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Controle de constitucionalidade pelo Legislativo

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É dever do Legislativo, e não só do Judiciário, defender a Constituição

João Trindade Cavalcante Filho

João Trindade Cavalcante Filho

30/10/2025

A maioria das obras que aborda o controle de constitucionalidade (ou a fiscalização de constitucionalidade, como se queira), no Brasil, feito pelo Poder Legislativo ou expõe o controle parlamentar de constitucionalidade de forma superficial, quase dando mera notícia de sua existência; ou, pior ainda, simplesmente o ignora, como se a competência para avaliar a constitucionalidade de leis e projetos no direito brasileiro fosse circunscrita ao Judiciário [1].

Nas raras vezes em que a matéria é tratada, os textos costumam trazer uma sucessão de lugares-comuns, de estereótipos, sem qualquer base empírica que os fundamente. Chega-se inclusive a afirmar que o controle legislativo seria ineficaz, por seu caráter político [2] — sem, contudo, qualquer levantamento quantitativo ou qualitativo que embase essa ideia; ou a dizer que o controle realizado pelos órgãos parlamentares “tem caráter político, os deputados e senadores que a compõem declaram a constitucionalidade ou não das normas de acordo com os interesses envolvidos. A metodologia da valoração utilizada relega a apreciação jurídica e aplica um critério de conveniência e oportunidade”[3].

Ora, se isso fosse verdade, não haveria sequer controle de constitucionalidade, nessas situações. Com efeito, a fiscalização de constitucionalidade é caracterizada justamente por se constituir num juízo técnico [4] sobre a compatibilidade da norma sob exame com as regras e os princípios da Constituição (compatibilidade vertical). Afirmar que o controle preventivo de constitucionalidade pelo Legislativo é realizado com base em “conveniência e oportunidade” é o mesmo que negar a existência desse controle, em suma.

A importância do controle de constitucionalidade pelo Legislativo

É necessário rever essa postura de menosprezo pelo controle preventivo de constitucionalidade, em geral, e pelo controle parlamentar preventivo, em especial [5]. Caso seja utilizado em todo o seu potencial, o mecanismo de controle de constitucionalidade pelo Legislativo, especialmente no âmbito das comissões de Constituição e Justiça, pode oferecer uma oportunidade ímpar para a filtragem constitucional e para a verdadeira “depuração” do processo legislativo, melhorando a qualidade das leis produzidas e até mesmo trazendo ganhos de segurança jurídica e de supremacia da Constituição.

O papel do controle preventivo de constitucionalidade no Legislativo

No limite, um controle preventivo de constitucionalidade efetivamente exercido pode contribuir para a redução da necessidade de atuação jurisdicional a posteriori, servindo até mesmo como instrumento de diminuição significativa da quantidade de demandas que chegam ao Poder Judiciário — ou até como uma forma de frear os tão discutidos fenômenos do ativismo judicial e da judicialização da política [6]. Trata-se de um controle político (porque ocorre no curso do próprio processo legislativo — em que feitas escolhas políticas – e porque realizado por órgão não jurisdicional [7]) de constitucionalidade (e, portanto, lastreado precipuamente em argumentos técnicos, e não meramente políticos) [8].

A natureza política e jurídica do controle de constitucionalidade pelo Legislativo

Por ser realizada por órgãos parlamentares e que, por conseguinte, operam normalmente sob a lógica do princípio majoritário (não sendo frequentes, portanto, as dificuldades contramajoritárias que tanto afetam a jurisdição constitucional), tal verificação de constitucionalidade preventiva tem inegável feição política [9]. Mais que isso: é realizada por órgãos formados por membros eleitos, que não apenas têm na política seu ambiente, como precisam prestar contas aos eleitores, de modo que naturalmente levam em conta em seus posicionamentos questões como ideologia político-partidária, agenda parlamentar, força política do proponente, posição da opinião pública etc. Não que tais elementos sejam propriamente estranhos à jurisdição constitucional [10] e [11], mas se pode afirmar que têm um peso maior quando se trata de órgãos políticos em sentido estrito.

Não obstante isso, caracteriza-se como um instrumento jurídico de defesa da Constituição, uma instância de filtragem de elementos contrários às normas constitucionais, como forma de evitar que ingressem no ordenamento. Trata-se de um controle exercido por critérios técnico-jurídicos. Com efeito, ainda que por razões de conveniência política se deseje arquivar ou ver aprovada uma proposição, no momento da realização do controle preventivo só são admitidos como ratio decidendi argumentos de natureza jurídico-constitucional. Não se pode considerar correto, sob o ponto de vista normativo, um parecer de comissão que, por exemplo, conclua pela constitucionalidade da proposição porque ela é meritória – em casos tais, pode-se apontar um desvirtuamento do controle, uma “contaminação” de argumentos técnicos por mera análise política.

Da síntese de seu aspecto político (orgânico) com sua natureza técnica (funcional), nasce a ideia de que o controle preventivo de constitucionalidade pelo Poder Legislativo é, simultaneamente, um controle político e jurídico – encontrando-se, como afirmado, na imbricação desses dois subsistemas sociais; é político porque realizado por órgãos de natureza política; mas é técnico porque sua função é de verificação de compatibilidade formal e material de proposições legislativas com as normas jurídicas supremas do ordenamento.

Riscos e desafios do controle de constitucionalidade parlamentar

Essa conclusão sobre a natureza híbrida do controle preventivo realizado pelo Legislativo traz consigo algumas consequências relevantes, tais como a necessidade de se abordar especificamente os riscos de “contaminação” de argumentos jurídicos por argumentos políticos, reduzindo a efetividade dessa ferramenta de defesa da Constituição; o cuidado para não se reduzir o controle preventivo a um mecanismo político de maioria/minoria, uma vez que isso significaria ignorar ou enfraquecer um meio relevante de defesa da Constituição, atenuando-lhe a supremacia [12]; e a indispensabilidade de construção de um meio idôneo para se verificar a efetividade (ou falta dela) desse controle, dado que sua natureza (também) política mostra que muitas vezes se prefere utilizar mecanismos implícitos de controle, em detrimento daqueles que afirmam formalmente a inconstitucionalidade da proposição.

Dever solidário e o controle de constitucionalidade pelo Legislativo

Mais ainda: não há sentido em se proibir que a defesa da Constituição seja realizada também por órgãos de natureza política [13]. Como advertem Dimitri Dimoulis e Soraya Lunardi, a pergunta (que tantas discussões gera e gerou) sobre quem deve ser o guardião da Constituição, se apresentada sob a forma de dilema, pode levar a respostas funcionalmente inadequadas [14]. O dever de proteger a Constituição é solidário entre todos os órgãos da soberania, cada um dentro de suas funções, à luz da independência e harmonia entre os poderes. E ainda mais: não existe apenas uma prerrogativa ou função, mas também um verdadeiro dever de zelar pela Constituição. Nesse sentido, a tarefa de evitar que leis inconstitucionais sejam promulgadas — ou, se promulgadas, de retirá-las do ordenamento — não apenas cabe a todos os órgãos da soberania, como também é uma prerrogativa de exercício vinculado, e não discricionário.

Porém, não se deve confiar a uma única forma ou a um único órgão a defesa da Constituição. Assim, apesar de existirem críticas à jurisdição constitucional [15], considera-se geralmente que confiar o controle de constitucionalidade apenas ao próprio Legislativo significaria, ao fim e ao cabo, não estabelecer controle algum [16]: “a pluralidade dos fiscais da constitucionalidade é mais indicada e corresponde ao imperativo democrático” [17].

Assim, se “é inadmissível que se pretenda investir o legislador (…) da única forma processual de controle da concretização constitucional” [18], por outro lado “não se nega (…) que o Parlamento exerça a defesa da Constituição” [19]. Especificamente em relação ao caso brasileiro, aliás, a primeira forma histórica de controle de constitucionalidade cabia justamente ao Legislativo. Em outras palavras: “É preciso agregar, e não subtrair, órgãos na tutela e cumprimento da Constituição” [20].

Se não há sentido em confiar apenas ao legislador o controle dos próprios atos, menos sentido ainda faz simplesmente ignorar essa que potencialmente é uma forma poderosa de controle, de modo a evitar o surgimento de leis inconstitucionais, em benefício da supremacia e da força normativa da Constituição, e ainda produzir o efeito secundário de reduzir ou minimizar a judicialização da produção legislativa. Não há grandes inconvenientes em fortalecer um mecanismo interno e preventivo de controle de constitucionalidade, mas os benefícios de uma maior efetividade desse funcionamento são relevantes.

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NOTAS

[1] Outros casos de controle de constitucionalidade por órgãos não jurisdicionais – tais como o poder de veto presidencial por motivo de inconstitucionalidade (Constituição, art. 66, § 1º) – são geralmente apenas citados, sem merecer estudos mais aprofundados do ponto de vista do papel de defesa da Constituição.

[2] Cf. SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 863.

[3] AGRA, Walber de Moura. Manual de direito constitucional. São Paulo: RT, 2003. p. 399.

[4] Não se está aqui negando a dimensão política intrínseca a todo e qualquer controle de constitucionalidade (seja ele jurisdicional ou não), conforme será exposto adiante. Apenas se afirma que o controle de constitucionalidade baseia-se (embora não exclusivamente) em uma análise técnico-jurídica sobre a compatibilidade de uma norma inferior em relação a outra, de extração constitucional. Assim, ao menos em tese, não haveria uma diferença ontológica entre o controle jurisdicional e o controle político de constitucionalidade.

[5] Exceção a essa omissão seja feita, em relação a ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal serrano. Curso de direito constitucional. São Paulo: Verbatim, 2011. p. 58; e BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direto brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 68.

[6] Sobre a importância do controle preventivo de constitucionalidade e sua possível correlação com o aumento do número de leis declaradas inconstitucionais, cf. HONG, WanSik. Rationalization of government legislation procedures. In: CONGRESS OF THE INTERNATIONAL ASSOCIATION OF LEGISLATION, 11th, 2014, Seoul. Innovation of legislative process: proceedings… Seoul: International Association of Legislation, 2018. p. 85-122. Disponível aqui. Acesso em: 3 mar. 2021. p. 90.).

[7] Cf. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 49.

[8] Cf. LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Ciudad de México: Herder, 2005; e LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. v. 2.

[9] Ao que parece, a origem da ideia de um controle político de constitucionalidade pode remontar a Sieyès, que defendeu, na França Revolucionária, a criação de um órgão de controle de constitucionalidade vinculado ao Parlamento, o jurie constitutionelle. Cf. SALDANHA, Nelson. Formação de teoria constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 141. No mesmo sentido: BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direto brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 64.

[10] Cf. NOVELINO, Marcelo. A influência dos fatores extrajurídicos nas decisões do STF. Salvador: JusPodivm, 2021. Especialmente p. 203 et seq.

[11] Em Portugal, por exemplo (isso para citar apenas um país), há diversos estudos empíricos analisando a influência do fator “lealdade partidária” nos votos dos membros do Tribunal Constitucional. Cf. GAROUPA, Nuno; MULLOR, Joan Solanes; VIOLANTE, Teresa. Constitutional courts and national parliaments in Spain and Portugal. In: FERNANDES, Jorge M.; LESTON-BANDEIRA, Cristina (Orgs.). The Iberian legislatures in comparative perspective. London: Routledge, 2019. p. 251. O tema, porém, é bastante controverso: na Alemanha, por outro lado, considera-se que “[p]arty affiliation, however, does not play a decisive role in the decision-making process inside the Court, as the voting behaviour, for instance, proves.” (LANDFRIED, Chritstine. The impact of the German Federal Constitutional Court on politics and policy output. Government and Opposition, v. 20, n. 4, p. 522-541, 1985. Disponível aqui.

[12] Sobre o conceito e a origem histórica da ideia de supremacia constitucional, cf. SALDANHA, Nelson. Formação de teoria constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 135 et seq.

[13]   Até mesmo porque, num certo sentido, mesmo os tribunais são órgãos políticos, porque atuam de forma independente e não hierarquizada, exercendo uma parcela do poder estatal. Cf. LOURENÇO, Rodrigo Lopes. Controle da constitucionalidade à luz da jurisprudência do STF. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 4.

[14]   “O problema da guarda da Constituição não deve ser formulado na forma de dilema, devendo-se escolher um guardião (…). A interpretação sistemática da Constituição brasileira mostra que é competência comum das autoridades estatais ‘zelar pela guarda da Constituição’. Independentemente de tais normas, o princípio da supremacia constitucional impõe que todas as autoridades estatais velem pela correta aplicação da Constituição, respeitando e fazendo respeitar a sua supremacia. Como aceitar, então, que um órgão criado pela Constituição para exercer as competências por ela previstas não deva aplicar e fazer respeitar seus mandamentos?” (DIMOULIS, Dimitri; LUNARDI, Soraya. Curso de processo constitucional. São Paulo: RT, 2017. p. 45.).

[15]   Por todos, ver WALDRON, Jeremy. The core of the case against judicial review. The Yale Law Journal, New Haven, v. 115, p. 1346-1406, Apr. 2006.

[16]   Por todos, cf. TAVARES, André Ramos. Teoria da justiça constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 86.

[17]   DIMOULIS, Dimitri; LUNARDI, Soraya. Curso de processo constitucional. São Paulo: RT, 2017. p. 44.

[18]   TAVARES, André Ramos. Teoria da justiça constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 86.

[19]   TAVARES, André Ramos. Teoria da justiça constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 87.

[20]   TAVARES, André Ramos. Teoria da justiça constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 86.

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