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Direito ao esquecimento: o retorno?
Anderson Schreiber
18/10/2022
Foi publicado em 30 de junho um importante acórdão proferido pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que ratificou, por maioria, decisão emitida em 2018 para ordenar que o nome de certa pessoa fosse desvinculado, nos resultados de motores de busca na internet, de notícias sobre suspeita não comprovada de fraude em concurso público realizado dez anos antes (Recurso Especial 1.660.168/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 21.6.2022)[1]. O caso havia voltado à 3ª Turma para exercício de eventual juízo de retratação[2], em razão da decisão proferida em fevereiro do ano passado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no célebre caso Aída Curi.
Direito ao esquecimento: caso Aída Curi
O nome de Aída Curi, vítima de um feminicídio brutal em 1958, voltou a circular na mídia quando uma emissora de TV anunciou a exibição de documentário do gênero true crime[3] a respeito de sua morte. Familiares de Aída ajuizaram, então, ação de indenização por danos morais, alegando que a exibição do documentário os fez reviver dores do passado e que a emissora teria violado seu “direito ao esquecimento” da tragédia, ocorrida há mais de 50 anos. O caso, como se sabe, chegou ao Supremo por meio do Recurso Extraordinário nº 1.010.606, em cujo julgamento a Corte fixou a seguinte tese:
“É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais — especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral — e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível.”[4]
A tese fixada pela Suprema Corte, embora celebrada pela imprensa como mais uma vitória da liberdade de expressão, não chegou a ser muito conclusiva, e o julgamento acabou por revelar opiniões muito distintas sobre o tema entre os ministros do STF — a ponto de o ministro Luiz Edson Fachin destacar, ao final do julgamento, que “há uma miríade de fundamentos distintos nos votos” e que, por esta razão, talvez fosse melhor não fixar uma tese naquela ocasião. De fato, a tese que acabou sendo adotada pelo STF, embora rejeite a ideia de que a passagem do tempo, por si só, poderia amparar uma pretensão de obstar a divulgação de fatos verídicos, ressalva expressamente que “eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais — especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral — e das expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível”.
A exceção, como se vê, é amplíssima. Daí por que se imaginava, desde o ano passado, que o tema acabaria por voltar aos tribunais superiores, conquanto despido da polêmica nomenclatura (direito ao esquecimento) que acaba por contaminar a discussão com falsas percepções sobre a tutela que efetivamente se pretende ou se deveria pretender. A recentíssima decisão da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reforçou esta impressão na comunidade jurídica nacional.
Decisão da 3ª turma
Decidiu a 3ª Turma, por maioria liderada pelo ministro Marco Aurélio Bellizze, que a decisão de 2018 não contraria a tese fixada pelo STF. Isso porque, em síntese, (a) o voto proferido pelo ministro Dias Toffoli, relator do Recurso Extraordinário 1.010.606/RJ, foi expresso ao afirmar que o direito ao esquecimento não se confunde com a desindexação de conteúdo; e (b) o direito ao esquecimento não foi fundamento da decisão proferida pelo STJ em 2018 e não houve determinação de retirada de notícias da internet, mas apenas de desvinculação do nome em motores de busca[5].
Vale registrar que esta não foi a primeira vez que o STJ foi instado a realizar juízo de retratação em casos envolvendo o chamado direito ao esquecimento. Em novembro de 2021, por exemplo, a 4ª Turma ratificou a decisão tomada em outro importante precedente na matéria, relativo à Chacina da Candelária. Concluiu a 4ª Turma, por maioria, que: “não bastasse a literalidade da segunda parte da tese apresentada (Tema n. 786/STF), os pressupostos que alicerçaram o entendimento do Supremo Tribunal Federal foram coincidentes com aqueles nos quais se estruturou a decisão tomada no recurso especial pela Quarta Turma do STJ, justificando-se a confirmação do julgado proferido por este colegiado. De fato, no caso em exame, conforme análise pormenorizada dos fatos e julgamento desta Turma, constatou-se exatamente a situação abusiva referida pelo Supremo, situação para a qual aquele Tribunal determinou: em sendo constatado o excesso na divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais, se proceda o julgador competente ao estancamento da violação, com base nas legítimas formas previstas pelo ordenamento”.[6]
Discussões sobre o direito ao esquecimento
A continuada celeuma em torno do direito ao esquecimento deve-se, em larga medida, à sua própria designação. Embora consagrada pelo uso doutrinário e jurisprudencial, a expressão “direito ao esquecimento” acaba por induzir em erro o intérprete, sugerindo que haveria um direito de fazer esquecer, ou de apagar a história ou, ainda, de suprimir referências públicas a acontecimentos pretéritos. Não é disso, todavia, que se trata — ao menos, não, em sentido técnico-científico. A expressão direito ao esquecimento designa tão-somente o direito de se opor a uma representação falsa ou equivocada da pessoa humana perante a sociedade, porque baseada em fatos desatualizados que a trajetória daquela mesma pessoa acabou por superar[7].
Embora, em regra, a recordação pública de fatos pretéritos não mine o desenvolvimento pessoal de ninguém, há alguns fatos que podem assumir tamanha intensidade que a permanente vinculação do nome da pessoa àqueles fatos pode acabar retratando aquela pessoa sob falsas luzes (sotto falsa luce, nas palavras de Giuseppe Cassano)[8] perante a sociedade, apresentando-a publicamente de modo não fidedigno a quem realmente é.
O que se está a discutir, portanto, sob o rótulo ambíguo de “direito ao esquecimento” é, por exemplo, se uma pessoa que alterou seu gênero tem direito de se insurgir contra a constante vinculação pública do seu nome ao seu sexo de nascimento ou, ainda, se um ex-presidiário pode se opor à permanente associação pública do seu nome ao crime pelo qual já cumpriu pena, o que coloca em risco o seu direito à ressocialização. Avulta em importância, nesta temática, a questão da desindexação em motores de busca, uma vez que, na realidade atual, todo ser humano está sujeito a ser identificado e “compreendido” com base nos resultados que a internet exibe a partir da busca do seu nome[9]. Os dez primeiros resultados são usualmente considerados como uma biografia reveladora da pessoa em sua plenitude, influenciando desde avaliações em entrevistas de emprego até o início de relacionamentos afetivos.
O tema também tangencia a exposição literária, televisiva ou jornalística de crimes reais (true crime), que, conquanto lícita e legítima, deve respeitar, na sua forma, os direitos fundamentais dos retratados, em especial sua intimidade e sua vida privada. Aqui, pensa-se frequentemente na vítima, que tem o direito evidente de não ser perseguida publicamente, todo o tempo, pelo padecimento de um ilícito penal, mas é certo que também o ofensor, após cumprida a pena perante o Estado, tem direito a não ter sua intimidade devassada pela curiosidade pública, que se associa, não raro, a um espírito punitivo permanente e atemporal, que transcende a duração do apenamento estatal. Se esse espírito é compreensível em relação aos familiares da vítima — cuja perda não se restaura jamais —, já não o é em relação ao Estado ou à sociedade civil, ao menos em um país cujo ordenamento jurídico limita expressamente a duração das penas.
Outros casos
Emblemático, nesta direção, foi o caso da veiculação, em 2012, de matéria jornalística que tinha como mote o homicídio de uma jovem atriz, que chocou o Brasil no início da década de 1990. A reportagem, veiculada duas décadas depois do crime, retratava em detalhes a vida contemporânea de uma mulher condenada pelo crime, fazendo expressa alusão às pessoas de seus filhos e de seu atual marido. A reportagem, que transcendia em muito o eventual interesse histórico pela reconstituição do crime, gerou uma ação indenizatória, julgada procedente no âmbito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ). Merece destaque a seguinte passagem do voto da desembargadora Jacqueline Lima Montenegro, que enfatizou que a mesma reportagem pode ser lícita no tocante à recordação do crime, mas ilícita no tocante à invasão da intimidade familiar da ex-detenta:
“Não se está aqui a dizer que nunca mais se poderá relembrar o triste episódio pela autora protagonizado, mas, como já destacado, é preciso respeitar a nova vida por ela construída, respeitar, principalmente, a vida de seus familiares, os quais nunca estiveram pessoalmente vinculados ao fato criminoso do qual participou. Assim, lícita é a reportagem na parte em que narra o evento criminoso, suas consequências, sua repercussão, mas viola frontalmente o direito fundamental à vida privada na parcela em que passa a relatar a vida atual da Recorrente e seus familiares, também recorrentes. (…) A ilicitude da exposição da vida privada dos filhos e marido é flagrante. Não custa lembrar que a reportagem os assombra com um passado que não lhes pertence. É que além da preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem, assegurada a qualquer indivíduo, deve também a eles ser garantida a privacidade, vetor de promoção de direitos e de proteção da criança e do adolescente.”[10]
Vale notar que havia sido também formulado, no âmbito da referida ação judicial, pedido “de abstenção de realização de novas reportagens que revivam o fato criminoso”, mas tal pedido não restou acolhido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, pois, “no que se se refere ao crime per si, o ato de reviver o episódio significa mero registro de um fato social, que goza de manifesto reconhecimento histórico e social”[11]. Não se trata, portanto, de impedir a recordação de crimes pretéritos, mas de impedir que o modo de retratação destes fatos históricos acabe, pelo exercício abusivo da liberdade de informação, devassando a vida íntima de pessoas que já cumpriram pena ou, ainda pior, seus filhos e demais familiares, violando não apenas a temporalidade da pena, mas a sua pessoalidade.
A análise destas diferentes decisões judiciais revela que um instigante cenário se desenha no Brasil nesta matéria: o chamado “direito ao esquecimento”, expulso da nossa ordem jurídica pela porta, reingressa pelas janelas. Bem lida, a decisão proferida pelo STF em 2021 parece ter se centrado sobre a rejeição da nomenclatura ambígua, afastando, acertadamente, um direito de fazer esquecer ou de apagar a história, mas, tanto nos votos dos ministros da Suprema Corte quanto nos novos precedentes que já vão se acumulando no Superior Tribunal de Justiça e nos tribunais estaduais, vislumbra-se o acolhimento da ideia de que toda pessoa humana tem direito a ser retratada publicamente de modo condizente com sua real trajetória, não se podendo amplificar artificiosamente ou por mero sensacionalismo fatos do passado, de maneira a comprometer o livre desenvolvimento da pessoa humana no momento presente.
Chame-se a isso “direito ao esquecimento” ou “direito à retratação fidedigna”, ou se invoque simplesmente o direito à privacidade em sentido amplo ou, ainda, o direito à identidade pessoal, o que importa aqui não é o nomen juris, mas a efetiva proteção do livre desenvolvimento da pessoa humana nesta realidade cada vez mais caracterizada pela rotulação simplista, quando não automatizada, de todos que vivem em sociedade.
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NOTAS
[1] Na decisão original de 2018, a 3ª Turma do STJ havia mantido acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que condenou as rés, sociedades responsáveis por um motor de busca na internet, “a procederem à instalação de filtros ou outro mecanismo que desvincule o nome da apelante das notícias relativa à suposta fraude praticada no XLI Concurso para Ingresso na Magistratura de Carreira do Estado do Rio de Janeiro”, conquanto reduzindo a multa diária fixada pela corte estadual (STJ, REsp 1.660.168/RJ, rel. para acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 8.5.2018).
[2] Conforme previsto no artigo 1.040, II, do Código de Processo Civil: “Art. 1.040. Publicado o acórdão paradigma: (…) II – o órgão que proferiu o acórdão recorrido, na origem, reexaminará o processo de competência originária, a remessa necessária ou o recurso anteriormente julgado, se o acórdão recorrido contrariar a orientação do tribunal superior”.
[3] De acordo com a Academia Internacional de Cinema, o gênero true crime “tem como premissa esmiuçar casos verídicos de crimes e investigações, expondo histórias e transformando-as em obras audiovisuais, livros ou podcasts. Traduzindo ao pé da letra, apesar do nome ser usado assim mesmo, em inglês, o termo significa algo como ‘crime real’.” (O que é True Crime?, AIC, 9.5.2022).
[4] Tema 786 (STF, Tribunal Pleno, RE 1.010.606/RJ, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 11.2.2021).
[5] Como bem destacado pelo Relator: “Da análise do acórdão proferido no presente recurso especial, verifica-se que não foi determinada a exclusão das notícias desabonadoras envolvendo a autora nos bancos de dados pertencentes às rés – isso nem sequer foi pleiteado na ação de obrigação de fazer –, havendo tão somente a determinação da desvinculação do nome da autora, sem qualquer outro termo, com a matéria referente à suposta fraude no concurso público da Magistratura do Rio de Janeiro (desindexação). O conteúdo, portanto, foi preservado. Na verdade, a questão foi decidida sob o prisma dos direitos fundamentais à intimidade e à privacidade, bem como à proteção de dados pessoais, e não com base no direito ao esquecimento, que significaria permitir que a autora impedisse a divulgação das notícias relacionadas com a fraude no concurso público, o que, como visto, não ocorreu.” (STJ, 3ª T., REsp 1.660.168/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 21.6.2022).
[6] STJ, 4ª T., REsp 1.334.097/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 9.11.2021.
[7] Para mais detalhes, seja consentido remeter a Anderson Schreiber, Direito ao esquecimento, in Anderson Schreiber, Bruno Terra de Moraes e Chiara Spadaccini de Teffé (coords.), Direito e Mídia: Tecnologia e Liberdade de Expressão, São Paulo: Foco, 2022. pp. 217-230.
[8] A expressão é de Giuseppe Cassano, I diritti della personalità e le aporie logico dogmatiche di dottrina e giurisprudenza – Brevissimi cenni, disponível no site Diritto & Diritti: www.diritto.it.
[9] Sobre o tema, é imprescindível a leitura da obra de Júlia Costa de Oliveira Coelho, Direito ao Esquecimento e seus Mecanismos de Tutela na Internet: Como Alcançar uma Proteção Real no Universo Virtual?, São Paulo: Foco, 2020, passim.
[10] TJRJ, 15ª Câmara Cível, Apelação 0236835-44.2013.8.19.0001, Rel. Des. Jacqueline Lima Montenegro, j. 15.3.2016. O acórdão do TJRJ, registre-se, foi integralmente mantido pela 3ª Turma do STJ, tendo o Ministro Cueva destacado que a aludida reportagem “destina-se exclusivamente a explorar a vida contemporânea dos autores, dificultando, assim, a superação de episódio traumático.” (STJ, 3ª T., REsp 1.736.803/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 28.4.2020).
[11] TJRJ, 15ª Câmara Cível, Apelação 0236835-44.2013.8.19.0001, Rel. Des. Jacqueline Lima Montenegro, j. 15.3.2016.