GENJURÍDICO
STF

32

Ínicio

>

Artigos

>

Constitucional

ARTIGOS

CONSTITUCIONAL

Direito, Constituição e Democracia: pode o Judiciário decidir contra a vontade da maioria?

CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL

DEMOCRACIA

Ana Paula de Barcellos

Ana Paula de Barcellos

17/01/2025

Um dos temas fundamentais para o direito constitucional contemporâneo envolve as relações entre direito, constituição e democracia, valendo fazer breve menção sobre elas aqui. Embora constituição e democracia se integrem nos modelos contemporâneos de Estado, como referido, existe entre elas uma tensão permanente e inevitável. E isso porque as Constituições rígidas – aquelas que exigem um procedimento mais complexo para sua alteração do que o necessário para a elaboração de normas ordinárias – pretendem impor limites à ação dos poderes estatais constituídos: sejam esses poderes ocupados e exercidos em um contexto autoritário, sejam eles democráticos. Entre as ações possíveis desses poderes está, por evidente, a elaboração de normas jurídicas, de modo que a Constituição funciona como um limite ao que é possível criar em termos de normas jurídicas no âmbito do Estado, mesmo quando essas normas são criadas de acordo com procedimentos democráticos.

Adicionalmente, se o sistema constitucional previr a possibilidade de o Judiciário controlar a constitucionalidade dos atos dos outros Poderes estatais – como acontece em parte considerável do mundo hoje –, isso significa que caberá ao Judiciário, como regra, interpretar e aplicar esses limites. O resultado do controle de constitucionalidade por parte do Judiciário pode variar, embora o mais comum seja que ele impeça que o ato do outro Poder produza efeitos1

Dois exemplos ilustram o ponto. Imagine-se que, em determinada eleição federal, um partido apresenta como um dos pontos do seu programa político a proposta de alterar a legislação penal para restringir a aplicação da pena de prisão apenas a crimes com emprego de violência, devendo todos os demais ser punidos por meio de multas, restrição a direitos (que não a liberdade de ir e vir) ou prestação de serviços comunitários. Imagine-se que esse partido recebe ampla votação popular, forma maioria no Congresso Nacional, além de eleger o Presidente da República, e uma lei nesse sentido é aprovada.

Imagine, porém, que na sequência há uma impugnação no sentido da inconstitucionalidade da tal lei e o Judiciário a declara inconstitucional, suspendendo sua eficácia. Imagine-se agora o mesmo exemplo apenas com a alteração do conteúdo da proposta do partido que vem a ser eleito: a proposta, agora, é no sentido de ampliar as penas de prisão e alocar mais recursos para a construção de novos presídios. O partido obtém votação expressiva, a nova lei é aprovada, mas vem a ser declarada inconstitucional pelo Judiciário. Independentemente da opinião política que se tenha acerca de qualquer das duas propostas, não há dúvida de que a decisão judicial em qualquer das hipóteses está em clara tensão com o que a maioria decidiu na matéria, dando origem ao que se identifica como dificuldade contramajoritária.

Muitos elementos procuram conciliar essa tensão, valendo enunciar três deles desde logo. Em primeiro lugar, a circunstância de que a Constituição estabelece limites ao que as maiorias podem decidir não significa, por evidente, que não haja espaço legítimo para diferentes decisões – como é natural em um ambiente de pluralismo político – e que todas elas sejam constitucionais. A Constituição, a pretexto de estabelecer limites, não ocupa todo o espaço da política nem retira das maiorias o poder de se autodeterminarem em cada momento histórico. Isso significa, portanto, que nem tudo com o que se discorda politicamente é, por isso, inconstitucional. Dificilmente haverá unanimidade em uma democracia, de modo que é apenas natural que determinadas visões sejam vitoriosas e outras não.

De outra parte, em segundo lugar, é também certo que o conceito de democracia é hoje mais complexo do que apenas aquilo que as maiorias decidem, embora a decisão majoritária seja sempre um conteúdo essencial do conceito. O argumento, portanto, é o de que determinados limites impostos pela Constituição funcionam a favor da democracia, e não contra ela. Esses dois elementos, na realidade, se interligam para identificar que as Constituições em Estados democráticos devem ter duas funções principais.

Assim, compete a ela veicular consensos mínimos, tão essenciais para a dignidade das pessoas e para o funcionamento do próprio regime democrático que não podem ser afetados por maiorias políticas ocasionais (ou exigem, para isso, um procedimento especialmente complexo). Esses consensos elementares, embora possam variar em função das circunstâncias políticas, sociais e históricas de cada país2, envolvem a garantia de direitos fundamentais, a separação e a organização dos poderes constituídos3 e a fixação de determinados fins de natureza política ou valorativa. Com efeito, se as maiorias pudessem alterar as regras do próprio funcionamento democrático e alijar de direitos grupos da sociedade, a própria democracia seria subvertida.

Além disso, cabe à Constituição garantir o espaço próprio do pluralismo político, assegurando o funcionamento adequado dos mecanismos democráticos. A participação popular, os meios de comunicação social, a opinião pública, as demandas dos grupos de pressão e dos movimentos sociais imprimem à política e à legislação uma dinâmica própria e exigem representatividade e legitimidade corrente do poder. Há um conjunto de decisões que não podem ser subtraídas dos órgãos eleitos pelo povo a cada momento histórico. A Constituição não pode, não deve, nem tem a pretensão de suprimir a deliberação legislativa majoritária.

É correto dizer que esses dois elementos, para além do debate teórico, foram refletidos pelas opções do direito constitucional positivo brasileiro. De fato, na Constituição de 1988, determinadas decisões políticas fundamentais do constituinte originário são intangíveis (art. 60, § 4º) e nela se estabeleceu um procedimento legislativo especial para a aprovação de emendas constitucionais (art. 60). De outra parte, o texto faz expressa opção pelo princípio democrático e majoritário (art. 1º, caput e parágrafo único), define como princípio fundamental o pluralismo político (art. 1º, V) e distribui competências pelos órgãos do Poder (Título IV, art. 44 e segs.). Há um claro esforço de equilíbrio entre constitucionalismo e democracia.

Por fim, um terceiro elemento que procura equilibrar Constituição e democracia decorre da circunstância de que é a própria Constituição que define o funcionamento dos diferentes aspectos desse sistema, sendo certo que a Constituição decorre, ela mesma, de uma decisão tomada democraticamente por uma maioria. Além disso, observados os limites e requisitos previstos pela Constituição, as maiorias podem também alterar o próprio texto constitucional por meio de emendas.

CLIQUE E CONHEÇA O LIVRO DA AUTORA

1 Para mais detalhes, confira o capítulo sobre controle de constitucionalidade. Em resumo: as Constituições impõem limites às maiorias; o sentido e o alcance desses limites são definidos pelo Judiciário, um órgão que em geral não é eleito; e ao definir esses limites, o Judiciário, de alguma forma, impede que as decisões dos demais Poderes – que em uma democracia são, como regra, eleitos – produzam efeitos.

2 V. J. J. Gomes Canotillho, Rever ou romper com a Constituição dirigente? Defesa de um constitucionalismo moralmente reflexivo. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, n. 15, 1996, p. 7-17.

3 Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, art. 16: “Qualquer sociedade na qual a garantia dos direitos não está em segurança, nem a separação dos poderes determinada, não tem Constituição.”

Assine nossa Newsletter

Li e aceito a Política de privacidade

GENJURÍDICO

De maneira independente, os autores e colaboradores do GEN Jurídico, renomados juristas e doutrinadores nacionais, se posicionam diante de questões relevantes do cotidiano e universo jurídico.

Áreas de Interesse

ÁREAS DE INTERESSE

Administrativo

Agronegócio

Ambiental

Biodireito

Civil

Constitucional

Consumidor

Direito Comparado

Direito Digital

Direitos Humanos e Fundamentais

ECA

Eleitoral

Empreendedorismo Jurídico

Empresarial

Ética

Filosofia do Direito

Financeiro e Econômico

História do Direito

Imobiliário

Internacional

Mediação e Arbitragem

Notarial e Registral

Penal

Português Jurídico

Previdenciário

Processo Civil

Segurança e Saúde no Trabalho

Trabalho

Tributário

SAIBA MAIS

    SAIBA MAIS
  • Autores
  • Contato
  • Quem Somos
  • Regulamento Geral
    • SIGA