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Concessão de Loteria – Incompetência dos Municípios e do Distrito Federal

LOTERIA

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REVISTA FORENSE 154

Revista Forense

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06/10/2022

REVISTA FORENSE – VOLUME 154
JULHO-AGOSTO DE 1954
Semestral
ISSN 0102-8413

FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO

FUNDADORES
Francisco Mendes Pimentel
Estevão L. de Magalhães Pinto,

Abreviaturas e siglas usadas
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CRÔNICA

DOUTRINA

PARECERES

NOTAS E COMENTÁRIOS

  • A Regulamentação do Direito de Greve—  Geraldo Montedônio Bezerra de Meneses; Délio Barreto de Albuquerque Maranhão; Lúcio Bittencourt, com restrições; Dario Cardoso; Oscar Saraiva; Anor Butler Maciel; Evaristo de Morais Filho
  • Dispõe sobre a suspensão ou abandono coletivo do trabalho (*Projeto nº 4.350 – 1954**) — Bilac Pinto
  • A interpretação das Leis Fiscais — Georges Morange
  • Necessidade de uma lei de Processo Administrativo — Hélio Beltrão
  • Conceito de Direito Comparado — Rodrigues de Meréje
  • Despedida indireta — Indenizações cabíveis — Henrique Stodieck
  • Brigam o vernáculo e o direito — Jorge Alberto Romeiro
  • 127° aniversário da Fundação dos Cursos Jurídicos no Brasil — Hésio Fernandes Pinheiro
  • Desembargador Medeiros Júnior

BIBLIOGRAFIA

JURISPRUDÊNCIA

LEGISLAÇÃO

Sobre o autor

Ivair Nogueira Itagiba

PARECERES

Concessão de Loteria – Incompetência dos Municípios e do Distrito Federal

– A loteria é jôgo que se arrola quando não autorizado em lei, na categoria proibida dos jogos de azar.

– Sòmente à União e aos Estados se consente na exploração de loterias, que é vedada aos Municípios e ao Distrito Federal.

PARECER

1. Pede-se-me parecer acêrca da competência legislativa da Câmara Municipal do Distrito Federal sôbre a regulamentação da loteria.

Pergunta-se-me se ao Distrito Federal é lícito explorar ou conceder loteria, sem prévia modificação do dec.-lei nº 6.259, de 10 de fevereiro de 1944, que rege a matéria.

Indaga-se-me, ao cabo de contas, se, no sistema constitucional vigente, pode o Distrito Federal ser havido por Estado-membro, para o efeito de, sem vulneração das normas daquele decreto-lei, explorar ou conceder loteria.

Jurisdição de concessão de loteria

2. Perante o direito político, jurisdição vem a ser a órbita do poder do Estado. Por sua natureza, o poder jurisdicional constitui unidade indivisível. Está, todavia, sob certos aspectos, sujeito à divisão.

A forma federativa do Estado brasileiro determina uma distribuição do poder jurisdicional entre a União, os Estados-membros e os Municípios. Sem embargo da jurisdição ser eminentemente nacional, existem três níveis de jurisdição: federal, estadual e local.

Entrou para o domínio dos axiomas o conceito de ser a competência a medida da jurisdição. Pois a competência demarca e particulariza a jurisdição. A União jurisdiciona o território brasileiro, sem interferir na esfera jurisdicional dos Estados-membros, e êstes na dos Municípios, mercê da competência a cada qual traçada pelo Estatuto Fundamental. A competência fixa, em resumo, as funções jurisdicionais, estabelecendo a distribuição qualitativa e quantitativa das atribuições dos órgãos de jurisdição.

A Constituição do Brasil, no art. 5º, delimita a esfera de competência da União, permitindo, no art. 6º, a legislação estadual supletiva e complementar sôbre determinadas matérias. E de ver que, aqui, existe concorrência de competência com os Estados-membros, ao passo que, ali, há privatividade de competência.

Na competência privativa da União figura o legislador sôbre direito penal, civil, comercial, processual, eleitoral, aeronáutico e do trabalho. Ao direito penal, e conseguintemente à competência da União, cabe definir o crime e conceituar a contravenção.

O ato criminoso e o fato contravencional são duas espécies de ilícito penal. Ontològicamente, não há diversidade entre crime e contravenção. A diferença não é senão de grau de quantidade. Um e outro pressupõem a liberdade da vontade. A responsabilidade penal funda-se, destarte, na responsabilidade moral.

Tôda a legislação sôbre êsse assunto que, em verdade, entende com a responsabilidade e a indelinqüência, com a autoria e a pena, com as causas excludentes da criminalidade e a extinção da punibilidade, com a definição do crime e da contravenção, com a criação de novas e a eliminação de antigas modalidades criminais ou contravencionais, não pode transpor o âmbito da competência impositiva da União.

Ao Estado-membro ou ao Distrito Federal é defeso prescrever norma, inda que supletiva ou complementar, que diga respeito a tais matérias. A competência concorrente do Estado-membro com a União versa sôbre outros assuntos. Viga, em questões de previdência social, de produção e consumo, de educação e justiça, de proteção da saúde e outros, suprir deficiências das leis federais e atender a peculiaridades locais.

Tripartição nas órbitas federal, estadual e municipal

A competência no regime federativo triparte-se nas órbitas federal, estadual e municipal. A distribuição é feita à justa, para se evitarem exorbitações. O sistema é de círculos: o maior é a União; o imediato, o Estado-membro, e o menor, o Município.

Legislando e resolvendo sôbre matérias de suas atribuições, sem interpenetração ou excessos, cada, qual atende a interêsses comuns e compatíveis; cumpre sua alta finalidade; respeita os postulados constitucionais, e serve a bom servir à Nação.

A União tem competência impositiva para legislar acêrca dos assuntos previstos no art. 5º, para intervir nos Estados-membros pelos motivos designados no artigo 7º, e para decretar os impostos mencionados no art. 15 da Constituição.

Os Estados-membros se regem pelas Constituições e leis que adotarem, sem postergação, todavia, dos princípios básicos de nossa Magna Carta. Proíbe-se-lhes se destronquem da União, para se tornarem independentes, ou se constituírem em membros de outra unidade do direito das gentes. Veda-se-lhes se arrogarem competências legislativas e tributárias da União, ou dos Municípios. Permite-se-lhes decretem os impostos a que alude o artigo 19 do Cód. Constitucional brasileiro. Consentem-se-lhes proverem às necessidades de seu govêrno e de sua administração, devendo intervir nos Municípios para lhes regularizar as finanças.

Os Municípios possuem autonomia; fazem eleição de seus prefeitos e vereadores; cuidam da própria administração no que respeita ao seu peculiar interêsse; decretam e arrecadam os tributos de sua competência constitucional; aplicam suas rendas e organizam os serviços públicos locais.

O Distrito Federal tem organização administrativa e judiciária regulada por lei federal. Pela singularidade de sua posição de capital da União Brasileira, cabe ao Distrito Federal decretar e arrecadar os mesmos impostos que o nosso Pacto Fundamental atribui aos Estados-membros e Municípios.

A competência do Estado-membro, do Distrito Federal e do Município circunscreve-se nas atribuições indicadas. Constitucionalmente são intransponíveis as raias de competência definida de cada um dos níveis em que se divide o círculo federativo.

Sobre a loteria

A loteria é jôgo que se arrola, quando não autorizado por lei, na categoria proibida dos jogos de azar (art. 51 da Lei das Contravenções Penais). A lei penal, da competência impositiva da União, cumpre dispor sôbre a ilicitude daqueles jogos em que o ganho e a perda dependem exclusivamente da sorte. A ela, e só a ela, compete contemplar essas figuras contravencionais.

Talqualmente ao poder federal fica adstrito o excluir da lista da proibição jogos da fortuna. Porque os que dependem da fôrça, da habilidade ou do cálculo são havidos por lícitos.

À lei civil, de idêntica competência da União, cabe definir a natureza da obrigação contraída no jôgo, declarar a existência ou inexistência da relação jurídica nêle fundada e haver, no caso da loteria autorizada por fôrça de norma legal, o respectivo bilhete como título de crédito, ao portador, que faz jus ao prêmio que lhe correspondeu no sorteio, podendo cobrá-lo por meio de ação em juízo, e transmiti-lo por mera tradição.

A menos de estar autorizada por lei federal, ao Estado-membro se permite regulamentar o jôgo de azar. A regulamentação da loteria pode ser objeto de concessão ou de exploração da União e do Estado-membro.

Calha assinalar que o art. 51 da Lei das Contravenções Penais pune o promover ou o fazer extrair loteria sem autorização legal. O dec.-lei nº 6.259, de 1944, derrogou as normas de direito penal que proíba jôgo de azar, para autorizar a União a explorar ou conceder serviço de loteria federal e ao Estado-membro, na área de seu território, para uma só concessão ou uma só exploração lotérica. Sòmente à União e ao Estado-membro se consente nessa concessão ou exploração.

Vedação de concessão de loterias

Vedou a lei que os Municípios e o Distrito Federal concedam ou explorem loterias.

Com referência às unidades municipais, objetivou propositadamente impedir a facilidade de concessões que teriam a desvirtude de difundir ao excesso aquela modalidade de jôgo, com sacrifício da ética e gravame da economia de nossas populações.

No que tange ao Distrito Federal, a lei lhe negou muito de indústria o direito à concessão ou à exploração lotérica. Fê-lo, certamente, por ser o Distrito Federal um dos maiores mercados da loteria federal, sede da Capital da União. Aí, de há muito se acha estabelecida emprêsa concessionária da loteria federal, a única a exercer a concessão (art. 4º do dec.-lei nº 6.259). Se a União entender de, esgotado o prazo da concessão, explorar diretamente o serviço de loteria, teria no Distrito Federal o seu maior concorrente. Tudo isso quis a lei evitar. Eis a inteligência dos preceitos contidos no diploma legal que autoriza a regulamentação da loteria pela União e pelos Estados-membros.

Para o Distrito Federal explorar ou conceder loteria, seria de mister se modificasse a lei, introduzindo-lhe norma explícita permissiva do direito à concessão ou exploração direta.

Lei nº 6.259, de 1944

A lei nº 6.259, de 1944, assume feição de ordem pública. E’ rigorosamente obrigatória. E’ a um tempo imperativa e proibitiva. Todos os seus preceitos têm conteúdo intencional. O rigor em que foi vazada e a exteriorização do direito que objetivou, não autorizam interpretação analógica ou por fôrça de extensão.

Quem se der a examiná-la no conjunto de seus elementos corpóreos ou físicos, na expressão gramatical de suas disposições, bem como na sua substância intrínseca ou incorpórea, no seu espírito, no seu alcance, não terá dúvida acêrca de sua finalidade. Procurou indubitàvelmente a fixação de uma ordem, que só poderá ser modificada ou alterada por outra lei, emanada do mesmo poder.

Não vale debater, discutir, polemizar: a lei nº 6.259 firmou uma base; traçou uma esfera. O Legislativo do Distrito Federal exorbitará, se invadir o campo reservado à legislação da União.

Não há fugir dêste dilema: ou o Distrito Federal se rende à evidência de uma realidade legal que lhe veda regulamentar a loteria, ou pleiteia junto ao Congresso Nacional a modificação do texto, com o acréscimo de parágrafo ou de expressões que lhe venham permitir o direito conferido à União e outorgado aos Estados-membros. Não se deve deslembrar, nem deixar passe despercebido o rigorismo da redação do art. 4º: “Sòmente a União e os Estados poderão explorar ou conceder o serviço de loteria…”. O advérbio de exclusão sòmente não foi empregado a êsmo. Sòmente significa ùnicamente.

A lei prescreve, pois, que a União e os Estados federados, exclusivamente êles, e nenhuma outra pessoa de direito público ou organização política ou administrativa, como o Distrito Federal, os Territórios e Municípios, podem conceder ou explorar loteria. Vê-se claramente visto que ao Distrito Federal, em virtude de norma legal imperativa, ficou defeso o regulamentar loteria.

6. Poder-se-á dizer porventura que se subentende o Distrito Federal incluído no texto do art. 4º? Não e re-não. Se, com efeito, sangrarmos as veias dêsse texto, para lhe arrancarmos a substância intrínseca, dêle retiramos êste sentido: o Distrito Federal ficou excluído dentre as entidades de direito público que podem conceder ou explorar loteria.

As Constituições republicanas instituíram categorias de governos entre nós. Há governos da União, dos Estados-membros, dos Municípios, do Distrito Federal e dos Territórios.

Todos êsses governos exercem simultâneamente a sua jurisdição no mesmo espaço territorial. Para se evitar o caos do exercício simultâneo dessas jurisdições sôbre o mesmo território, foi de mister estabelecer campo distinto, esfera definida de exercício de cada qual das autoridades ou governos.

As leis federais, ao conferirem às entidades políticas e administrativas atribuições não demarcadas constitucionalmente à sua autoridade, devem expressamente designar cada uma dessas entidades. Se fazem alusão sòmente a Municípios, evidente é que os Estados-membros ficaram à margem. Se indicam ùnicamente a União e os Estados-membros, óbvio é que o Distrito Federal não terá jus à faculdade, ao direito ou à atribuição concedida. E’ o que, à verdade, ocorre na espécie examinada neste parecer.

Distrito Federal é considerado Estado-membro?

Não se argumente que no nosso sistema constitucional o Distrito Federal é considerado Estado-membro, e, por conseguinte, não vulnera a lei nº 6.259, ao criar o serviço de loteria dentro no seu território.

O Distrito Federal, não é um Estado federado. Dir-se-á que é Estado-membro sui generis. Porque lhe cabem os mesmos impostos atribuídos aos Estados federados e aos Municípios, consoante determina o § 4º do art. 26 da Constituição. Isso não vem ao caso. Pois é bastante assinalar que êle se transformará em nova unidade federativa, com o nome de Estado da Guanabara, quando a Capital se transferir para o planalto central do País (§ 4º do art. 4º da Constituição).

Acrescente-se que sua organização administrativa e judiciária é regulada por lei federal, ao revés do que sucede com os Estados-membros que se regem por Constituições e leis que adotarem, observados os princípios estabelecidos na Carta Constitucional brasileira.

Os governadores dos Estados federados são eleitos por um prazo certo; o prefeito do Distrito Federal é nomeado pelo presidente da República, com aprovação do Senado Federal, e demissível ad nutum.

Nota-se por êsses mosaicos fundamental diferença entre Estado-membro e o Distrito Federal. O antigo Município Neutro, o Rio de Janeiro, hoje Distrito Federal, há anos e anos que goza de instituições municipais. Pela Constituição de 1891 (arts. 2º e 3º), o Distrito Federal ficou em posição de permeio. Recebeu características de Município e de Estado-membro.

O Código Político de 1934 acentuou-lhe a feição de Estado federado, embora não o integrasse de todo nessa categoria, quando, atendendo ao anseio de seu corpo eleitoral, tornou eletivo o cargo de prefeito, e exigiu para a intervenção federal os mesmos casos tocantes às unidades federativas (arts. 12 e 4º das Disposições Transitórias).

A Outorga de 1937, regressando à época colonial, rezava que o Distrito Federal será administrado pela União, enquanto sede do govêrno da República (art. 30).

A Carta Magna de 1946, ora vigente, retornou aos princípios estabelecidos pela Constituição de 1891 (arts. 4º, 25 e 26). O prefeito é nomeado. A Câmara é eleita e composta de vereadores, à maneira das outras Câmaras Municipais. A autonomia municipal da legislatura é assegurada, com cerceamento, entretanto, da apreciação do veto do prefeito às suas resoluções, da competência exclusiva do Senado Federal.

A Câmara do Distrito Federal não chega a ser idêntica às assembléias legislativas estaduais. Assemelha-se, mas não se equipara a elas. Não se pode, por todos êsses motivos, haver o Distrito Federal por Estado-membro. Estado federado o será, um dia, quando se transferir a Capital da União para o planalto central.

Tôdas as Constituições, do império ou da República, contêm uma pluralidade de normas. Não se agrupam as suas disposições em uma unidade sistemática. Porque se referem a múltiplos assuntos. Os princípios enunciados dizem respeito a matérias definidas, coordenadas aqui, relacionadas ali, restringidas acolá, retificadas mais além. Dentro dêsses princípios, olhados em conjunto ou parcialmente, nunca por nunca se poderá igualar o Distrito Federal a Estado-membro. Participar o Distrito Federal de instituições estaduais e municipais não significa que seja um Estado-membro.

Não é demais repetir, concluindo, que o Distrito Federal não é um Estado-membro, nem pode, à vista do exposto, conceder ou explorar loteria.

E’ êste o meu parecer.

Rio de Janeiro, 8 de julho de 1952. – Ivair Nogueira Itagiba, advogado no Distrito Federal.

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