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A dignidade da pessoa humana, o STF e as revistas íntimas em presídios em debate

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A dignidade da pessoa humana, o STF e as revistas íntimas em presídios em debate

REVISTA ÍNTIMA

STF

Ingo Wolfgang Sarlet

Ingo Wolfgang Sarlet

02/05/2025

Em 2/4/2025 o plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o ARE 959.620 (Tema 998), relatoria do ministro Edson Fachin, fixou a seguinte tese de repercussão geral:

1) Em visitas sociais nos presídios ou estabelecimentos de segregação, é inadmissível a visita íntima vexatória, com o desnudamento de visitantes ou exames invasivos, com finalidade de causar humilhação. A prova obtida por esse tipo de revista é ilícita, salvo decisões judiciais em cada caso concreto. A presente decisão tem efeitos prospectivos a partir da publicação da ata de julgamento.

2) A autoridade administrativa, de forma fundamentada e por escrito, tem o poder de não permitir a visita diante da presença de indício robusto de ser a pessoa visitante portadora de qualquer item corporal oculto ou sonegado, especialmente de material proibido, como produtos ilegais, drogas ou objetos perigosos. São considerados “robustos indícios” embasados em elementos tangíveis e verificáveis, como informações prévias de inteligência, denúncias e comportamentos suspeitos.

3) Confere-se o prazo de 24 meses, a contar da data desse julgamento, para a aquisição e instalação de equipamentos, como scanners corporais, esteiras de raio-x e portais detectores de metais em todos os estabelecimentos penais;

4) Fica determinado ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública e aos estados que, por meio dos recursos do Fundo Penitenciário Nacional e do Fundo Nacional de Segurança Pública, promovam a aquisição ou locação e distribuição de scanners corporais para as unidades prisionais, em conformidade com sua atribuição de coordenação nacional da política penitenciária, assegurando a proteção dos servidores, a integridade dos detentos e a dignidade dos visitantes, prevenindo práticas abusivas e ilícitas, sem interferir na autonomia dos entes federativos e garantindo a aplicação uniforme das diretrizes de segurança penitenciária no país.

5) Devem os entes federados, no âmbito de suas atribuições, garantir que a aquisição ou locação de scanners corporais para as unidades prisionais esteja contemplada no respectivo planejamento administrativo e orçamento, com total prioridade na aplicação dos recursos.

6) Excepcionalmente na impossibilidade ou inefetividade de utilização do scanner corporal, esteira de raio-x, portais e detectores de metais, a revista íntima para ingresso em estabelecimentos prisionais, diante de indícios objetivos e robustos de suspeita, deverá ser motivada para cada caso específico e dependerá da plena concordância do visitante. Vedada em qualquer circunstância a execução da revista como forma de humilhação e disposição vexatória. Deve ser realizada em local adequado, exclusivo para tal verificação e apenas em pessoas maiores e que possam emitir consentimento válido, por si ou por meio de seu representante legal, de acordo com protocolos gerais e nacionais pré-estabelecidos e por pessoas do mesmo gênero do visitante, preferencialmente profissionais de saúde nas hipóteses de desnudamento e exames invasivos.

O excesso ou abuso da realização da revista íntima acarretarão responsabilidade do agente público ou do profissional de saúde habilitado e ilicitude de eventual prova obtida.

Caso não haja concordância do visitante, a autoridade administrativa poderá, de forma fundamentada e por escrito, impedir a realização da visita.

O procedimento de revista em criança, adolescente ou pessoa com deficiência que não possa emitir consentimento válido será substituído pela revista invertida direcionada à pessoa a ser visitada.

Em síntese, para o que interessa ao presente texto, o STF considerou a revista íntima feminina vexatória quando de visitas a estabelecimentos prisionais como algo degradante e humilhante, sendo, portanto, inadmissível e constitucionalmente ilegítima. Por tal razão, também as provas obtidas a partir de tais procedimentos são ilícitas, consequência que, todavia, pode ser excepcionada nos casos concretos por decisões judiciais devidamente motivadas.

Embora o enunciado da tese firmada pelo STF seja longo e decodificado em diversos pontos, o que aqui se pretende discutir, ainda que de maneira necessariamente sumária, é o fato de que em causa está o respeito e proteção da dignidade da dignidade da pessoa humana, precisamente quando Suprema Corte considerou ser “inadmissível a visita íntima vexatória, com o desnudamento de visitantes ou exames invasivos, com finalidade de causar humilhação”.

No caso, por mais que se possa fazer coro com os que criticam o recurso abusivo ao argumento da violação da dignidade da pessoa humana, dado o caráter altamente indeterminado e mesmo polissêmico do termo, existindo mesmo, ainda que se cuide de posição minoritária (com a qual não se concorda!), quem refute a eficácia direta e aplicabilidade imediata da norma que veicula tal princípio, no sentido que dela não se pode extrair, de modo autônomo (portanto, desvinculado de outros direitos fundamentais em espécie), qualquer posição jurídico-subjetiva, o fato é que quando se trata de submissão de uma pessoa, qualquer que seja e onde quer que seja, a uma prática coercitiva humilhante, degradante e vexatória, a dignidade humana restará violada.

As razões pelas quais a prática da revista íntima vexatória, humilhante e degradante configura uma violação da dignidade da pessoa humana são quase que intuitivamente aferíveis, mesmo por quem não tenha se dedicado ao estudo e compreensão do conteúdo e alcance do princípio na perspectiva jurídica, mas também pelo prisma moral e filosófico. Isto porque embora muitos (possivelmente a grande maioria) talvez não logrem, ao menos à primeira vista, formular uma definição da dignidade da pessoa humana, provavelmente todos saberão dizer quando, na sua particular pessoal percepção, a sua dignidade foi ou estará sendo violada.

De todo modo, a dignidade da pessoa humana foi incorporada à gramática jurídica, tanto na perspectiva do direito internacional, quanto em sede constitucional, ainda que tal processo não tenha se dado da mesma forma e na mesma época, e mesmo não tenha ocorrido em todos os lugares. Por outro lado, mesmo que – como é o caso da Constituição de 1988, no seu artigo 1º, III) – a dignidade da pessoa humana não tenha sido guindada à condição de princípio fundamental e estruturante do Estado Democrático de Direito, ainda assim deverá ser respeitada e protegida, na condição de princípio implicitamente positivado e densificado por um conjunto de direitos humanos e fundamentais que a ela são conexos e correspondem a projeções específicas dessa mesma dignidade.

Este é o caso, como se verifica novamente na CF, dentre outros direitos que se poderia aqui invocar, da vedação de todo e qualquer forma de tortura e tratamento desumano e degradante, da proibição do trabalho escravo e da interdição de penas cruéis e desumanas, que, aliás, correspondem a normas do tipo regras, insuscetíveis de serem colocadas na balança da ponderação, visto proibirem categoricamente determinadas formas de conduta.

O motivo pelo qual tais vedações foram sendo incorporadas a tratados de direitos humanos e catálogos constitucionais de direitos fundamentais guarda relação com a máxima Kantiana de que o ser humano (na época a referência era ao Homem) constitui um fim em si mesmo e não pode servir “simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade”. Dito de outro modo, isso significa que, para Kant, não se pode reduzir alguém à mera condição de objeto, ou seja, à simples categoria de instrumento para a consecução de determinados fins, de tal sorte que a antítese da dignidade humana é a reificação e mera instrumentalização de uma pessoa. É daí, aliás, que o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha deduziu a célebre fórmula do “homem-objeto”, para justificar a ilegitimidade constitucional de práticas e processos de coisificação do ser humano e, portanto, a sua destituição (igualmente na acepção de Kant – embora não apenas ele) da condição de sujeito.

Ora, práticas como a humilhação e degradação, ainda mais pública, de alguém, bem como – e em especial – a submissão a uma situação em que a pessoa não pode (seja por coação direta, seja indireta) fazer valer a sua própria autonomia, no sentido de autodeterminação,  são, portanto, claramente atentatórias contra a sua dignidade.

Nesse contexto, calha acessar a lição de Karl-Heinz Ladeur e Ino Augsberg, que, numa perspectiva negativa, vislumbram na dignidade da pessoa humana uma espécie de “sinal de pare”, no sentido de uma barreira absoluta, intransponível, seja para o Estado, seja para terceiros, protegendo a autonomia da pessoa e com isso o seu papel como sujeito de direitos.

Muito embora não se possa aqui desenvolver o tema, apresentando o de modo sumário, o fato é que a partir das considerações feitas é de se aplaudir a decisão do STF, notadamente ao proibir as revistas íntimas vexatórias e humilhantes e determinar, fixando o prazo de 24 meses para a aquisição e instalação de equipamentos, como scanners corporais, esteiras de raio-x e portais detectores de metais em todos os estabelecimentos penais.

Ponto que certamente merece reflexão mais detida é o fato de o STF ter também admitido a realização de revistas íntimas em caráter excepcional, desde que observados os parâmetros firmados na tese acima transcrita na sua integralidade, destacando-se aqui apenas a necessidade de fundamentação do procedimento, a vedação absoluta de execução da revista como “forma de humilhação e disposição vexatória” e tão-somente “em pessoas maiores e que possam emitir consentimento válido, por si ou por meio de seu representante legal”.

Repercussão

Nesse contexto, há que referir as vozes que, na própria ConJur, se manifestaram de forma crítica em relação à possibilidade de uma, embora excepcional, validação, pelo juiz do caso, das provas produzidas a partir de revistas íntimas. Para Lenio Streck, o problema apenas se resolve mediante o uso de scanners, devendo a prova obtida com revistas íntimas ser sempre ilícita. Em sentido similar se pronunciou Antonio Eduardo Ramires Santoro, manifestando seu ceticismo e advogando que tal prova somente poderia ser usada em favor da defesa.

Posicionando-se de modo favorável à tese firmada pelo STF, Vladimir Aras entende que a Suprema Corte alinhou “a dignidade da pessoa humana com a necessidade de proteger a segurança prisional, já que meios técnicos podem ser usados em lugar das revistas intimas vexatórias”, sugerindo, com isso, ao menos assim parece, a possibilidade de utilização de um juízo de ponderação e aplicação do teste de proporcionalidade.

Os argumentos em sentido favorável e contrário certamente não se limitam aos colacionados, tampouco cobrem todo o espectro de questões que a decisão suscita, como é o caso do recurso à modulação dos efeitos de sua decisão por parte do STF, estabelecendo os parâmetros fixados apenas de modo prospectivo (ex nunc), o que poderia soar como uma (para alguns no mínimo curiosa) chancela judicial de violações passadas da dignidade da pessoa humana, novamente fazendo uso da técnica da proporcionalidade.

De qualquer sorte, mantendo-se tal como formulada a tese firmada pela Suprema Corte, que, ressalvadas possíveis críticas, em termos gerais e no que mais importa, representa um marco civilizatório, o que se espera é que, pelo menos daqui para a frente, os parâmetros estabelecidos sejam rigorosamente seguidos, responsabilizando-se, tal como estabelecido na tese, as autoridades responsáveis em caso de descumprimento.

Dito isso, não podemos jamais esquecer que, de acordo com o disposto no artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, 1948, “todos os seres humanos nascem livres e iguais e dignidade e direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para os outros em espírito e fraternidade”.

Fonte: ConJur

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