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A dignidade da pessoa humana vista como um superpoder e como uma letra esquecida na Constituição Federal. Seus extremos hermêuticos

CONSTITUIÇÃO FEDERAL

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

DIREITO ESSENCIAL

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ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

MÍNIMO INDISPENSÁVEL

PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Guilherme de Souza Nucci

Guilherme de Souza Nucci

02/09/2014

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O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana não é uma simples criação doutrinária, mas uma imposição constitucional, preceituando o art. 1º, III, da Constituição Federal brasileira, tratar-se de um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Acima de tudo, merece tratamento cuidadoso pelos operadores jurídicos e, sem dúvida, respeito. Fácil não é definir o que vem a ser dignidade humana, pois envolve a natural complexidade do ser humano, como ente material, mas também como ente virtuoso. Diante disso, em nossa obra Princípios constitucionais penais e processuais penais, buscamos formar um conceito – nem o primeiro, nem o último a existir na doutrina – acerca da dignidade da pessoa humana, visualizando-a sob os prismas objetivo e subjetivo. Objetivamente, representa o lado material da existência humana, que precisa ser assegurado pelo Estado Democrático de Direito, consistente no mínimo indispensável para a sobrevivência apropriada de um ser humano. É o direito prometido pelo art. 7º, IV, da CF, consistente na percepção de um salário mínimo para atender as necessidades humanas “vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”. Abaixo dessa linha do mínimo indispensável, configura-se lesão à dignidade humana, sob o aspecto objetivo. Porém, subjetivamente, cuida-se da parte mais abrangente. Envolve a autoestima, o amor próprio ou o culto à própria imagem, que todo ser humano tem o direito de ver assegurado pelo Estado. Vilipendiar, maltratar, humilhar, menosprezar a pessoa humana, quando por órgãos estatais, é ruptura nítida com o fundamento da dignidade previsto para o Estado Democrático de Direito.

Nas áreas penal e processual penal lida-se com a dignidade humana desde a edição da lei, cuja atribuição compete ao Poder Legislativo, passando pela implementação da mesma lei pelo Poder Executivo (na maioria dos casos) e chegando ao Judiciário para fazer valer, com efetividade, o comando normativo. Algumas vozes criticam o princípio da dignidade humana, afirmando que ele serve para tudo, como se fosse um superpoder, inclusive para descumprir a lei. Com a devida vênia, não é verdade. Em primeiro lugar, o referido fundamento da dignidade humana no Estado Democrático de Direito não é constituir um superpoder, mas um horizonte a ser perseguido pelos Três Poderes de Estado, obrigatoriamente. Nada pode ser legislado, aplicado ou julgado ignorando esse princípio constitucional básico.

Infelizmente, vê-se, no mundo real – distante do ideal preceito constitucional – prevalecer, em muitas situações, a indignidade humana, sem que se tome providência efetiva para terminar com esse estado. Culpados são os Três Poderes, cada qual em um aspecto peculiar. Vamos aos exemplos, tão importantes em matéria como a presente. Não são exaustivos, mas meramente ilustrativos os dados abaixo mencionados.

Sob o prisma legislativo, até hoje não se pode compreender como o patrimônio tem, nitidamente, mais valor para o Código Penal do que a integridade humana. O furto simples de uma bicicleta pode levar à pena de reclusão de um ano e multa (art. 155, caput, CP); no entanto, cegar um olho humano, pela lesão corporal, gera a pena de reclusão de um ano sem multa (mais branda). Façamos um jogo muito simples: coloquemo-nos na posição da vítima dos dois delitos. Qual bem jurídico é o mais relevante? O bem material (bicicleta) ou a visão? É indigno supor que seja a bicicleta o bem mais importante, pois ninguém, em sã consciência, trocaria a visão de um olho por um veículo desse porte. Eis o Legislativo desprezando a dignidade humana ao criar leis contraditórias.

Vamos um pouco além, já envolvendo processo penal. O mesmo legislador, que editou a Lei da Violência Doméstica (denominada Maria da Penha), permitiu a prisão preventiva para o agressor da mulher – ou para aquele que simplesmente a ameaça. Mas, alterando a legislação processual penal, não se preocupou em harmonizar a lei penal. Temos encontrado vários casos, que dão ensejo à propositura de habeas corpus, no Tribunal, porque alguns ex-maridos ameaçaram a companheira e foram presos preventivamente. Ocorre que, processados somente por ameaça (pena de detenção, de um mês a seis meses ou multa, conforme art. 147, CP), ficam presos por meses a fio, enquanto aguardam o deslinde do processo-crime. O absurdo é evidente. Cumprem presos, pois há o instituto da detração (art. 42, CP), muito mais tempo do que a pena que lhe será destinada. É um acinte à dignidade da pessoa humana. Não se está questionando a violência doméstica – que também avilta a mulher – mas a atuação pífia do legislador no respeito à harmonia dos sistemas penal e processual penal. Se cabe preventiva para uma ameaça, esta não pode ter uma pena de um mês de detenção ou multa. Parece uma lógica cristalina para qualquer aplicador do Direito.

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Vamos ilustrar com o descaso do Poder Executivo e o seu insistente menosprezo pela dignidade humana dos condenados. Todos os dias rasga-se, nos presídios de todo o Brasil, o Código Penal e a Lei de Execução Penal. O regime fechado deveria garantir, segundo a lei, uma cela individual para cada preso, com, pelo menos, seis metros quadrados e devidamente salubre. Qualquer um sabe como é o claustro no Brasil (em sua maioria). Um amontoado de pessoas, cuja autoestima é francamente lesada, pois nem mesmo animais assim são mantidos em zoológicos. Além disso, não se encontra o regime semiaberto corretamente estruturado, quando não faltam vagas, como ocorre no Estado de S. Paulo. Inexiste o regime aberto, na maioria das Comarcas, sendo que a Lei de Execução Penal completou 30 anos.

O Judiciário tem sua parcela de responsabilidade no desprezo à dignidade humana, pois chancela, muitas vezes, o descaso do Executivo. Quem aufere um direito, concedido por decisão judicial, espera seja ele cumprido. É o mínimo. No entanto, no Estado de S. Paulo, o condenado em regime fechado, quando tem deferido o seu direito (e não um favor) de transferência ao regime semiaberto, depende da boa vontade do Executivo em cumprir essa decisão. Há uma fila, na qual ingressa, para esperar a vaga. Pode levar meses ou mais de ano. Quem ingressa com recurso ou mesmo habeas corpus tem o seu pedido negado, por alguns, sob argumentos variados, dentre os quais se sobressai o sofismático direito à igualdade, ou seja, se há uma fila, todos são iguais perante tal imposição. Um preso não pode valer-se do habeas corpus para passar na frente do outro, que não impetrou a ação constitucional (esse é um dos argumentos encontrados, pois existem outros, ainda menos técnicos). O ponto fulcral não tem relação alguma com a igualdade, pois esta deveria ser focada perante a lei e não perante a ilegalidade. Todos têm direito ao semiaberto, quando deferido pelo juiz; são iguais nesse direito. Mas não se pode ignorar o pleito justo do sentenciado de fazer valer o direito ganho, judicialmente, sob o prisma equivocado da igualdade de todos perante a fila. Signfica padronizar por baixo e não pelo referencial da dignidade humana. É indigno desprezar um direito judicialmente concedido. Observemos as consequências disso. Depois de passar alguns anos oprimido no sistema carcerário, vendo o Estado (Executivo e Judiciário) simplesmente ignorar seus direitos expressos em lei, o condenado termina o cumprimento da pena, cujo viés é, dentre outros, reeducativo. O que ele aprendeu nessa jornada preso? Além das lições da escola do crime, vigente em presídios desorganizados, infelizmente, o sentenciado teve o conhecimento de que o Estado não cumpre a lei. Ele aprendeu que o mesmo Poder Público que exige a sua corretíssima conduta quando em liberdade, respeitando os direitos alheios, não respeitou os seus direitos fundamentais durante todo o período em que estava detido, supostamente para ser ressocializado. Dois pesos e duas medidas.

Ninguém gosta de ser vítima de um crime, sem dúvida. Mas por que muitas pessoas nem sequer ligam para o fato de que os direitos dos réus/condenados são vilipendiados todos os dias? Afinal, vítima por vítima, agora o papel inverteu-se. Quem furtou, cometeu o crime e foi julgado, passou a integrar o papel de vítima do Estado transgressor. Se somos cidadãos conscientes dos nossos direitos fundamentais, devemos nos insurgir tanto contra quem agride o patrimônio alheio como também contra o Poder Público, que fere a dignidade humana do sentenciado. Mas não vislumbramos isso.

A dignidade da pessoa humana se autoexplica. Ela é inerente a todos os seres humanos. Portanto, no âmbito criminal, onde mais próximo se fica da constrição a direitos essenciais, esse princípio deveria ser um autêntico dogma. Não é um superpoder para se descumprir a lei, como sustentam alguns; muito pelo contrário, se superpoder fosse, seria para fazer cumprir a lei. Pena que ele ainda se encontra esquecido no art. 1º, III, da Constituição Federal, para muitos de nós. E, pior que tudo, para muitos operadores do Direito.

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