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A Defensoria Pública está legitimada a defender direitos difusos
Tiago Fensterseifer
27/04/2017
Uma réplica aos Embargos Declaratórios da CONAMP na ADI 3.943/DF
A página não está ainda totalmente virada na discussão envolvendo a legitimidade da Defensoria Pública para o ajuizamento de ação civil pública, ao menos não para a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp). Muito embora a decisão unânime do Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 3.943/DF (publicada em 6 de agosto de 2015), seguindo o voto-relator da ministra Cármen Lúcia, a Conamp interpôs Embargos de Declaração em face da referida decisão, acompanhados de parecer (Legal Opinion) do renomado jurista e professor Lenio Streck. Entre os principais pontos destacados e controvertidos na petição e no parecer, estão a amplitude do conceito de necessitado e a legitimidade da Defensoria Pública para a tutela e promoção de “direitos (e interesses) difusos”.
Como se trata de tema sobre o qual empreendi pesquisa[1], vou ousar, de forma respeitosa, tecer alguns comentários sobre a questão e discordar da posição sustentada pela Conamp e pelo professor Lenio, enfrentando, em especial, a discussão em torno da legitimidade da Defensoria Pública para promover ação civil pública na defesa de “direitos (e interesses) difusos”. Para refrescar a memória do leitor, vale destacar que tudo começou com a Lei 11.448/2007, ao incluir a Defensoria Pública no rol dos entes legitimados para a propositura de ação civil pública, mais precisamente no artigo 5º, II, da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85). De lá para cá, muita água rolou. Na verdade, uma “avalanche normativa” sobreveio no sentido de consolidar a referida legitimidade, tanto no plano constitucional quanto infraconstitucional. A jurisprudência também caminhou consistentemente no mesmo sentido, com destaque para o STJ[2] e, mais recentemente, o STF (vide o julgamento da ADI 3.943). E a doutrina? Salvo raras exceções, a doutrina processual, especialmente aquela que obra no campo do direito processual coletivo, é esmagadoramente favorável à legitimidade da Defensoria Pública.
Para iniciar, acho insustentável o argumento de que a Constituição, por obra do legislador constituinte derivado, frente a nova redação do artigo 134 insculpida pela Emenda Constitucional 80/2014, quis excluir a atuação da Defensoria Pública em matéria envolvendo “direitos e interesses difusos” ao utilizar tão somente a expressão “direitos coletivos”. O raciocínio empregado para obter tal entendimento está embasado no fato de que, ao assinalar apenas a expressão “direitos coletivos” no caput do referido dispositivo, e não “interesses difusos e coletivos”, como o fez no artigo 127, III, quando dispõe sobre a legitimidade do Ministério Público para propor ação civil pública, o legislador constitucional teria marcado sua posição na matéria. Ou seja, os tais “direitos coletivos” fariam referência tão somente aos “direitos coletivos em sentido estrito”. Detalhe: a expressão “em sentido estrito” não está escrita no dispositivo constitucional citado.
Mais um alerta antes de avançar na discussão. À época da promulgação da CF/88, as três categorias de “direitos coletivos em sentido amplo” (individuais homogêneos, coletivos em sentido estrito e difusos) não estavam aclaradas no plano legislativo, pois a Lei da Ação Civil Pública não trazia tal distinção, o que aconteceu somente por meio do Código de Defesa do Consumidor (artigo 81), portanto, após 1988. Por isso, tenho para mim que o legislador constituinte originário não tivesse tamanha compreensão e precisão conceitual ao tratar da matéria. Por outro lado, hoje a distinção entre as três categorias de direitos coletivos, não obstante as suas limitações, conforme trataremos logo à frente, encontra-se consagrada na legislação, na doutrina e na jurisprudência, e, portanto, faria muito mais sentido que o legislador constitucional ao se servir da expressão “direitos coletivos” no caput do artigo 134 (por inclusão da EC 80/2014) estivesse englobando as três categorias. Do contrário, teria cravado no texto constitucional a “qualificadora”: direitos coletivos “em sentido estrito”.
E quando a mesma norma constitucional (caput do artigo 134) incumbe a Defensoria Pública de promover os “direitos humanos” das pessoas necessitadas, devo interpretar tal dispositivo de modo a excluir do rol dos direitos humanos o “direito humano ao ambiente” e todos os demais direitos humanos com potencial de serem enquadrados na categoria dos “direitos difusos”? Também faço vista grossa ao artigo 5º, § 1º, da CF/88 que busca assegurar a máxima eficácia possível aos direitos fundamentais[3], o que implica assegurar, no campo fático, estruturas organizacionais e procedimentais[4] capazes de torná-los efetivos? Ou afastar e limitar a possibilidade do manuseio de um instrumento processual (no caso, a ação civil pública) para a defesa de determinado direito fundamental não é criar barreira à eficácia e também à efetividade do mesmo, descumprindo referido comando constitucional? Não por outra razão, a conexão entre direitos fundamentais e procedimentos judiciais, como pontua Robert Alexy, objetiva unir o aspecto material e o aspecto procedimental num modelo que garanta o primado do direito material.[5]
Ao defender tal posicionamento restritivo para a legitimidade da Defensoria Pública, fica parecendo que a leitura feita por seus defensores da Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública (LC 80/94), inclusive diante da profunda reforma sofrida pela mesma em decorrência da LC 132/2009, ficou estagnada no artigo 1º do diploma, abstraindo completamente o conteúdo do artigo 4º do diploma, precisamente onde está consignado o rol de atribuições institucionais. Se há algum papel, quero acreditar que sim, reservado ao legislador infraconstitucional na confecção tessitura normativa, especialmente em se tratando de matéria processual, acho pertinente conectarmos o caput do artigo 134 da CF/88 ao artigo 4º da LC 80/94 para a compreensão da matéria. Vamos lá. Vou destacar apenas os dispositivos mais “contundentes” para sustentar a posição defendida. O primeiro deles é o inciso VII do artigo 4º. Está consignado nele que consiste em atribuição institucional da Defensoria Pública: “promover ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes”. Posso parar por aqui? Eu, pessoalmente, já me dou por satisfeito. Mas vamos adiante.
Quais “direitos difusos” são esses referidos ali? Será que, por exemplo, os direitos ecológicos estão incluídos? A resposta vem de forma assertiva na sequência. O inciso X do mesmo artigo 4º assinala como atribuição institucional: “promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela”. Todas, repito, todas as dimensões (ou gerações) de direitos fundamentais, até para não termos que “fatiar” a dignidade das pessoas assistidas pela Defensoria Pública, compõe o regime de proteção dos indivíduos e grupos sociais necessitados a ser observado pela Defensoria Pública. Do contrário, a instituição não estará cumprindo o seu papel delineado pelo legislador. Gostemos ou não, está na lei. Será que isso não é uma resposta do legislador à possibilidade ou não de a Defensoria Pública promover ação civil pública na defesa e promoção de “direitos e interesses difusos”? Está escrito ali “direitos difusos”, além de o dispositivo esmiuçar todas as dimensões de direitos fundamentais. Não é invenção deste signatário. E tampouco foi um Defensor Público que fez a lei em questão, mas sim o legislador democrático nacional, inclusive com “quórum qualificado” (artigo 69 da CF/88).
Caso ainda não tenha conseguido convencer os céticos, vamos voltar ao texto constitucional. O artigo 129, § 1º, da CF/88, inserido no âmbito do regime constitucional do Ministério Público, revela de forma cristalina a “vontade do constituinte” de democratizar os instrumentos processuais (extrajudiciais e judiciais) de tutela coletiva. Conectado com a função institucional do Ministério Público, de promover a ação civil pública (artigo 129, III), o § 1º do mesmo dispositivo constitucional estabelece que “a legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei” (grifos nossos). E a legislação infraconstitucional diz o quê por acaso, como vimos antes? Há evidente vontade do constituinte e do legislador infraconstitucional de “alargar” o espectro da legitimidade para a ação civil pública, inclusive para além das entidades públicas (como no caso das associações civis), ampliando os canais de tutela jurisdicional dos direitos coletivos. Não é diferente o entendimento de Mauro Cappelletti, que inspirou a doutrina brasileira na matéria, o qual sempre defendeu, para a representação dos interesses difusos em juízo, uma legitimação plural[6], a cargo de diferentes e diversos agentes (públicos e privados).
Mudando um pouco a prosa, outra questão, ao meu sentir, pouco elucidada pela doutrina quando se trata da temática dos “direitos (e interesses) difusos” é que todas as dimensões (ou gerações) de direitos fundamentais são passíveis de se enquadrarem, a depender do caso concreto, em tal categoria de diretos e, portanto, serem defendidas por meio de instrumentos processuais coletivos (como é o caso da ação civil pública). Isso, a meu ver, não é dito muitas vezes pela doutrina de forma clara. É preciso romper com a ideia que habita o “senso comum” de que apenas alguns direitos (o mais notório deles seria o direito fundamental ao ambiente) seriam passiveis de serem reconhecidos como “direitos e interesses difusos”. Trata-se de uma categoria jurídica de índole preponderantemente processual, e não material. Em outras palavras, qualquer direito “material” teria potencial para ser enquadrado em tal categoria e, consequentemente, defendido no âmbito processual, em dada situação concreta de alcance coletivo, por meio de instrumentos coletivos (entre os quais, o mais notório é a ação civil pública). A própria dicotomia operada no campo da Teoria dos Direitos Fundamentais[7] entre a perspectiva ou dimensão subjetiva e a perspectiva ou dimensão objetiva auxilia na compreensão de tal entendimento, ou seja, coloca em pauta e importância de colocarmos em perspectiva a defesa dos direitos fundamentais tanto pelo prisma do indivíduo quanto da coletividade. A questão chave é que, dependendo da situação concreta, a violação a determinado direito fundamental pode transcender da esfera individual e alcançar grupo ou mesmo a coletividade como um todo.
Ao ler o que dizem alguns críticos, e isso está presente na petição e no parecer que a acompanha (e especialmente na inicial da ADI 3.943), fica parecendo que a Defensoria Pública pretende o reconhecimento da sua legitimidade para a propositura de ação civil pública para “furtar” (ou se sobrepor às) atribuições do Ministério Público e passar a atuar em temas de protagonismo do Parquet como proteção do ambiente, improbidade administrativa, etc. Isso, com o devido respeito, é uma visão absolutamente distorcida da realidade, basta mirar para as dezenas de casos reais de atuação da instituição em matéria coletiva detalhados no I Relatório Nacional de Atuações Coletivas da Defensoria Pública (2013)[8] e no II Relatório Nacional de Atuações Coletivas da Defensoria Pública (2015)[9]. São pouquíssimas as ações da Defensoria Pública em tais matérias. O problema é que a “cortina de fumaça” posta propositadamente por alguns, ao destacar somente os exemplos referidos anteriormente e outros supostos desvios de atuação institucional, não permite dar a devida visibilidade para as áreas mais importantes e sensíveis do ponto de vista dos direitos das pessoas necessitadas, e que estão alinhadas integralmente à identidade constitucional da Defensoria Pública. Estou a falar, por exemplo, dos direitos sociais.
Muitos não percebem que os direitos sociais podem, sim, assumir a feição de direitos e interesses difusos a depender do caso concreto que se apresente[10]. No plano legislativo, a caracterização dos direitos sociais como direitos difusos pode ser apreendida inclusive a partir da abertura do catálogo de direitos coletivos do artigo 1º, IV, da Lei 7.347/85. Por outro lado, é flagrante a identidade entre os usuários dos serviços públicos prestados pelo Estado, por exemplo, na área da saúde e da educação, e as pessoas necessitadas assistidas pela Defensoria Pública. A omissão ou atuação insuficiente do Estado (Estado-Legislador ou Estado-Administrador) na promoção de políticas públicas sociais reflete diretamente na violação a direitos de indivíduos e grupos sociais necessitados. Muito embora a atuação individual da Defensoria Pública represente a parte mais expressiva das medidas extrajudiciais e judiciais adotadas pela instituição (como, por exemplo, pedidos individuais de vaga em creche e escola, de fornecimento de medicamentos e tratamento médico, etc.), em algumas situações poderá ocorrer a necessidade de uma atuação de índole coletiva.
Do contrário, restringir a legitimidade em matéria coletiva e privar a Defensoria Pública do uso de tal instrumento processual representaria o mesmo que, em termos caricaturais (retomando a imagem do personagem de Charles Chaplin em Tempos Modernos, de 1936, onde o mesmo tenta sobreviver em meio ao mundo moderno e industrializado, operando uma máquina com movimentos repetitivos), não disponibilizar a determinado operário de uma fábrica máquinas e técnicas hoje existentes e capazes de aperfeiçoar e trazer maior economia e produtividade ao seu trabalho. Quando voltamos o olhar para os “operadores” do Sistema de Justiça — e o Defensor Público se coloca entre eles, assim como o Promotor de Justiça —, o uso de tais “técnicas processuais” implica economia e celeridade processual, bem como maior efetividade no tocante à tutela de direitos, dado o alcance social dos instrumentos de tutela coletiva, como é o caso da ação civil pública. Quem ganha, em última instância, com o aperfeiçoamento técnico proporcionado pelos instrumentos processuais coletivos são justamente as pessoas assistidos pela Defensoria Pública, ou seja, aquelas com maior grau de vulnerabilidade existencial e que mais precisam de tutela jurisdicional para resguardarem e efetivarem seus direitos fundamentais (sejam eles de natureza liberal, social ou ecológica).
1 FENSTERSEIFER, Tiago. Defensoria Pública, direitos fundamentais e ação civil pública: a tutela coletiva dos direitos fundamentais (liberais, sociais e ecológicos) dos indivíduos e grupos sociais necessitados. São Paulo: Saraiva/IDP, 2015.
2 Entre outros julgados: STJ, REsp 1.106.515/MG, 1ª Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 16.12.2010; STJ, RESP 1.264.116/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 18.10.2011; STJ, REsp 1.275.620/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 16.10.2012; STJ, AgRg no REsp 1.243.163/RS, 6ª Turma, Rel. Min. Og Fernandes, j. 19.02.2013; STJ, REsp 1.372.253/MG, Rel. Min. Sérgio Kukina, j. 10.09.2013.
3 SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais. 10.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 270.
4 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 8.
5 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 490.
6 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 2002.
7 V. SARLET, A eficácia dos direitos fundamentais…, p. 141 e ss.
8 Disponível em: https://www.anadep.org.br/wtksite/I-RELAT_RIO-NACIONAL.pdf.
9 Disponível em: https://www.anadep.org.br/wtksite/Preview_Livro_Defensoria_II_Relat_rio(1).pdf.
10 Reconhecendo que os direitos sociais podem apresentar tanto uma titularidade individual quanto coletiva (ou difusa), v. SARLET, A eficácia dos direitos fundamentais…, p. 214-218.
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