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A (in)constitucionalidade da lei que autoriza a ozonioterapia

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CONSTITUCIONAL

CONSTITUCIONALIDADE

DIREITO MÉDICO

OZONIOTERAPIA

Henderson Fürst

Henderson Fürst

07/08/2023

Coautoria de Carina Barbosa Gouvea

Diante da publicação da Lei n.º 14.648/2023, o Brasil volta a uma pergunta elementar: Pode uma lei autorizar procedimentos que contrariam evidências científicas?

Expliquemos: a nova Lei autorizou a ozonioterapia em todo o território nacional, ampliando suas hipóteses de uso, mesmo que a Anvisa tenha expressamente manifestado anteriormente que há apenas indicações para “Dentística: tratamento da cárie dental – ação antimicrobiana; Periodontia: prevenção e tratamento dos quadros inflamatórios/infecciosos; Endodontia: potencialização da fase de sanificação do sistema de canais radiculares; Cirurgia odontológica: auxílio no processo de reparação tecidual; Estética: auxílio à limpeza e assepsia de pele”, conforme Nota Técnica 43/2022 da Anvisa.[1]

Não é um comportamento inédito o do Poder Legislativo brasileiro. Em 2016, o então Deputado Federal Jair Bolsonaro propôs um Projeto de Lei que se tornou na Lei 13.269/2016, que autorizava o uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna. Foi necessário que a AMB propusesse a ADI 5.501 para que, em 2020, o Supremo Tribunal Federal declarasse a inconstitucionalidade da lei por ferir o direito fundamental à saúde. Naquela ocasião, entendeu o STF que a Lei invadia a esfera de competência da ANVISA sem que ela própria tivesse recebido pedido de análise em algum momento da molécula na forma de medicamento, bem como disponibilizava algo à população cujos riscos e benefícios não eram adequadamente conhecidos, configurando um risco à saúde pública e, daí, um retrocesso à tutela do direito fundamental a saúde – e por isso a inconstitucionalidade.

Não foi a única vez que evidências científicas na saúde foram usadas como critério para o STF considerar se algum suporte normativo ou interpretação corresponde à moldura constitucional do direito fundamental à saúde. Também nos casos da ADI 6586 e 6587, bem como no ARE 1267879, evidências científicas foram utilizadas como parâmetro de constitucionalidade de medidas de saúde pública – no caso, a vacinação.

E por que isso é relevante?

A saúde baseada em evidências é a atual escola metodológica adotada pelos principais sistemas de saúde e de ensino de ciências em saúde. O termo “medicina baseada em evidências” foi uma consolidação de boas práticas desenvolvidas na pesquisa científica e na prática sanitária que se iniciou nos anos 1970 e se consolidou nos anos 1990, em especial com a criação do Centro de Medicina Baseada em Evidências na Universidade de Oxford em 1995[2].

Seu primeiro diretor, David Sackett, definiu a medicina baseada em evidências como “o uso consciente e judicioso da melhor evidência corrente, gerada pela pesquisa clínica, para o manejo de pacientes individuais[3], sendo, posteriormente, ampliado o termo para “saúde baseada em evidências”, de modo a alcançar as diversas áreas e práticas da saúde.

Assim, mesmo no caso da recente alteração feita no rol de procedimentos de cobertura obrigatória da ANS pela Lei 14.454/2022 na Lei 9.656/1998, incorporando a expressão “à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas”, não é uma abertura semântica jurídica para se interpretar que deve ser realizada a cobertura de todo e qualquer tratamento prescrito pelo médico assistente, mas sim a cobertura de tratamentos que tenham a melhor evidência disponível de eficácia/eficiência e segurança a pacientes.

As evidências científicas podem ser organizadas quanto ao seu grau de confiabilidade de informação. Há vários critérios utilizados para estabelecer o nível de confiabilidade de informação de uma evidência, inclusive a verificação de compatibilidade do tipo de estudo realizado com a informação que se obteve[4].

Com isso, a força, poder ou nível da evidência em saúde depende da forma como foi gerada essa evidência. Pode-se fazer uma representação da estrutura de forças de evidências por meio da pirâmide de evidências[5]:

Apenas a título de ilustração, uma evidência científica que seja um relato de caso possui uma informação relevante, mas não segura o suficiente de que todos os demais casos irão se comportar daquela forma. Nesse sentido, vale revisitar a experiência brasileira com a fosfoetanolamina sintética (a chamada “pílula do câncer”), que teve seu fornecimento autorizado pela Lei 13.269/2016, diante da repercussão social, mas com evidências frágeis, baseadas unicamente em relatos de casos, que, ao final, se comprovou não ser eficaz ao tratamento de câncer[6].

Trata-se de evidente caso de biopopulismo[7]. O biopopulismo é a forma de populismo em que se vale das ciências biotecnológicas tanto como instrumento apropriado ideologicamente para sustentar medidas contrárias ao constitucionalismo liberal, tanto como um tema narrativo para se valer como tópica em torno do qual se agregam valores de parte expressiva da sociedade, normalmente de cunho conservador. A apropriação das ciências biotecnológicas não implica num discurso científico. Basta que soe verossímil e extraído de um suposto conhecimento científico para atingir as finalidades necessárias.

Com isso, o biopopulismo corresponde a uma faceta contemporânea no complexo poliédrico que é o populismo, possibilitada pelo contexto da pós-verdade e do crescimento de fake news na comunicação de massa, pois não importa que a técnica ou o discurso que se apropriam da biotecnociência seja verdadeira, importa que seja suficientemente verossímil para ter aderência popular e alcançar os objetivos propostos.

Voltemos ao caso da ozonioterapia. Mesmo com Anvisa informando quais as aplicações autorizadas baseadas em evidências, e com o Conselho Federal de Medicina regulando o uso apenas em pesquisas clínicas, bem como diversas sociedades científicas indicando os riscos e ausência de evidências, a nova lei amplia para categorizar como tratamento complementar, que pode ser oferecido por qualquer profissional de saúde de nível superior inscrito em seu conselho profissional, bastando que utilize equipamento regularizado pela Anvisa.

Vê-se que a ampliação não corresponde ao estado atual do conhecimento científico em saúde e suas respectivas evidências disponíveis atualmente. Com isso, a inconstitucionalidade da nova lei é clara: representa um retrocesso ao direito fundamental à saúde e sua tutela.


[1] Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2023/comunicado-a-imprensa/notatecnicano432022seigquipggtpsdire3anvisa1.pdf

[2]JAMA, Journal of American Medical Association. Evidence-Based Medicine: An Oral History. 2014. Disponível em: https://ebm.jamanetwork.com/; SMITH, Richard; RENNIE, Drummond. Evidence-Based Medicine—An Oral History. JAMA, v. 311, n. 4, p. 365–367, 2014.

[3] SACKETT, David L. Evidence-based medicine. Sminars in perinatology, v. 21, n.1, p. 3-5 (3), 1997. Disponível em: https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S014600059780013.

[4] ALENCAR, José N. de. Manual de Medicina Baseada em Evidências. Salvador: Sanar, 2022, p. 45.

[5] Montagna E, Zaia V, Laporta GZ. Adoção de protocolos para aprimoramento da qualidade da pesquisa médica. Einstein, São Paulo, 2020, vol. 18:eED5316. Disponível em: https://www.scielo.br/j/eins/a/dxYGQ48zGKmtcRCrYPQF4Rh/?format=pdf&lang=pt.

[6] Conferir: : https://www.sanarsaude.com/portal/carreiras/artigos-noticias/resultados-preliminares-mostram-que-fosfoetanolamina-nao-possui-efeito.

[7] FÜRST, Henderson. Biopopulismo e a apropriação política de narrativas científicas. In: CASTELO BRANCO, Pedro H. Villas Bôas; GOUVÊA, Carina Barbos; LAMENHA, Bruno (coords.) Populismo, constitucionalismo populista, jurisdição populista e crise da democracia. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020, p. 141 e ss.

Coautoria de Carina Barbosa Gouvea
Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito Mestrado e Doutorado da Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE); Pós-Doutora em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE); Doutora e Mestre em Direito pela UNESA; Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa “Teoria da Separação dos Poderes e Crise do Sistema Democrático Brasileiro vinculado ao PPGD/UFPE; Vice Líder do Grupo de Pesquisa Direito Internacional e Direitos Humanos (UFPE), CNPq; Advogada. carina.gouvea@ufpe.br

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