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CLÁSSICOS FORENSE
CONSTITUCIONAL
REVISTA FORENSE
TRIBUTÁRIO
A constitucionalidade do imposto de cessão
Revista Forense
28/09/2023
SUMÁRIO: Concordância dos textos constitucionais. O que se denomina impôsto de cessão. Os antecedentes do impôsto de cessão. A doutrina dos poderes implícitos. Os poderes implícitos e a discriminação de rendas. Conclusão.
Os que impugnam a cobrança do impôsto de cessão, aplicado à cessão do contrato de promessa de compra e venda, podem ser divididos em dois grupos distintos: uns entendem que não há, no caso, transmissão, à vista do que preceitua o art. 530 do Cód. Civil; outros pensam que o dec. lei nº 9.626, que autorizou a arrecadação dêsse tributo, foi invalidado pelo advento da Constituição de 1946. No fundo, porém, as duas teses se reduzem a uma só – a de que não cabe impôsto de transmissão onde não há transmissão e não pode haver transmissão senão nos contratos sujeitos a transcrição, nos têrmos do Cód. Civil. Se não há transmissão, o impôsto não pode ser o do art. 19 da Constituição, mas, quando muito, um dos tributos permitidos pelo art. 21, isto é, dentro da competência concorrente admitida na Constituição, o que leva à conclusão de que o impôsto federal do sêlo proporcional exclui o estadual estabelecido sôbre a cessão.
Essa é a tese, nas suas linhas essenciais. Na verdade, o que se argúi é a inconstitucionalidade do impôsto de cessão, quer se trate de revogação, pela Carta de 1946, do dec. lei nº 9.626, quer se alegue a incompatibilidade dêsse tributo com a Constituição de 1946. Porque o argumento de que não há transmissão, por si só, não invalidaria o texto das leis, que estabeleceram o impôsto de cessão, se não contrariasse, no entender dos intérpretes a que nos referimos, o sistema de partilha tributária adotado em nossa Carta de direitos. Ou existe êsse conflito ou o impôsto é legítimo, não sendo o Cód. Civil mais que uma lei ordinária, que essas outras leis teriam revogado, ou derrogado. O que se debate, pois, é a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do impôsto, sob o argumento da revogação pura e simples do dec. lei nº 9.626, ora como incompatibilidade do impôsto de cessão com o sistema de partilha tributária estabelecido nessa mesma Constituição de 1946.
Consideremos, inicialmente, o argumento da revogação.
Concordância dos textos constitucionais.
A tese da revogação pressupõe uma divergência entre os dois regimes constitucionais o de 1937 dentro do qual foi promulgado o dec. lei nº 9.626, e o que veio a prevalecer na Carta de 1946. Se não houve divergência, o caso não é de revogação, mas de inconstitucionalidade dêsse decreto-lei, em face das duas Constituições, a de 1937 e a de 1946. Só pela distinção entre os dois textos é que se pode admitir que o dec. lei nº 9.626 tenha sido legítimo até 18 de setembro de 1946 e haja passado, depois disso, à categoria das leis revogadas.
A Carta de 1937 estabelece, no art. 23, que “é da competência exclusiva dos Estados a decretação do impôsto sôbre a transmissão da propriedade imobiliária inter vivos“.
A Constituição de 1946 diz, no art. 19, que “compete aos Estados decretar impostos sôbre transmissão de propriedade imobiliária inter vivos“.
A única diferença que se encontra entre as duas redações é a da eliminação, na Constituição de 1946, do adjetivo “exclusiva”, que se encontra na Carta de 1937. Mas essa supressão não se reflete no alcance, ou na força do preceito, pois que o constituinte de 1946 apenas a considerou redundante e, conseqüentemente, disprensável, pois se havia uma competência expressa da União, dos Estados e dos Municípios, a exclusividade resultava da própria enumeração dos impostos. Não é por isso que se há de encontrar divergência entre os dois textos. A substituição da palavra “imóvel” por “imobiliária” também não restringe e alcance do preceito.
Como se vê, não há diferença quanto ao domínio da competência tributária expressa, no que diz respeito ao impôsto de transmissão. Dentro da competência concorrente, o que a Carta de 1937 estabelecia era a vedação peremptória da bitributação, acrescentando: “prevalecendo o impôsto decretado pela União, quando a competência fôr concorrente”. É o que também se lê na Constituição de 1946. Conseqüentemente, se daí resultasse a inconstitucionalidade do dec. lei nº 9.626, em face da Carta de 1946, também teríamos que aceitar sua incompatibilidade com a Carta de 1937, que dispunha a mesma coisa.
A única diferença entre as duas Constituições é a que se contém no § 5º do art. 15 da Carta de 1946. O texto de 1937 atribuía à União a faculdade de decretar impostos “sôbre atos emanados do seu govêrno, negócios da sua economia e instrumentos ou contratos regulados por lei federal”. Daí resultava, por exemplo, que a compra e venda também pagava impôsto federal, pois que era contrato regulado por lei federal. A competência para legislar sôbre direito civil e comercial foi reconhecida ao govêrno federal em tôdas as Constituições republicanas, o que vinha atribuir direito incontestável à arrecadação do impôsto do sêlo federal, nos atos e instrumentos regulados por lei federal. A Constituição de 1946 restringiu essa faculdade da União, quando dispôs, no referido § 5º do art. 15, que “não se compreendem nas disposições do nº VI os atos jurídicos ou os seus instrumentos, quando forem partes a União, os Estados ou os Municípios ou quando incluídos na competência tributária estabelecida nos arts. 19 e 29”.
Conseqüentemente, a única diferença que se encontra entre as duas Constituições, a de 1937 e a de 1946, é no sentido de reforçar a competência dos Estados, na arrecadação do impôsto de transmissão, vedando tributo concorrente da União, mesmo quando viesse a incidir sôbre o instrumento dos atos em questão. O que nos leva a conclusão de que não seria possível indicar, contra o dec. lei nº 9.626, na Carta de 1946, argumento que não estivesse na Carta de 1937. Se o dec. lei número 9.626 é inconstitucional agora, teria que o ser desde o nascedouro. A tese da revogação, pressupondo uma divergência necessária dos dois textos constitucionais, cai por si mesma. E ainda mais fragorosa é a queda, quando se verifica que, já depois da Constituição de 1946, o próprio legislador constituinte, transformado em legislador ordinário, reconheceu explicitamente, em lei federal, a competência dos Estados, para a decretação do impôsto que se vem discutindo. É assim que a lei nº 217, de 15 de janeiro de 1948, – a própria Lei Orgânica do Distrito Federal, – declara, no art. 2º § 2º, que “o impôsto de transmissão de propriedade inter vivos, bem como a sua incorporação ao capital da sociedade, incidirá sôbre tôdas as formas legais de transmissão, inclusive a cessão de direito, a arrecadação ou adjudicação”.
É óbvio que o impôsto de transmissão não poderá incidir sôbre tôdas as formas de cessão. A cessão de um contrato de seguro, por exemplo, ou de locação, ou de crédito, como título eminentemente pessoal, não poderia acarretar a cobrança do impôsto de transmissão de propriedade imobiliária. O que o legislador federal declarou, e determinou, foi que se pagasse êsse impôsto na cessão que viesse a transferir propriedade imobiliária. O que vale dizer que “entre as formas legais de transmissão”, lei federal, posterior ao Código Civil, declarou expressamente que se incluía a cessão de direitos, naturalmente quando se reporta a direitos imobiliários. De modo que a questão a discutir não pode ser mais a da revogação pura e simples do dec. lei nº 9.626, mas a da inconstitucionalidade dêsse decreto-lei e da lei nº 217, em face do texto da Constituição de 1946. Estamos em face de uma argüição de inconstitucionalidade, que não pode deixar de abranger os dois diplomas legais, ambos oriundos da União, o decreto-lei nº 9.626, de 1946, e a lei n° 217, de 1948.
O que se denomina “impôsto de transmissão”
A tese da inconstitucionalidade dessas duas leis deriva de alguns postulados, que precisam ser examinados, tais como: a) o de que o impôsto de transmissão se limita às transmissões definidas no art. 530 do Cód. Civil, isto é, às transmissões sujeitas a transcrição; b) o de que o impôsto sôbre a cessão deve ser entendido como incluído na competência concorrente entre a União e o Estado e não pode, por isso mesmo, prevalecer contra impôsto federal.
A primeira assertiva se desdobra em outras questões, que serão examinadas a seu tempo. O argumento essencial, entretanto, é o que se atém à compreensão do impôsto de transmissão como impôsto restrito à transmissão integral do domínio, mediante transcrição do respectivo contrato. Procura-se dar a entender que só êsse ato incorre no impôsto de transmissão, tese que nos parece supervalorizar o rótulo do tributo, desprezando suas origens e sua história, através da legislação fiscal brasileira.
O impôsto de transmissão não surgiu de momento perfeito e integral, da cabeça de Júpiter, como um tributo inteiramente novo. Ao contrário, veio apenas como um título novo para os mais velhos de nossos impostos, a veneranda sisa dos bens de raiz, a vetusta taxa de herança e legados. A bem dizer, foi um título, apenas, para a consolidação de impostos velhíssimos, e a cuja natureza e extensão não podia ser indiferente o rótulo adotado. A própria lei autorizativa do novo título, ou da consolidação que êle traduzia (a lei nº 1.507, de 26-9-1867, art. 19 – uma lei orçamentária, aliás) enumerava, além da taxa de heranças e legados, a sisa dos bens de raiz, a meia-sisa da venda dos escravos, os direitos sôbre a venda de embarcações, o sêlo das doações, trocas de imóveis, constituição de enfiteuse e de subenfiteuse – “e outros” indicados na tabela anexa à lei de 30-11-1841. Não se tratava, pois, de um impôsto criado para abranger fatos econômicos não tributados e que se contivessem, apenas, na expressão de “transmissão da propriedade imóvel”. E os impostos que sob o novo título se reuniam e consolidavam, nunca tiveram natureza restrita aos vocábulos do novo título. As próprias sisas, incluídas no novo rótulo, alcançavam, de maneira efetiva e regular, os bens móveis, como os de raiz e as mercadorias de importação. Para evitar fraudes, que decerto não são privilégios de nossos contemporâneos, os Artigos das Sisas foram abrangendo diversas operações, que tendiam a burlar a incidência do tributo, como as vendas condicionais, os arrendamentos a longo prazo, os empréstimos sem obrigação de restituição e mil e uma fórmulas, de certo não mais engenhosas que a atual “cessão de contrato de promessa irrevogável”. E a razão lá estava, nos próprios Artigos das Sisas: é que, “se isto fôsse consentido, todos por esta maneira venderiam os bens de raiz para dêles não havermos sisa”. Cautela que o dec. nº 2.800, regulando o impôsto de transmissão, em 1898, procurava conservar, dizendo, no art. 48:
“Quando houver transmissão secreta de bens, inscrevendo-os o possuidor nos arrolamentos para impôsto predial ou pena d’água, arrendando-os ou por qualquer modo exercendo atos relativos à propriedade ou usufruto, cobrar-se-á impôsto de comera e venda” (dec. nº 4.385, de 1869, art. 10; dec. nº 5.581, de 1874, art. 18; ordem n° 283, de 1835).
Como se vê, o legislador não esquecia os séculos de luta contra as tentativas de sonegação e de fraude e considerava que houvera transmissão secreta, em face da inscrição do nome do novo possuidor, nos registros do impôsto predial. E êsse tributo era impôsto de transmissão, muito embora já houvesse também, desde a lei nº 1.237, de 24-9-1864, o mesmo regime consignado em nosso Cód. Civil: “a transcrição é hoje o modo legal de transferência de domínio sôbre os imóveis”, ensinava LAFAYETTE, no “Direito das Coisas”, ed. de 1877. O que não impedia que o impôsto de transmissão se aplicasse até mesmo à transmissão “secreta”, limitada à substituição dos nomes dos proprietários, no registro do impôsto predial. Porque a tese sempre foi a de que o impôsto deveria estar suficientemente armado contra a sonegação e a fraude, dentro daquele espírito que já encontramos nos Artigos das Sisas, capítulo XI, qual seja o de não ignorar que “se e isto fôsse consentido, todos por esta maneira venderiam os bens de raiz por dêles não havermos sisa” (Artigos das Sisas, consolidadas por ordem de D. Sebastião, ed. de 1816).
Poderíamos mostrar que o impôsto de transmissão nunca teve o caráter restritivo que a exegese atual procura lhe atribuir. Poderíamos invocar os diversos textos de sua regulamentação, o de 1869, o de 1874, o de 1898, o de 1934. Limitemo-nos, porém, ao dec. lei nº 9.626, de 1946, decreto-lei de origem federal. O que nêle se encontra é o que vem de seus venerandos antecessores, a velha si a e os regulamentos do tempo do Império. Pois bem, vemos que, sob a denominação de “impôsto de transmissão”, encontramos:
1) O impôsto sôbre a incorporação de imóveis ao patrimônio das pessoas jurídicas, para a formação do capital social. CARVALHO DE MENDONÇA se insurgira contra êsse impôsto e sua tese foi acolhida favoràvelmente pela jurisprudência, até que a Constituição de 1934, defendendo o fisco estadual contra o federal, veio restaurar a competência estadual em têrmos definitivos.
2) Alienação, cessão ou dação em pagamento das ações de sociedades anônimas, que tenham por objeto a exploração propriedades imobiliárias. Já figurava em têrmos ainda mais genéricos, no dec. nº 2.800, de 1898.
3) Transferência de construções existentes em terrenos alheios, ainda que aos proprietários dos terrenos.
4) Transferência de direito e ação à herança ou legado.
5) Reposição em inventário ou partilha.
6) Aquisição de imóveis por usucapião.
7) Cessão de direitos do arrematante adjudicante, depois de assinado o auto de arrematação ou adjudicação.
8) Alienação do exercício do direito usufruto.
9) Cessão de privilégios e concessões feitas para a exploração de serviços públicos ou de qualquer outra natureza.
10) Cessão do contrato de promessa de venda, contendo êste, ou não, autorização para que o compromissário indique terceiro, que não o nominalmente indicado no mesmo, para receber a escritura definitiva.
Como se depreende dessa enumeração, que corresponde ao que se encontra nos regulamentos e leis anteriores sôbre o impôsto de transmissão, não é um impôsto limitado à transmissão integral do domínio. Não resulta, também, da presença de uma transcrição. Não exclui a cessão, que figura em vários itens, alguns dêles pacíficos na exegese, como a cessão de direitos hereditários. Detenhamo-nos nesse tributo, que incide sôbre uma cessão de direitos e ação à herança.
Os antecedentes do impôsto de cessão
Inicialmente, devemos dizer que não é de hoje que o impôsto sôbre a cessão figura entre os impostos de transmissão. No primeiro regulamento adotado no Brasil, o que consta do dec. nº 4.355, de 17-4-1889, declara-se devido o “impôsto de transmissão” na cessão de privilégios, na transferência de ações, e nos “direitos e ações relativos aos bens, de que tratam os números antecedentes”, isto é, os bens imóveis, móveis e semoventes sujeitos ao impôsto. Também a sub-rogação, que envolvi cessão de direitos sempre esteve incluída no âmbito da incidência do impôsto de transmissão, desde a sua criação em 1869 (art. 3º, inciso 10, do dec. nº 4.355, de 1869). Outra cessão, que também nunca deixou de receber o impôsto de transmissão, foi a cessão de direitos hereditários, que envolve não apenas coisas, como também direitos e ações. Embora a herança seja considerada imóvel por fôrça de lei, não pode ser mais imóvel que os edifícios, transferidos por meio de cessões, e que são imóveis pela própria natureza, como se diz no hino.
Essas mesmas normas se repetiram no regulamento promulgado pelo dec. nº 5.581, de 28-3-1874, em que se declarava que o impôsto de transmissão “recai sôbre a transferência de propriedade ou usufruto de bens imóveis, móveis e se moventes, nos casos que designa o presente regulamento”.
Incluía a transferência de apólices (art. 2º, 2), de títulos de dívida pública, ações de companhias, créditos e dívidas ativas (art. 2°, 3), compras e vendas de embarcações, de escravos (art. 14, 3 e 4), dos “direitos e ações relativos aos bens de que tratam os números antecedentes (art. 14, 5), constituição de enfiteuse”, “cessão de privilégios” (art. 14, 8), sub-rogação de bens inalienáveis. O art. 18 prevenia a hipótese de fraude:
“Quando houver transmissão secreta de bens, inscrevendo-os o possuidor nos arrolamentos da décima urbana geral ou provincial, e de outros impostos, arrendando-os por qualquer modo, exercendo atos relativos à propriedade ou usufruto, cobrar-se-á o impôsto de compra e venda” (ordem nº 283, de 10-10-1835).
Era, também, devido da cessão de benfeitorias (art. 21).
Foi êsse tributo, com a configuração e a extensão que lhe vinham dessas leis do império, que se transferiu, ou que se incorporou à competência tributária dos Estados, por fôrça da Constituição de 1891. “Debaixo desta denominação”, ensina JOÃO BARBALHO, “conforme a legislação imperial, compreendiam-se nos impostos denominados taxa de herança e legados, sisa dos bens de raiz, impostos de vendas de embarcações nacionais e estrangeiras, de dispensa das leis de amortização, de habilitação para herança, de insinuações de doações e de licença para sub-rogação de bens inalienáveis. Tôdas essas imposições ficaram para os Estados” (e já das Províncias era o de herança e legados, em virtude das leis nº 38, de 1834, e nº 99, de 1835). “E, além delas, as que sôbre transmissão de propriedade, de qualquer outro gênero, o Estados entendessem lançar” (“Comentários”, 2ª ed., pág. 54).
Assumia, por isso, importância o primeiro regulamento, que se viesse a fazer no regime republicano, para determinação da incidência e alcance dêsse impôsto. Mas o dec. nº 2.800, de 19-1-1898, não chegou propriamente a inovar, nesse domínio do impôsto de transmissão. Limitou-se a consolidar e a precisar o que já se dizia na legislação imperial. O tributo continuava a alcançar a transferência de apólices, de títulos da dívida pública, de ações, debêntures e outros títulos de companhias ou sociedades anônimas, em comandita por ações, assim como créditos, dívidas ativas, direitos e ações relativos a bens, cujo transmitente tivesse domicílio na Capital federal (art. 24). Alcançava a constituição ou extinção do usufruto ou da enfiteuse, a cessão de herança (art. 25), as compras e vendas, ou “atos equivalentes”, a cessão de privilégios, a sub-rogação de bens inalienáveis, repetindo-se, no art. 48, a norma salutar, contra as insídias da fraude:
“Quando houver transmissão secreta de bens, inscrevendo-os o possuidor nos arrolamentos para impôsto predial ou pena d’água, arrendando-os ou por qualquer modo exercendo atos relativos à propriedade ou usufruto, cobrar-se-á o impôsto de compra e venda”.
A cessão de benfeitorias também incidia no impôsto, que nem se amarrava à transcrição nem se restringia à compra e venda do domínio.
O art. 530 do Cód. Civil repetiu norma, que já estava consagrada na legislação anterior. LAFAYETTE, desde a primeira edição do “Direito das Coisas”, em 1877, já dizia que “antes de preenchida a formalidade da transcrição do título de transmissão, para o adjudicante”, reportando-se à lei nº 1.237 de 24-9-1864, art. 8º, e ao dec. nº 3.453, de 26-4-1865, art. 256, que reformaram a legislação hipotecária no Brasil.
Dizia o preceito da lei nº 1.237, art. 8°, que a transmissão inter vivos não opera seus efeitos a respeito de terceiro senão pela transcrição e desde a data dela, o que vale dizer que sòmente a partir dessa data se constituía o direito real sôbre a coisa. O que não impediu que a lei tributa se até mesmo as transferências secretas, pela convicção de que, se não prevenisse a fraude, melhor seria não criar o impôsto, que de outro modo seria burlado e anulado.
A cessão, como vimos, não gozava de nenhuma imunidade. O impôsto já incidia sôbre a cessão de direitos hereditários, a cessão de privilégios a cessão de benfeitorias. Não se chegou, por isso, a considerar extravagante a nova lei reguladora do impôsto no Distrito Federal, o dec. nº 4.613, de 1934, quando, consolidando as disposições legais existentes, declarou devido o impôsto de transmissão “de todos os atos constitutivos e translativos da propriedade e dos demais direitos reais”, indicados “sôbre imóveis, navios e embarcações, inclusive os bens imóveis que os sócios ou os acionistas retirassem em pagamento de quinhões”. E não contente com a enumeração, acrescentava: “e de todos os demais atos e contratos translativos de imóveis, situados no Distrito Federal e sujeitos à transcrição”. Sòmente os sujeitos à transcrição? A lei abrangia, também, a cessão ou venda de benfeitorias, a transferência de contratos e ações, a conversão de ações em títulos ao portador, a cessão de privilégios, as doações de bens móveis e imóveis, a sub-rogação de bens inalienáveis, a constituição da enfiteuse. No art. 5º prevenia o decreto um processo eficaz de evasão, destinado a uma grande fortuna, dizendo:
“Nos contratos de promessa de venda de bens imóveis, por escritura pública, em que o “promitente-comprador faça cessão de direitos, relativa aos mesmos bens”, cobrar-se-á sôbre o preço ou valor de cada cessão o impôsto de compra e venda”.
Como se vê, não se alterou, durante êsse longo período examinado, de 1867 a 1934 o regime, ou a incidência do impôsto de transmissão que, de modo geral, não se limitava à transferência de imóveis. O impôsto de transmissão causa mortis sempre abrangeu tôda espécie de transferência, fôssem quais fôssem os bens que constituíssem a herança. O impôsto inter vivos alcançava os imóveis por fôrça de lei e ainda os títulos e o direito e ação. Não se restringia, aliás, à transmissão, pois que alcançava, também, a constituição de direitos reais, nem se circunscrevia à transferência do domínio, pois que podia incidir sôbre atos translativos e constitutivos de direitos reais, inclusive a sub-rogação de bens inalienáveis.
Assim, a conclusão que se impõe é a de que o dec. lei nº 9.626, de 1946, não inovou coisa alguma e que apenas manteve o impôsto de transmissão dentro de normas tradicionais, tão velhas quanto os tributos que êle consolidara. E que entre as Constituições que nos, governaram, a de 1891, a de 1934, a de 1937 e a de 1946, nada se alterou nessa competência tributária dos Estados, pois que tôdas elas declaravam que, estava incluída na competência dos Estados a arrecadação o impôsto de transmissão – o que valia dizer aquêle mesmo tributo, que viera desde o regulamento de 1869, abrangendo a diversas formas de transferências, desde compra e venda à alienação de ações e à cessão de direitos, que se reportassem à propriedade imobiliária.
A doutrina dos poderes implícitos
Não nos parece, por isso, que o impôsto chamado de cessão seja um novo tributo, criado dentro da competência concorrente entre a União e o Estado, nos têrmos do art. 21 da Constituição de 1946. O impôsto de cessão é, na verdade, um caso típico de impôsto de transmissão, tanto mais quando se considera que, na partilha dos tributos, houve a intenção de deixar com o Estado a transferência de direitos imobiliários (impôsto de transmissão) assim como a de coisas móveis (vendas e consignações). Dir-se-á que, no caso da cessão, não existe transmissão, pois que falta a transcrição, mas os que assim pensam esquecem que também se inclui entre os impostos de transmissão a cessão do direito e ação à herança, a cessão de privilégios, à constituição de usufruto ou de enfiteuse, a sub-rogação de bens inalienáveis. No fundo, estamos diante de um caso de poderes implícitos: a transmissão do domínio é um caso de incidência, mas quem pode tributar a alienação do domínio pode, também, tributar o alienação dos direitos reais que integram o domínio.
A doutrina dos poderes implícitos surgiu como a fórmula mais indicada para assegurar nos Estados Unidos, sob o prestigio de HAMILTON, a ampliação da autoridade da União. Dizia o grande jurista e publicista que, além dos poderes expressamente conferidos, o govêrno federal possuía, em sua opinião, os poderes resultantes dêsses poderes expressos (resultant powers), tais como o direito de governar territórios conquistados, e os poderes “implícitos” (implied powers). A tese de HAMILTON prevaleceu na Suprema Côrte, graças, sobretudo, à influência do voto luminoso de MARSHALL, no célebre caso McCulloch v. Maryland, quando se discutia a criação de um segundo banco nacional nos Estados Unidos. “Durante anos”, escrevem ANDRÉ TUNG e SUZANE TUNC, num livro excelente, “essa teoria foi objeto de discussões ardentes. Desde muito, seu princípio não é mais contestado” (“Le Système Constitutionel Etats-Unis d’Amérique”, pág. 91). MUNRO também reconhece que “the doctrine of implied powers was thus given recognition in 1819, and it has ever since been a well-establlished rule or principle of American Constitucional interpretation” (“The Government of the United States”, 1946, pág. 356).
Devemos a RUI BARBOSA a pregação, no Brasil, do princípio americano, já com uma feição mais geral e não apenas como extensão da autoridade da União. “Não são as Constituições”, dizia, RUI, “enumerações das faculdades atribuídas aos poderes dos Estados. Traçam elas uma figura geral do regime, dos seus caracteres capitais, enumeram as atribuições principais de cada ramo da soberania nacional e deixam à interpretação e ao critério de cada um dos poderes constituídos, no uso dessas funções, a escolha dos meios e instrumentos com que os tem de exercer a cada atribuição conferida. A cada um dos órgãos da soberania nacional do nosso regime corresponde implicitamente, mas inegàvelmente, o direito ao uso dos meios necessários, dos instrumentos convenientes ao bom desempenho da missão que lhe é conferida. Nunca a êste respeito se disputou, nem mesmo no Brasil, onde até de alfabeto entre homens ilustres constantemente se contende. Querer inferir do silêncio constitucional sôbre o uso de uma medida, quando esta medida, cabe naturalmente no âmbito de atribuições, cujas funções se quer desempenhar, inferir, digo, daquele silêncio constitucional sôbre êste poder da forma republicana do govêrno, a proibição constitucional dessa medida é o mais frágil, mais infantil, mais frívolo dos absurdos” (“Comentários à Constituição Federal Brasileira”, coligidos por HOMERO PIRES, vol. I, págs. 203-204).
Na exegese de RUI BARBOSA, a lição de MARSHALL é exata, “não só para o nosso regime, mas para todos os regimes. Essa verdade fundada pelo bom-senso é a de que, em se querendo os fins, se hão de querer, necessàriamente, os meios; a de que se conferimos a uma autoridade uma função, implìcitamente lhe conferimos os meios eficazes para exercer essas funções”. Não caberia aqui insistir no ensinamento magistral de MARSHALL (vide “Decisões Constitucionais de Marshall”, trad. de AMÉRICO LÔBO, Rio, 1903, págs. 104 e segs.), ou nos de WILLOUGHBY e WATSON, citados pelo mestre baiano. Em nosso direito, a norma dos poderes implícitos sofreu alguma alteração, sendo reservados aos Estados, já na Constituição de 1891, “todo e qualquer poder, ou direito, que lhes não fôr negado por cláusula expressa da Constituição” (art. 65, 2). É, mais ou menos, a redação adotada na Constituição de 1934 (art. 7º, IV), na de 1937 (art. 21, II) e na de 1946 (art. 18, § 1°). A emenda X à Constituição dos Estados Unidos declara que “os poderes, que não são delegados aos Estados Unidos pela Constituição, ou por ela recusados aos Estados, são reservados respectivamente aos Estados, ou ao povo”. Há alguma diferença entre as duas soluções. O preceito constitucional brasileiro atribui aos Estados todos os poderes que lhes não são recusados por cláusula expressa ou implícita; a Constituição americana atribui aos Estados o que venha a sobrar da competência expressa da União. Há, como se vê, uma diferença de grau, sem que, em substância, se possa dizer que seja diversa a conclusão. Num caso e no outro observam-se impropriedades de expressão. Se atendermos aos vocábulos, a competência “implícita” não pode ser deslocada de uma entidade para outra; o que se atribui aos Estados é a competência residual, segundo a expressão de PONTES DE MIRANDA, ou a competência remanescente, isto é, aquela que não é expressa ou implicitamente atribuída à União.
Na verdade, tôda competência expressa tem uma faixa de poderes implícitos correspondentes e que decorrem da norma legal. Se a União recebe o encargo privativo de legislar sôbre direito civil, todo e qualquer outro direito que, na sua essência, se acrescente ao direito civil, está incluído na competência implícita, ainda que, ao temo da promulgação da Carta constitucional, não chegasse a figurar no direito civil.
De um modo geral, todos os encargos atribuídos à União, ou ao Estado, ou aos Municípios, acarretam a outorga dos poderes necessários à realização cassas atribuições. “Em se querendo os fins, se hão de querer, necessàriamente, os meios; se conferirmos a uma autoridade uma função, implicitamente lhe conferimos os meios eficazes para exercer essas funções”, como dizia RUI BARBOSA. Aos poderes expressos correspondem, pois, os poderes implícitos indispensáveis à realização ou efetivação dos poderes expressos, o que vale dizer que, nesse sentido, tanto a União, como o Estado ou o Município, gozam de poderes implícitos, isto é, das faculdades que completam, ou integram, a competência expressa.
Fora da competência expressa e dos poderes implícitos, há uma terceira ordem de poderes – a dos que não podem figurar, nem na competência expressa, nem na competência implícita dos órgãos governamentais, ou das unidades administrativas existentes. Para essa terceira ordem de poderes é que cabe a denominação adotada – a de poderes residuais, ou remanescentes. Daí o art. 18, que se reserva aos Estados todos os poderes que, implícita ou explicitamente, não lhes sejam vedados. Quais os poderes implícitos que lhes são negados? Decerto os que integram ou completam competência expressa da União e dos Estados, poderes que decorram, naturalmente do sistema adotado em nossa organização política e tendam a garantir a realização dos poderes conferidos pela Constituição. A lição MARSHALL, na famosa decisão McCulloch v. Maryland, não perdeu atualidade, dentro da tese a que RUI BARBOSA se referia, a de que, em se querendo os fins se hão de querer necessariamente os meios para sua consecução.
Os poderes implícitos e a discriminação de rendas
Êsses princípios encontram aplicação na distribuição da competência tributária da União, dos Estados e dos Municípios. Existe, de fato, uma competência expressa, privativa das entidades a que se reportam. Uma competência exclusiva da União, definida no art. 15 da Constituição, outra dos Estados, enumerada no art. 19, uma terceira dos Municípios, apontada no art. 29. Não poderá a União criar nenhum impôsto, que figure na competência dos Estados, ou dos Municípios. E vice versa. Se não prevalecessem essas esferas de competência exclusiva, não haveria autonomia dos Estados, ou dos Municípios. Autoridade nesses assuntos, CARVALHO PINTO afirma com segurança: “Não há dúvida que o regime federativo exige determinações discriminatórias”. E acrescento: “Tendo cada uma dessas unidades federativas responsabilidades bem definidas no exercício da finalidade estatal; com conseqüentes encargos privativos, não poderiam deixar de ter assegurados, pelo menos, as fontes próprias da receita necessária à cobertura das correspondentes despesas. Admitir a livre concorrência tributária dessas unidades, seria abrir caminho a competições perigosas, propiciando conflitos e favorecendo hostilidades entre poderes, cuja atuação só se compreende conjugada, em plena harmonia e comunhão de esforços” (“Discriminação de Rendas”; págs. 39-40). Doutrinava o professor F. FLORA que “l’esistenta di una duplice finanza, diversammte e liberamente ordinata, è la condizione essenziale della indipendenza del governo centrale e del governi locali” (“Le Finanze degli Stati Composti”, pág. 26). Pode haver outros sistemas de distribuição de impostos, mas nenhum tão simples quanto o dessa discriminação com a exclusividade de determinados tributos para a União, o Estado e o Município.
De outro modo, com a tendência que se observa no Brasil, a União invadiria a esfera de competência das outras entidades, contando com as simpatias de uma organização judiciária, em que o órgão supremo não pode esquecer fàcilmente suas origens federais. Dai a tendência de tôdas as nossas Constituições, desde a de 1891, para atribuírem uma esfera exclusiva à União, outra ao Estado, uma terceira ao Município, com as conseqüentes vedações, garantidoras do sistema.
Mas é de ver que não existe apenas uma competência privativa: há que contar com a competência implícita e a competência residual ou remanescente. Há tributos que não foram atribuídos nem à União, nem ao Estado, nem ao Município, nada impede que sejam criados. A Constituição não proíbe o seu aproveitamento, deixando-os no âmbito da competência concorrente, que tanto pode ser exercida pela União, como pelo Estado, nos têrmos do art. 21. Mas se a União e o Estado recorrerem à mesma fonte tributária? Então, diz a Carta de 1946, o impôsto federal excluirá o estadual idêntico.
“Os Estados farão a arrecadação de tais impostos e, à medida que ela se efetuar, entregarão vinte por cento do produto à União e quarenta por cento aos Municípios onde se tiver realizado a cobranças”.
Examine-se êsse preceito, que a justiça até hoje não quis aplicar. Exclui a norma do impôsto estadual idêntico, mas determina que a arrecadação caiba ao Estado. O que não seria possível era negar tudo ao Estado, isto é, negar o impôsto recusar a arrecadação. A receita, porém, se distribuirá entre o Estado, a União e os Municípios, à razão de 20% para a União, 40% para os Estados e 40% para os Municípios. Todavia, se o impôsto, criado dentro dessa competência concorrente, residual ou remanescente, não coincide com outro impôsto da mesma natureza, sua arrecadação cabe, integralmente à entidade que a estabeleceu, União ou Estado. A divisão da receita só se aplicará no caso de dupla tributação.
Mas êsses dois domínios de competência não esgotam todo o campo tributário. Ao lado da competência expressa e da residual ou remanescente, existe uma terceira faixa de competência: a competência implícita, decorrente das faculdades expressas e da linha geral do sistema tributário estabelecido na Constituição. A União pode declarar impostos sôbre a importação de mercadorias. Qualquer impôsto que se identifique, na incidência, com o de importação, ou atinja a mercadoria no momento de sua entrada, cabe, conseqüentemente, à União. O poder de tributar a renda não se esgota com o impôsto sôbre a renda. Qualquer outro impôsto, que tenha por objeto a renda, cabe à União. É o caso do impôsto sôbre o lucro imobiliário, que poderia ser do Estado, pois que atinge a transmissão, se nêle não preponderasse o aspecto da renda obtida na operação.
É o que se dá com o impôsto de transmissão da propriedade imobiliária. Quem pode tributar a transferência do domínio, tem competência para tributar, também, a transferência dos direitos reais, que integram o domínio. A tese, aliás, já foi exposta e definida por PONTES DE MIRANDA, nos “Comentários à Constituição de 1946”, quando escreveu (vol. II, pág. 75), reportando-se ao impôsto de transmissão:
“Tal impôsto compreende vendas, trocas (dois impostos), doações, sub-rogações de bens clausulados, constituição de enfiteuse ou subenfiteuse, cessão ou venda de benfeitoria, bem como constituição de uso, de usufruto, de renda sôbre imóveis, hipotecas, anticreses, etc. Todo direito real que a favor de outrem é constituído transmite elemento de propriedade. Quando, se alienou o domínio ou a nua-propriedade de bem despojado de certos elementos de direito, já o seu valor está diminuído; de modo que o corpo político, competente para decretar o impôsto sôbre a transmissão de propriedade inter vivos, não o é só para a transmissão de qualquer domínio. Mas, sim, para a transmissão de qualquer elemento da propriedade”.
Era, também, a lição de JOÃO BARBALHO, quando dizia que debaixo da denominação de transmissão de propriedade compreendiam-se os impostos denominados taxa de heranças e legados, sisa dos bens de raiz, impostos de venda de embarcações, de dispensa das leis de amortização, de habilitação para heranças, de insinuação de doações e de licença para sub-rogação de bens inalienáveis. “Tôdas estas imposições”, comenta o jurista, “ficaram para os Estados. E, além delas, as que sôbre transmissão de propriedade de qualquer outro gênero os Estados entenderem lançar” (2ª ed., pág. 54). É, de maneira geral, a aplicação do velho brocardo: o acessório segue o principal. Ou qui potest majus potest et minus.
Nem poderia ser de outra forma. Se fôsse possível que a União tributasse a transferência do direito de uso, ou do direito, de alienar, quando se chegasse a transferir o remanescente do domínio (se é que se poderia chamar domínio a êsse remanescente), pouco haveria que alienar e, conseqüentemente, o que tributar. Estaria mutilada, aniquilada, invalidada a competência tributária específica e exclusiva do Estado e destruído o sistema de discriminação constante da Constituição. Por onde se vê que ou a competência implícita é respeitada, ou a expressa se dilui e desaparece.
Não se podará contestar que a promessa de compra e venda irrevogável ou que a cessão dessa promessa processadas em acôrdo com o dec. lei nº 58, ou com a lei nº 649, transfira direitos reais. Há, de certo, um contrato de promessa de venda que é um contrato preliminar de compra e venda e cujas conseqüências são meramente pessoais. Não duvidamos que êsse contrato, ou que a cessão dêle, incida, apenas no impôsto do sêlo proporcional, impôsto federal. Mas desde que haja transferência de direitos reais, já não cabe o impôsto federal do sêlo proporcional, pois que estamos no domínio da competência para tributar a transmissão. Pode não ser a transmissão integral do domínio, mas é um impôsto sôbre a transferência de parcelas ou elementos do domínio, e quem pode tributar a transmissão do domínio tem, também, poderes exclusivos para tributar a alienação de parcelas do domínio, ou de elementos que o integram.
Não se poderá negar que a promessa de venda, ou que a cessão da promessa, processadas de acôrdo com o dec. lei nº 58, transfere parcelas da propriedade imobiliária ou, mais precisamente, transfere direitos imobiliários. O próprio decreto-lei declara que a averbação “atribui ao compromissário direito real oponível a terceiros, quanto à alienação ou “operação posterior”. A lei nº 649, de 11-3-1949, diz que êsses contratos “atribuem aos compromissários direito real, oponível a terceiros e lhes confere o direito de adjudicação compulsória, nos têrmos dos arts. 16 desta lei e 346 do Cód. de Proc. Civil”.
Atribuir, no caso, vale transferir, pois que é atribuir a outrem que não o proprietário anterior. E atribuir a outrem direitos reais que integram o domínio é uma nova forma de transmissão por meio da qual se derroga o Cód. Civil que não poderia permitir semelhante conseqüência, nem os efeitos jurídicos dessa atribuição, se prevalecesse o preceito, que só admite transmissão quando há transcrição. O que não pode deixar de nos levar à conseqüência de que o dec. lei nº 58 e a lei nº 649 derrogaram o Cód. Civil, admitindo uma nova forma de transmissão dependente da averbação (dec. lei nº 58), ou da inscrição (lei n° 649). E o tributo que incide sôbre essa nova espécie de transmissão é legitimamente impôsto de transmissão ou, quando muito, um novo impôsto, o de cessão dentro da competência privativa do art. 19, pois incidente sôbre a transferência de elementos da propriedade imobiliária.
Alguns julgados negam que se trate de um novo título, ou de uma nova forma de transmissão, embora, o que é paradoxal, reconheçam ou atribuam a êsse ato todos os efeitos de uma transmissão exceto o impôsto respectivo. Admitem a retomada pelo cessionário, mesmo antes da lei nº 1.300. Reconhecem que o bem cedido, ou prometido, responde pelas dívidas pessoais do cessionário, ou do promissário-comprador, o que significa, sem dúvida, uma transferência efetiva do imóvel do patrimônio do cedente para o do cessionário. Em tudo e por tudo uma transmissão real, menos quanto ao impôsto. Para êsses outros efeitos, nada vale o famoso art. 530 do Cód. Civil e ainda se nega ao Estado competência exclusiva para tributar a transferência de direitos imobiliários, como faculdade implícita, decorrente da competência expressa no artigo 19 da Constituição.
Não se trata, pois, de aplicação do art. 21 da Constituição. Não é caso de competência concorrente, para um domínio tributário residual, ou remanescente, mas tão-sòmente da competência privativa atribuída ao Estado pelo art. 19. E tanto é assim, que os próprios julgados, que invocam a tese de que o impôsto federal exclui o estadual idêntico, não aplicam o restante do preceito, que manda seja o impôsto arrecadado pelo Estado e não pela União. E se êsses julgados não chegam a essa conclusão, no cumprimento fiel do art. 21, é que a diversidade dos impostos detém o seu gesto e os arrasta a uma conclusão, que acaba sendo incongruente, pois que só obedece a metade do art. 21. Na verdade, o que está sobrando é o impôsto federal do sêlo, nos contratos processados de acôrdo com a lei nº 649. E o que se vê, no caso, é que a União, insistindo nesse impôsto, que lhe não cabe, facilita a sonegação de outro tributo, que na verdade lhe pertence, o do lucro imobiliário, que também é iludido e sonegado nas cessões.
A fôrça de inércia das ficções jurídicas é, todavia, alguma coisa espantosa se surpreendente. Estamos, sem dúvida, diante de uma fraude, que a justiça ainda não quis repudiar e condenar, embora não desconheça as proporções assumidas pela especulação imobiliária, que tantas fortunas fêz surgir e tanto concorre para o encarecimento da propriedade imobiliária. Todos os absurdos medram à sombra das novas teses, com que se beneficia a especulação. Há uma promessa irrevogável, como se a promessa não tivesse, como característica, a sua mesma revogabilidade. Não há exagêro em dizer que a promessa deixa de ser promessa, à medida que deixa de ser revogável, pois que assim se elimina o elemento incerto, ou aleatório, que é da substância do próprio vocábulo. Quando os romanos acrescentaram a preposição pro ao particípio do verbo mittere, queriam indicar que se tratava de alguma coisa para diante, de alguma coisa futura, traduzindo, assim, o elemento de uma nova volição, que seria o cumprimento ou a violação ou esquecimento da promessa. Sem êsse elemento futuro e incerto, a promessa passa a ser um ato definitivo, a tal ponto que até pode ser exigido compulsòriamente e no qual pouco resta a cumprir, pois que o ato da promessa, esvasia o conteúdo do negócio jurídico e não deixa, pràticamente, nada mais para o futuro. Não é menos subversivo denominar cessão a um ato, que de fato transfere a posse, o direito de uso, de gôzo e de alienar, assim como as ações possessórias que correspondem ao próprio domínio. Para essa orientação extravagante, já não se pode invocar o Cód. Civil, a cujo sistema repugna o emprêgo do vocábulo cessão para a transferência de direitos imobiliários, pois que CLÓVIS BEVILÁQUA já nos advertira de que a “alienação dos outros direitos denomina-se, antes, cessão” (“Comentários”, ao art. 1.122, nº 1). Que outros direitos? Os que não integram o domínio, pois que a cessão de coisa imóvel é transmissão, ou é alienação, mas cessão nunca foi. De esto, o Cód. Civil não é tão rigoroso, quanto os seus atuais intérpretes, no emprêgo do vocábulo transmissão, pois que fala, em “transmissão de crédito”, no art. 1.067, o que, no entender dos exegetas atuais, talvez pudesse autorizar o impôsto de transmissão sôbre a transferência de créditos … Não iremos a tanto. Não são as palavras que tornam o impôsto legítimo, mas a substância do ato. A transmissão de créditos, a que se refere o art. 1.067 do Cód. Civil, não transfere elementos da propriedade imobiliária. Escapa, conseqüentemente, à aplicação do art. 19. Mas se ao contrário, um ato se denomina “cessão”, mas transfere elementos da propriedade imobiliária, quando não tôda a propriedade, cabe o impôsto respectivo, dentro da competência do art. 19, pois que é preciso atender à substância e não ao rótulo do contrato.
Ficamos a imaginar que êsse novo e estranho direito das promessas irrevogáveis e das cessões de propriedade imobiliária se estenda ao direito de família. Tão revolucionário e tão poderoso vem sendo êle, que não estranharíamos a aplicação. Teríamos, então, a promessa irrevogável de casamento com o direito de adjudicação compulsória e a posse imediata da moça. Que falta, para chegarmos a êsse novo direito de família?
Preferimos, por isso, continuar com os velhos princípios. A promessa irrevogável é um ato definitivo e constitui novo título de transmissão, que transfere diretos reais por meio de inscrição valendo erga omnes. O impôsto a aplicar é o impôsto de transmissão, atribuído aos Estados. Dentro da competência exclusiva, estabelecida na Constituição, o impôsto da autoridade competente exclui os outros. A norma do art. 21 só se aplica ao domínio da competência privativa, quer se considere o impôsto de cessão como um impôsto de transmissão, quer seja êle recebido como um impôsto novo, dentro dos poderes implícitos que sabem a quem pode tributar a transparência da propriedade imobiliária. Podemos dizer como o Sr. ALIOMAR BALEEIRO, que “á eficácia dos princípios implícitos é equiparável à das regras expressas” (“Limitações constitucionais ao poder de tributar”, pág. 145). O que vale dizer que a competência tanto é privativa no exercício das normas expressas, quanto no dos poderes implícitos.
Se não é constitucional o impôsto de cessão, há, então, que rever a discriminação tributária da Constituição de 1946, pois que o impôsto de transmissão inter vivos tende a desaparecer, ou a se reduzir a uma têrça ou quarta parte de sua incidência, à medida que se multiplicam as cessões e escasseiam os contratos de compra e venda, que já passaram ao arquivo das velharias, sob uma expressão característica, que surpreenderia os antigos civilistas – a de escritura definitiva. O certo é que, para cada quatro ou cinco transferências. há uma escritura definitiva e, conseqüentemente, há um impôsto para cada grupo de quatro ou cinco transferências efetivas do imóvel. Essa evasão de receita constitui grave problema de ordem financeira para os Estados, que já não receberam o melhor quinhão na partilha tributária da Carta de 1946. E se ainda perdem uma parcela tão considerável de sua receita tradicional, vamos convir que estamos diante de um grave problema de ordem financeira. E se a cessão pode substituir a compra e venda, é que seus efeitos são idênticos, nos contratos que estão sendo adotados. Ninguém usaria papel-lixa para substituir papel de ofício. Se o sucedâneo satisfaz, é que se identifica com o artigo substituído. O que vale dizer que a cessão, na realidade, é uma alienação imobiliária. E tudo o que se pretende é que haja impôsto de transmissão, e que êsse impôsto caiba aos Estados, sempre que haja alienação efetiva do domínio ou, o que vem a dar no mesmo, dos direitos reais que integram o domínio.
Não nos parece que se possa contestar a constitucionalidade do impôsto de cessão e assim o entenderam os próprios legisladores constituintes de 1946, quando, reunidos em Congresso Legislativo, elaboraram a lei nº 217, de 1948, na qual se declarou que o impôsto de transmissão incidirá “sôbre tôdas as formas legais de transmissão, inclusive a cessão de direito”.
Mais grave ainda se nos afigura a conseqüência de tudo isso. Para cobrir o desfalque sofrido na arrecadação do impôsto de transmissão, com a fortuna das cessões, de direitos reais, os Estados terão que recorrer a outras fontes de recita, principalmente o de vendas e consignações, que é o de mais fácil utilização e rendimento mais garantido. Como impôsto indireto, êsse tributo incide sôbre tôda a população, o que vale dizer que todo o povo será chamado a contribuir, para garantia, da imunidade atribuída à especulação imobiliária, quando recorra ao subterfúgio da cessão.
A escritura definitiva não corrige a evasão, pois que cobra impôsto de transmissão sôbre uma, transferência única, em casos onde houve três, quatro, cinco transferências. O impôsto de lucro imobiliário não pode, também, cobrir tôdas as vendas, ou tôdas as alienações. Tanto a União, como o Estado, estão sendo chamados a recorrer a outras fontes de renda, contanto que se respeite a estranha isenção, com que se mantém e prospera a especulação imobiliária. O que é uma contraprova do absurdo das teses que chegam a semelhante resultado, quando se vê que, diante da realidade, acabam sendo absurdas e principalmente iníquas.
Conclusão. Para concluir, no fundo de tudo isso há uma controvérsia, em que a origem da confusão está na impropriedade dos vocábulos usados. O impôsto que se discute não é, a bem dizer, de cessão, mas de transmissão. Aconteceu, porém, que o contrato mudou de nome e o legislador fiscal, receoso de perder um domínio incontestável e antiqüíssimo, resolveu, também, mudar de nome o impôsto, para acompanhar as manobras do contribuinte, no sentido da sonegação do tributo. E aí está o resultado: um impôsto que se chama, erradamente, de cessão, para incidir sôbre operação, que também erradamente se denomina de cessão. Se fôssemos adotar, como de dever, a substância dos contratos, e dos impostos, o melhor que podíamos fazer era restaurar os rótulos antigos de transmissão, deixando o título de impôsto de cessão apenas para os contratos, que não constituíssem ônus reais. E se assim viéssemos a agir, não teríamos dúvida em reconhecer que a competência para cobrar o impôsto de cessão seria da União e não do Estado. O que apenas sustentamos é que não muda a competência, pelo fato de se adotar, no contrato, um nome, que não corresponde à substância das estipulações. Se a matéria tributária dependesse exclusivamente dos rótulos adotados, deixaria de existir, ou de ter qualquer sentido, ou eficácia, a partilha tributária da Constituição, pois que bastaria o contribuinte alterar o nome do contrato, para estabelecer, arbitràriamente, uma isenção, que desfalca e compromete a discriminação constitucional de rendas.
Sobre o autor
Barbosa Lima Sobrinho, advogado da Prefeitura do Distrito Federal.
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