarar e que o anteprojeto constitucional considerou” (“Pela nova Constituição”, pág. 250).

A matéria foi tratada com minúcias e o propósito de assegurar, eqüitativamente, à União e aos Estados meios de subsistência. Os Municípios, entretanto, passaram a ter impostos privativos, por fôrça do pacto federal. Anteriormente, eram as Constituições e as leis estaduais que, parcimoniosamente, dispunham sôbre as rendas municipais.

A vigência da nova discriminação de rendas ficou, porém, adiada para 1º de janeiro de 1936 (art. 6º das Disposições Transitórias da Constituição de 1934).

O regime constitucional estruturado em 1934 teve curta duração. Em 1937 foi outorgada ao país uma nova Carta constitucional com o objetivo de fortalecer os poderes da União e dos Municípios.

Mas o texto não chegou a vigorar integralmente, por falta da ratificação plebiscitária nêle prevista. E a União passou a gerir tôda a administração do país, através de interventores e conselheiros, nomeados pelo poder central. Uma lei federal disciplinou as atividades dos órgãos estaduais e municipais e sua conjugação com os de natureza federal (dec. lei nº 1.202, de 8 de abril de 1939).

Decorridos quase nove anos de ingerência da União na vida dos Estados, foi promulgada a Constituição de 1946.

Restabeleceu-se o sistema estruturado em 1934, de curta duração, com ligeiros retoques. A tendência à centralização, visível desde o início da República, não encontrou, porém, no texto formal e programático de 1946, obstáculo insuperável. Continuou a crescer à sombra da Lei Magna como uma fatalidade. Na Assembléia Constituinte de 1946, MÁRIO MASAGÃO advertia: “Caminhamos, infelizmente, para uma centralização administrativa tão categórica que, nessa marcha, dentro de pouco tempo os últimos resquícios da federação estarão extintos”. E ATALIBA NOGUEIRA se pronunciava da mesma forma: “Estamos, a cada passo, reduzindo o país a Estado unitário. A esfera de competência privativa da União foi se alargando, de tal jeito que contribuiu para essa inconveniente e desnaturante centralização. A União é, aqui, o Estado-providência. Acham-no capaz de resolver, milagrosamente, todos os problemas e lhe entregam, de mãos atadas, a Federação” (JOSÉ DUARTE, “A Constituição Brasileira de 1946”, 1º vol., pág. 208).

Várias causas e múltiplos sintomas desta, evolução podem ser fàcilmente apontados.

OLIVEIRA VIANA, em sua última e recente obra, apontou como motivo principal do insucesso da Federação e da descentralizaçãomunicipalista o preconceito liberal da igualdade dos Estados e Municípios, no gôzo de franquias constitucionais. “É êrro enorme e substancial, que vicia integralmente todo o nosso sistema administrativo de autonomias locais”, disse o grande sociólogo. Para êle, o “mal do federalismo não está na sua descentralização; está, antes, na sua uniformidade” (“Instituições Políticas Brasileiras”, 1949, vol. II, pág. 204).

CÂNDIDO MOTA FILHO, em preleção proferida, em 1951, na Faculdade de Direito de São Paulo (“As transformações do Federalismo”, 1951), afirmou que a Constituição de 1946 reforçou a União em face dos Estados, “em matéria judiciária, eleitoral, militar, municipal, de discriminação de rendas, de funcionalismo público”. “Estamos agora”, – diz êle, diante de uma máquina federal poderosa e extensa, que se faz sentir por tôda a parte” (pág. 20). A intervenção na ordem econômica, por parte da União, teve função preponderante na mudança da fisionomia da Federação. A política de defesa do café foi um marco decisivo para a supremacia da União, comenta o ilustrado professor. E enumera, em seguida, os múltiplos órgãos federais de contrôle da economia nacional, cujas atividades vêm reforçando os poderes da União.

Em verdade, êstes são numerosos. Criados antes da Constituição, continuaram a funcionar após a sua vigência e ampliaram consideràvelmente a sua órbita de ação (autarquias, institutos, fundações públicas, sociedades de economia mista).

A par destas causas de natureza institucional e econômica, de ação corrosiva, mas relativamente lenta, apontadas por OLIVEIRA VIANA e CÂNDIDO MOTA FILHO, como responsáveis pela hipertrofia dos órgãos federais, cumpre acrescentar outra de efeitos drásticos e imediatos: a inflação, cujo surto irrompido, violentamente, durante a última guerra mundial, ainda não foi detido.

As emissões de papel-moeda, pela União, colocam os Estados na sua dependência, impossibilitados de fazê-lo também. Os empréstimos públicas mediante apólices, para cobrir os deficits orçamentários estaduais, se tornam inviáveis, porque a desvalorização da moeda é superior aos juros dêsses títulos. Dai os apelos aos empréstimos diretos feitos pelos Estados e Municípios à União, na pessoa do Banco do Brasil, das caixas econômicas e institutos de previdência. E a pressão dos interêsses locais, para que a União no seu orçamento destine verbas para a realização de obras, é fenômeno típico dêstes últimos tempos.

O chamado Plano Salte, transformado em lei, em maio de 1950 (lei nº 1.102, de 18 de maio de 1950), e que resultou da mensagem presidencial enviada ao Congresso Nacional dois anos antes, continha um vasto programa de obras públicas nos setores de Saúde, Alimentação, Transporte e Energia. As obras planejadas eram, em grande parte, de caráter local, e cuja execução era impossível com os recursos dos Estados e Municípios. Auxílios e subvenções seriam dados, em profusão, a estas entidades, para a realização de serviços de sua competência. Basta ler os anexos da lei número 1.102 para se ter uma idéia da extensão do Plano e da intromissão generalizada da União na criação e manutenção de serviços tipicamente locais, como águas e esgotos, matadouros e restaurantes populares.

O govêrno empossado em 1951 condenou o Plano por falta de receita própria. Mas, à conta do orçamento ordinário e do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico, criado bela lei nº 1.628, de 1952, as obras de caráter estadual e municipal passaram a ter o seu custeio e financiamento providos com recursos da União e do Banco.

Recentemente, a lei nº 2.134, de 14 de dezembro de 1953 (regulamentada pelo dec. n° 35.064, de 13 fevereiro de 1954), assegurou aos Municípios, com renda própria inferior a Cr$ 15.000.000,00 o financiamento, por empréstimos, a longo prazo, para instalação ou ampliação dos seguintes serviços públicos de seu peculiar interêsse: “a) captação, canalização e tratamento químico de água potável; b) produção ou distribuição de energia elétrica; c) rêde de esgotos; d) construção de edifícios adequados para hotéis, hospedarias e cinemas; e) cais de atracação de embarcações e respectivos armazéns; f) matadouros-modêlo, com aproveitamento de subprodutos e balanças automáticas de pesar gado; g) mercados públicos; h) linhas intermunicipais ou interdistritais de transportes marítimos, fluviais ou rodoviários, coletivos de passageiros ou cargas; i) linhas telefônicas, urbanas, intermunicipais, ou interdistritais; j) pontes e estradas sob regime de pedágio; k) hospitais e caso de saúde”.

Tais empréstimos são concedidos pelas caixas econômicas federais e pelos institutos e caixas de aposentadoria.

Em virtude de dispositivos constitucionais, a União entregou ou vai entregar nos Estados e Municípios, nos anos de 1951, 1952, 1953 e 1954, respectivamente, as seguintes parcelas de sua arrecadação: Cr$ 1.618.000.000,00, Cr$ 1.584.000.000,00, Cr$ 2.438.000.000,00 e Cr$ 3.566.000.000,00, correspondentes às cotas para a valorização econômica da Amazônia (art. 199), execução do plano de defesa contra os efeitos da sêca do nordeste (art. 198), aproveitamento das possibilidades econômicas do rio São Francisco (art. 29 do A.D.C.T.) e a participação no impôsto de renda, pelos Municípios (art. 15, § 4°).

Quanto às subvenções e auxílios consignados no orçamento da União, através do Ministério da Educação e Saúde, no período de 1947 a 1954, e destinados a serviços e a entidades locais (exceto no Distrito Federal), elas montam, em milhões de cruzeiros, aos seguintes índices: 1947, 261; 1948, 474; 1949, 871; 1950, 864; 1951, 730; 1952, 526; 1953, 338; 1954, 565.

Após a Constituição de 1946, as universidades e muitas escolas superiores, que eram mantidas pelos Estados ou dêles recebiam subvenções, foram federalizadas, de forma que à União coube mantê-las. A sua despesa cresceu vertiginosamente neste setor, que, assim, pode ser indicado em cifras de milhões: em 1948, 50; 1949, 75; 1950, 92; 1951, 176; 1952, 402; 1953, 533; 1954, 730.

O Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, autarquia federal, realiza grandes obras nos Estados. As chamadas “campanhas”, levadas a efeito com recursos federais, são outra fonte de auxílios aos poderes locais.

Na sessão de encerramento do III Congresso Nacional de Municípios, realizado em maio do corrente ano, na cidade de São Lourenço, o presidente da República proferiu discurso enumerando os auxílios e favores a êles prestados pela União. Disse S. Exª que mais de 300 prefeituras já se haviam dirigido ao govêrno federal pedindo o financiamento previsto na lei nº 2.134, dos quais mais de 100 planos tinham sido aprovados. Aludiu às atividades do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico, no mesmo sentido, bem como das instituições de previdência social e da Fundação da Casa Popular (decreto nº 33.427 de 30 de julho de 1953).

O aludido discurso é um relatório minucioso e circunstanciado da ingerência da União, na vida das comunidades locais.

A tendência à centralização e suas causas

Desta exposição se verifica que a absorção da administração estadual e municipal pela União é notória e incontestável e que ela se vem operando com a solicitação e o pleno assentimento dos Estados e Municípios. Êste fato, de larga repercussão na vida nacional, vai subverter, dentro em pouco, os alicerces do regime federativo. A medida que alienam atribuições e se demitem da direção de serviços locais, em favor da União, ou de órgãos por esta criados, ou controlados, os Estados e Municípios sacrificam a sua autonomia e restringem as áreas administrativas até então submetidas à sua ingerência. A execução de serviços de seu peculiar interêsse passa a depender da decisão e da orientação de entidades centrais, que vão fiscalizar, ainda, o seu funcionamento, para velar pelo emprêgo, ou recuperar, em certos casos, as somas investidas.

Mas o fenômeno observado no Brasil, quanto à prática da federação, não constitui exceção. Em verdade, conforme tive oportunidade de acentuar em trabalho publicado em 1951, a evolução do federalismo em todos os países é no sentido da ampliação dos poderes da União, em detrimento dos concedidos aos Estados. Em estudo recente, L. B. CHAMBERLAIN mostra a posição do problema nos Estados Unidos, para concluir que a ampliação crescente dos poderes da União é um fato consumado. Cita como obras demonstrativas desta tendência: “Federal Aid” (1928). de F. A. MAC DONALD; “The Administration of Federal Grants to the States” (1937), de V. O. KEY; “Uniform Ctate Action” (1934), de J. P. CLARCK; “American Regionalism” (1938), de H. W. ODUN e H. E. MOORE, e “The New Centralization” (1940), de G. C. S. BENSON “Le Gouvernement et Administration aux Etats-Unis”, 1950, ed. Unesco, pág. 366).

WILLIAM ANDERSON, da Universidade de Minnesota, em trabalho apresentado ao VII Congresso Internacional de Ciências Administrativas, reunido em Berna, em 1947, sôbre as relações entre as autoridades centrais e as locais nos Estados Unidos, afirma que a unificação do pais numa só entidade econômica e social tornou imprescindível a ação federal em certas matérias não incluídas pela Constituição dos Estados, na competência federal, sendo que as linhas demarcatórias de competência “estão em grande parte apagadas”:

The lines of division between national and state functions are, therefore, considerable blurred at the present time” (“Combte Rendu”, do Coneresso, pág. 378; tradução de VÍTOR NUNES LEAL, in “Revista de Direito Administrativo”, vol. 9, págs. 72 e 73).

Para GEORGES BURDEAUX, atualmente:

“… les Etats-Unis apparaissent comme une nation fortement centralisé dont le gouvernement assumant sans cesser des obligations nouvelles, etend toujours davantage son emprise sur l’ensemble de la vie du pays, releguant ainsi au second plan l’action des Etats membres” (“Traité de Science Politique”, 1949, tomo II, página 472).

Para HAROLD J. LASKI, a antítese tradicional entre os poderes da União e dos Estados na América do Norte tornou-se inteiramente falsa. Atualmente, o de que se cogita é da coordenação de fôrças para solução de problemas administrativos.

The historic antithesis between the rights of the state and the supremace of the national government becomes utterly unrealistic in the light not werely of technological change, but also of the need to tackle common needs and common opportunities by a joint effort” (“The American Democracy”, 1949, pág. 153).

WILLIAM E. RAPPARD, em obra comemorativa do centenário da Constituição suíça, que faz reserva de poderes aos cantões (art. 3°), dá o seu depoimento no mesmo sentido:

Partout la prépondérance du pouvoir central s’impose de plus en plus aux autorités locales. Partout, donc la nation a tenu à affirmer et à consolider sa maitrise sur l’Etat” (“La Constitution Federale de Suisse”, 1848-1948, pág. 382).

Na Argentina, as críticas ao federalismo são candentes, conforme R. RIVAROLA (“Del regimen federativo al unitario”, 1908). No art. 104, a Constituição reservou, como a nossa, aos Estados os poderes não expressamente outorgados à União. Mas não existe uma tradição federalista pròpriamente dita, afirma DANA MONTANO, professor da Universidade do Litoral. Com relação às perspectivas próximas, quanto ao êxito do federalismo, sua opinião é francamente pessimista porque, diz êle, “la centralización progresiva es una tendencia natural e incontenible del sistema federal de gobierno. Este fenomeno se ha registrado en todos los regimenes federales aun en aquellos paises en que los Estados membros son más celosos de sus prerogativas estaduales” (“La Position des Pouvoirs Provinciaux et Locaux en presenca du nouvoir central dans la Republique Argentine”, 1947, in “Compte Rendu”, do VII Cong. Int. de Cience Adm. de Berne, pág. 384).

As causas da centralização são, principalmente, as transformações econômicas e industriais; a invenção dos meios de transporte; a utilização das fontes de energia, etc. (G. BURDEAU, ob. cit., vol. II, pág. 472; “Pareceres do Consultor Geral da República”, vol. I, março a dezembro de 1951, págs. 125-127; “Rev. de Direito Administrativo, vol. 25, pág. 382).

A êstes testemunhos devo acrescentar o de ROGER PINTO sôbre o que denominou “novo federalismo” norte-americano, segundo o qual “a supremacia federal exprime o caráter nacional, geral, dos problemas políticos, econômicos e sociais”. E cita numerosas decisões da Côrte Suprema, inspiradas neste propósito. Os Estados, outrora tão orgulhosos de sua soberania, são, hoje, meras Províncias, conclusão esta que o mesmo autor foi colher em copiosa bibliografia sôbre o assunto (“La Crise de l’Etat aux Etats-Unis”, 1951, págs. 7-46).

VIII. Desta exposição de opiniões e de fatos resulta que idéia federalista, tal como foi concebida em 1891, é, hoje, um anacronismo. Os Estados, cuja posição no regime o texto republicano procurou fortalecer, perdem terreno em benefício da União e dos Municípios; estão fadados a ocupar uma posição de meros intermediários entre aquelas entidades de direito público, que lhes absorvem e extraem, por um duplo processo de sucção, cada vez mais violento, as suas mais nobres e relevantes atribuições.

O platonismo do texto de 1946, incapaz de deter a marcha avassaladora e desordenada para a centralização e o unitarismo, está a exigir uma reforma que coloque a União e os Estados sob nova equação, mais realística e condizente com os altos interêsses da pátria. A flexibilidade do regime federativo permitirá os reajustamentos necessários, sem o perigo da desagregação, ou da asfixia dos governos locais.

Mas a nova distribuição de competência carece de um enquadramento constitucional, para que as entidades que compõem a Federação saibam qual o verdadeiro caminho a trilhar. Sem uma discriminação adequada, continuarão os Estados a ser despojados, sem medida e sem ponderação, de suas prerrogativas, com a cumplicidade de seus representantes no Congresso Nacional e à sombra de um texto autonomista, cuja inspiração a realidade superou.

Esta dissonância entre a regra constitucional e as atividades do govêrno da União nos setores legislativo e administrativo enseja distúrbios que ao Judiciário cabe decidir, como guardião da Carta Magna. Mas, que argumentos, senão os de ordem puramente literal, poderão ser invocados, pelos defensores da autonomia dos Estados diante da inequívoca, generalizada e incontida absorção das atribuições estaduais por parte da União e dos Municípios?

Como estudioso do Direito, confesso a minha inquietação diante do problema e faço votos rara que se ponha têrmo ao conflito, sim tardança, pelo processo regular de uma revisão constitucional, inspirada na experiência dos últimos tempos, naquilo que ela tem de essencial, duradouro e inevitável.

______________________

Notas:

* N. da R.: Conferência pronunciada no Instituto de Direito Público e Ciência Política, da Fundação Getúlio Vargas, em agôsto de 1954.

Sobre o autor

CARLOS MEDEIROS SILVA | Advogado no Distrito Federal

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