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Algumas notas acerca da iniciativa privada na educação — artigo 209 da Constituição de 1988

Ingo Wolfgang Sarlet
03/12/2025
A Constituição de 1988, ao tratar do direito fundamental à educação, prevê a possibilidade de o ensino ser ofertado livremente pela iniciativa privada mediante duas condições expressas. O cumprimento das normas gerais de educação nacional e a autorização e avaliação da qualidade da educação prestada por entes particulares por parte do poder público.
Histórico Constitucional da Liberdade de Ensino no Brasil
Traçando um breve histórico do tratamento da matéria nas Constituições brasileiras anteriores, tem-se que a liberdade da iniciativa privada na prestação de atividades educacionais possui previsão constitucional no Brasil desde a Constituição de 1934. Em seu artigo 154, menciona-se os estabelecimentos privados de ensino e a necessidade de serem considerados oficialmente idôneos para que usufruíssem de imunidade tributária, sem pormenorizar como se verificaria tal idoneidade.
A Constituição de 1937, em seu artigo 128, previa que o ensino era livre à iniciativa individual e de associações públicas ou privadas, sem maiores restrições, conferindo no artigo 129 um caráter subsidiário da educação básica pública, voltada para populações hipossuficientes, em relação à privada. Também previu o dever do Estado de amparar financeiramente as escolas privadas por meio do fornecimento de bolsas de estudo e outros aportes financeiros. A Constituição de 1946, por outro lado, afirmou o dever do Estado como central no ensino básico e previu a liberdade da iniciativa particular de ensino condicionada às leis infraconstitucionais que a regularem, conforme o texto de seu artigo 167.
A Constituição de 1967 também trouxe a liberdade da iniciativa privada para atuar na educação, limitada à posterior normativa infraconstitucional. Entretanto, enumerou princípios a serem observados pela legislação de ensino em seu artigo 168 §3º. Dentre eles, cabe destacar a previsão em seu inciso IV de que o poder público deveria substituir gradativamente o regime de gratuidade no ensino médio e no superior por um sistema concessão de bolsas de estudos, mediante restituição por parte do beneficiário. Retornava o caráter subsidiário e provisório da educação pública gratuita. A Emenda Constitucional nº1/1969 manteve essa redação em seu artigo 176 §3º.
O artigo 209 da CF/88
A Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, em um contexto de redemocratização e afirmação dos direitos fundamentais na Constituição, discutiu o tema da educação provida pela iniciativa privada para chegar à redação atual do artigo 209. Os debates inicialmente se deram na Subcomissão de Educação, Cultura e Esportes. Conforme afirmaria o presidente da comissão, o constituinte Hermes Zanetti, em entrevista “a grande disputa era entre a escola particular e a escola pública, esse pode ser considerado um divisor de águas” [1]. De fato, embora houvesse consenso de que a existência e livre implementação do ensino privado era inerente à democracia, o primeiro debate se deu em relação ao financiamento público do ensino privado.
A subcomissão concluiu em seu relatório pela redação de um artigo em que se resguarda a oferta de ensino livre à inciativa privada, observadas as regulamentações legais – que se traduziria no inciso I do artigo 209 da Constituição — sendo vedado o financiamento público para entidades de ensino particular [2]. Entretanto, tal redação foi modificada na segunda etapa de tramitação na constituinte.
A Comissão temática de Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação modificou a proposta, suprimindo a restrição de aportes públicos às instituições privadas — que viria a ser autorizada mediante condições pelo artigo 213 da Constituição — e antecipou a redação do segundo inciso do artigo 209. O texto proposto por essa segunda Comissão resguardava à instituição privada de ensino a liberdade de se desenvolver sem interferência do poder público “salvo para fins de autorização, reconhecimento e credenciamento de recursos e supervisão da qualidade” [3].
Por fim, na Comissão de Sistematização, o conteúdo do artigo foi reorganizado na forma do texto final vigente até os dias atuais: “Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I – cumprimento das normas gerais da educação nacional; II – autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público” [4]. Tal artigo foi aprovado pelo plenário da Assembleia Nacional Constituinte e não foi objeto de Emenda nos 37 anos da Constituição de 1988.
Visão da doutrina
A respeito desse dispositivo constitucional, aproveitando-se o modelo similar lusitano, ressalta-se a manifestação doutrinária de Jorge Miranda, que considera a criação de escolas distintas daquelas do Estado como um desdobramento lógico do direito de liberdade de ensino. Ainda que o Estado tivesse recursos para subsidiar a educação para toda população em escolas públicas, o que não é o caso no Brasil, a liberdade de educação compreende que sua oferta não seja monopólio do poder público [5].
A mesma visão é reforçada por Marcos Maliska, em obra específica sobre o direito à educação [6]. Para o autor, o ensino é atividade típica e fundamental do Estado, o que não exclui a participação da iniciativa privada na oferta de ensino, a qual é expressiva e cumpre importante papel no Brasil. Nessa perspectiva também se mostra interessante a definição de Carlos Cury, da educação como um serviço público que, somente se observadas as condições do artigo 209 da Constituição, pode ser livremente exercido pela iniciativa privada [7].
O Artigo 209 CF/88 na LDB e nos Sistemas de Avaliação
Tais condições são pormenorizadas na legislação infraconstitucional, em que cabe destacar a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 – Lei de Diretrizes Básicas da Educação (LDB). Também devem ser observados pelas instituições privadas o Plano Nacional de Educação (PNE), e as resoluções do Conselho Nacional de Educação (CNE), órgão deliberativo dotado de poder normativo do Poder Executivo. A LDB traz em seu artigo 3º, inciso V, como princípio geral da educação brasileira, a coexistência entre instituições públicas e privadas. Em seu artigo 7º, ela replica o texto do artigo 209 da Constituição, contudo adicionando uma terceira condição para a inciativa privada. O autofinanciamento dessas instituições, excetuados os casos apresentados no artigo 213 da Constituição, que se refere ao ensino comunitário, confessional ou filantrópico sem fins lucrativos.
Quanto ao inciso II do artigo 209 da Constituição, que trata da autorização e avaliação da qualidade do ensino privado, a LDB atribui à União a autorização e o reconhecimento de cursos de nível superior, conforme seu artigo 46. As instituições privadas de ensino superior, por tanto, integram o sistema federal de ensino. Por outro lado, é atribuída aos estados a autorização e credenciamento de instituições de nível fundamental e estadual, e aos municípios a autorização de instituições de educação infantil.
No que se refere à avaliação de qualidade, observa-se que o papel da União é proeminente em relação aos demais entes federativos. Isso decorre do texto do artigo 9, inciso VI da LDB, que à incumbe de promover processo de avaliação do rendimento escolar nos ensinos fundamental, médio e superior. O processo é levado a cabo pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), realizado anualmente desde 1990 e regulamentado pelo Decreto nº 9.432/2018, e pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), instituído pela Lei 10.861/2004. O Sinaes conta com o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) como principal instrumento. O exame é realizado com periodicidade máxima de três anos em todas as instituições públicas e privadas de ensino superior, e se trata de prova a respeito do conteúdo programático dos cursos aplicada a todos os discentes de graduação no ano de sua conclusão.
Aplicação do Artigo 209 CF/88 na Jurisprudência do STJ e STF
Seguindo com breve análise da jurisprudência dos tribunais superiores a respeito do artigo, o Superior Tribunal de Justiça ao julgar casos atinentes ao ensino privado no Brasil, tem aplicado o artigo 209 tanto para sanar intervenções indevidas do Estado em instituições particulares, quanto para autorizar essa intervenção nas funções de aprovação, fiscalização e avaliação oriundas da previsão constitucional. No julgamento do Recurso Especial (RE) nº 1.155.866 – RR (2009/0169307-1), a 3ª Turma do Tribunal negou provimento de pedido de indenização por parte de aluno diante da extinção de curso em universidade privada. O relator, Ministro Villas Bôas Cueva, entendeu que o artigo 209, impondo duas condições expressas para o ensino privado, garantiu a autonomia universitária das instituições particulares que atendem esses requisitos. Desse modo, firmou entendimento de que a extinção de cursos por parte da instituição não comporta ingerência do poder público.
Por outro lado, na Suspensão Liminar de Sentença nº 3.319/RS (2023/0304779-4), caso que tratou da alienação de universidade privada, o STJ entendeu que a transferência de titularidade da instituição prescindia de autorização do Ministério da Educação, que deveria novamente autorizar o funcionamento da instituição por força do artigo 209, inciso II. A presidente do tribunal à época, ministra Maria Thereza de Assis Moura, decidiu que “(…) tem-se configurada, também, a forte probabilidade de lesão à ordem pública, representada na obrigação de o poder público – no caso, a União – zelar para escorreita, legal e regular atuação da iniciativa privada no ensino superior”. Assim, tem-se que a corte vem delineando a extensão dos deveres de regulação por parte da educação pública sobre o ensino privado.
Já no Supremo Tribunal Federal, consolidou-se o entendimento explicitado pela doutrina aqui referenciada de que os serviços de educação, independentemente da instituição que os presta, consistem em serviço público. Conforme firmado na Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI) 1.266, de relatoria do ministro Eros Grau. Na decisão, assim colocou o relator:
“Os serviços de educação, seja os prestados pelo Estado, seja os prestados por particulares, configuram serviço público não privativo, podendo ser prestados pelo setor privado independentemente de concessão, permissão ou autorização. Tratando-se de serviço público, incumbe às entidades educacionais particulares, na sua prestação, rigorosamente acatar as normas gerais de educação nacional e as dispostas pelo Estado-membro, no exercício de competência legislativa suplementar (§ 2º do art. 24 da Constituição do Brasil).”
Ademais, mais recentemente, ao julgar improcedente ADI que tratava de lei estadual a respeito da dedução do Imposto de Renda decorrente de pagamento de ensino privado, o Supremo se manifestou novamente com base no artigo 209 da Constituição. Na ADI 4.972, julgada em março de 2025 o relator, ministro Luiz Fux, reafirmou em seu voto que “a iniciativa privada, para exercer livremente essa atividade [educacional] (artigo 209 da Constituição), deve cumprir as normas gerais da educação nacional e submeter-se à autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público”. Com isso, tem-se que a jurisprudência, tanto do STJ quanto do STF, vem aplicando o artigo 209 da Constituição para balizar a função de controle do poder público sobre os entes privados.
A participação do setor privado no sistema de ensino no Brasil é, portanto, parte integrante do direito fundamental à educação compreendido em sentido amplo, além de constituir expressão da livre iniciativa e ter a função de garantia constitucional institucional. Ao Estado, no exercício dos seus deveres de proteção, cabe, por um lado, assegurar que as exigências constitucionais sejam observadas pelo setor privado, de modo a garantir uma educação de qualidade, mas também o papel de proteger as instituições privadas de ensino para que possam adequadamente contribuir para um processo educacional plural, inclusivo e focado no desenvolvimento e progresso humano responsável.
Sobre os autores
- Ingo Wolfgang Sarlet é advogado e professor titular da PUC-RS.
- Lourenço Kantorski Lenardão é mestre e doutorando em Direito pela PUC-RS.

- Proteção do ambiente e deveres corporativos de devida diligência: MPF e Starlink
- O STF e a inconstitucionalidade parcial e progressiva do artigo 19 do Marco Civil da Internet
NOTAS
[1] FARENZENA, Nalú. Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988, educação e cidadania. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação – Periódico científico editado pela ANPAE, [S. l.], v. 24, n. 2, 2011. DOI: 10.21573/vol24n22008.19258. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/rbpae/article/view/19258. Acesso em: 14 out. 2025.
[2] BRASIL. Senado Federal. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão Especial sobre Educação, Cultura e Esporte – 8ª Subcomissão. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/8a_Sub._Educacao,_cultura_e_esporte.pdf
. Acesso em: 14 out. 2025.
[3]BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte.Anteprojeto da Comissão I – Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação. Volume 206. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, jun. 1987. p. 13. Disponível em: https://www.camara.leg.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-206.pdf. Acesso em: 14 out. 2025.
[4] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil (de 5 out. 1988). Brasília, DF: Presidência da República, [s.d.]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 17 out. 2025.
[5] MIRANDA, Jorge. Manual de DireitoConstitucional. Tomo IV. 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 383.
[6] MALISKA, Marcos Augusto. O direito à educação e a constituição. 1. Ed. Porto Alegre: Fabris Editora. 2021, p. 178.
[7] CURY, Carlos Roberto Jamil. Do Público e do Privado na Constituição de 1988 e nas Leis Educacionais. Educação & Sociedade, v. 39, n. 145, p. 870-889, 2018.