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17/02/2022

REVISTA FORENSE – VOLUME 149
SETEMBRO-OUTUBRO DE 1953
Semestral
ISSN 0102-8413

FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO

FUNDADORES
Francisco Mendes Pimentel
Estevão L. de Magalhães Pinto

Abreviaturas e siglas usadas
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CRÔNICA

DOUTRINA

PARECERES

  • Desapropriação por zona – Revenda parcial de imóveis desapropriados – Financiamento de obras públicas – “Excess condemnation” – Contribuição de melhoria – Bilac Pinto
  • Operação bancária – Desconto de títulos “a forfait” – Caracterização da usura – Francisco Campos
  • Doação – Fideicomisso – Substituição plural – Antão de Morais
  • Funcionário público – Natureza jurídica da relação de emprego – Acumulação remunerada – Direito adquirido – Federalização das faculdades de ensino superior – Carlos Medeiros Silva
  • O impôsto de indústrias e profissões sôbre as atividades bancárias, de seguros e de capitalização no Distrito Federal – Rubens Gomes de Sousa
  • Sociedade de capital e indústria – Patrimônio e capital – Divisão dos lucros sociais – João Eunápio Borges
  • Doação – Reserva de usufruto – Fideicomisso – Paulo Barbosa de Campos Filho

NOTAS E COMENTÁRIOS

  • Autoridade do julgado civil no Juízo Criminal – Fernando de Albuquerque Prado
  • A inseminação artificial em face da moral e do direito – Armando Dias de Azevedo
  • As garantias de reparação de danos no código do ar – Floriano Aguiar Dias
  • Responsabilidade civil pelos meios de transporte – Stefan Luby
  • Cheque com endôsso falso – Edmundo Manuel de Melo Costa
  • Registro de títulos de programas radiofônicos – Aloísio Lopes Pontes
  • Ciência, teoria e doutrina econômica – Oscar Dias Correia
  • Negociação habitual por conta própria ou alheia na rescisão do contrato de trabalho – Evaristo de Morais Filho
  • Irradiação das atividades judiciárias de natureza penal – Jairo Franco

BIBLIOGRAFIA

JURISPRUDÊNCIA

  • Jurisprudência Civil e Comercial
  • Jurisprudência Criminal
  • Jurisprudência do Trabalho

LEGISLAÇÃO

SUMÁRIO: O Poder e o Direito. O Estado de direito. Constituições rígidas e Constituições flexíveis. Formas de poder no Estado de fato. Revoluções e golpes de Estado. Regimes fascista, nazista, espanhol e soviético. A Carta de 10 de novembro de 1937. Liberdade individual e autoridade do Estado.

Sobre o autor

Mário Artur Pansardi, juiz de direito no Rio Grande do Sul

DOUTRINA

A autoridade e a lei

É o poder de Estado que cria o Direito positivo. O meio social o recebe e aceita ou o repele, O poder declara a sua vontade ao declarar criada a norma positiva. Tomando a aprovação do meio à norma editada pelo poder de Estado como o único momento criador do Direito, alguns se fixam nesse objetivismo sem atentar para a fase subjetiva da instituição. Só a aceitação da norma pelo meia é que a torna objetiva, porque até então só existia na subjetividade da vontade do poder criador, e isso impressiona exclusivamente algumas inteligências. É, porém, um êrro palpável tomar a objetividade, a conformidade do meio com a norma, como a única fase existente do Direito. Mesmo os usos e costumes, jurídicos só tomam fôrça obrigatória quando pronunciados como lei pelo Estado. A receptividade da norma pelo meio só se efetiva quando ela revela o ideal social do povo.

“O caráter obrigatório das normas jurídicas, condição da eficácia do Direito – função específica, do Estado, – tem, pois, sua razão na conformidade daquelas às exigências racionais – éticas – do povo na vida política. Em outros têrmos: para que uma norma obrigue juridicamente, depende de que a dita norma seja expressão do ideal que emana do povo, sujeito ativo de seu próprio direito, que se cria no povo precisamente para fazer efetivo seu ideal” (POSADA, “Tratado de Derecho Político”, 5ª edição, tomo I, pág. 84).

Poder criador do direito

O poder criador do Direito é um poder autônomo e é uma identificação com a vontade do povo. O Estado, tomado na integralidade de seus elementos constitutivos, é a representação jurídica dêsse poder. Ao criar, o Direito deve sancionar a norma que cria, de forma a ser limitado pelo Direito que êle mesmo edita e sanciona. A função do Estado de criar a lei é a que precisa de maior limitação, a bem do respeito a pessoa humana. A grande virtude da separação dos poderes está em garantir a limitação do poder de Estado, desmembrando-o em funções que se fiscalizam e compensam reciprocamente. Essas limitações garantem a liberdade individual, porque impedem a edição de leis abusivas ou injustas e asseguram o correto cumprimento das justas. As limitações contêm a faculdade criadora de normas do poder político. Não só as fazendo defeituosas degenera o poder, mas, também, as criando tirânicas. A contenção age sôbre ambas anomalias, impedindo que o direito mau tente impor-se ao meio social que, não no aceitando, vai repeli-lo, fazendo eclodir o conflito. Contra os abuso de fato do poder, exercidos contra os particulares, encontram êstes proteção nas garantias que cercam o Judiciário.

As leis más fundamentais, as que instituem a organização da estrutura dos poderes de Estado, dando-lhes a competência, a forma de funcionamento e marcando-lhes os limites, as que declaram os direitos e garantias do cidadão, as leis constitucionais, enfim, são as que não encontram remédio. O meio social as sofre e suporta, sem recurso legal. Viciam tôda legislação, que se torna abusiva e sem eqüidade, e os cidadãos não têm outro remédio para sair dêsse estado de coisas do que usar do direito de revolução, último recurso de reação contra o Direito, que perdeu a objetividade por faltar-lhe a receptividade do meio social. A história política dos povos acusa sempre a presença do direito de revolução na sociedade. O povo reivindicou sempre o direito de revoltar-se. A revolução é, sobretudo, um fenômeno natural e foi, primacialmente, a “forma primária de direito individual ou coletivo de resistência” (LOJENDIO, “El Derecho de Revolución”).

O ponto de referência ao Direito Constitucional é a inspiração da legislação ordinária. Aquêle é a matriz moldadora de todo o Direito positivo existente em um Estado. Nesta, conformação toma vida o Estado de direito. A situação contrária é o Estado de fato. Neste, o poder exerce-se fora das linhas jurídicas, ignorando-as ou superpondo-se a elas. Não encontra freios aos seus impulsos. Daí duas maneiras de atentar contra a liberdade e os direitos do homem: uma, que poderíamos chamar de legalizante, por falta de têrmo melhor, quando a lei fundamental é defeituosa e má e permite o abuso por atos amparados em uma legislação também má, como quando, por exemplo, tira a fôrça do Judiciário para julgar a constitucionalidade das leis e comete êsse mister a um órgão político faccioso; outra, quando não há lei fundamental e o poder está depositado nas mãos de um grupo, ou de um só homem. O Estado de fato projeta-se na tela do Direito em multiformes aspectos, hoje acrescidos pelas variedades que os Estados totalitários apresentam.

O Estado de direito nada mais é do que a submissão do poder político à lei. É a limitação do poder pelo próprio Direito que êle cria e sanciona. A lei suprema – a Constituição – lança os cânones do Direito positivo interno. Emerge, então, o problema de saber por que razão a Constituição obriga a todos, ou melhor, de onde toma ela sua força de obrigar à sociedade a seu esquema geral de vida jurídica e social. Êste problema básico do Estado de direito, a submissão do homem à norma ditada pelo Estado, a sua conformidade em acatá-la e respeitá-la, encontra satisfação no mundo moral, reduto último da conduta humana, onde o homem delibera livremente acomodar-se às leis, de acordo com as exigências que êle estima e valoriza.

Acomodando-se, o homem torna a lei receptível e o Estado de direito se perfectiliza. Quando o mecanismo das leis refoge do mundo moral para cair na ordem física., surge a tirania. Esta é o domínio do mais furte, a ignorância do mundo moral do homem, e seus ditadas legais não cuidam da aquiescência da sociedade com a ordem que se lhe impõe. Apenas fisicamente fica ela, atada à lei. Não há sanção moral, não há receptividade. É o Estado de fato. Legítimo é o puder que não se impõe pela fôrça, mas pelo consentimento de todos, ou da grande maioria, e recebendo do meio a aceitação de suas normas. Estas são, antes de tudo, juízos éticos emanados do íntimo da consciência humana, que é, em última análise, onde se aprecia e decide o que convém ao homem como ser social e político. Isto não conduz a um individualismo incomportável com a vida em sociedade. O homem em sociedade é que delibera e valoriza o que lhe é convinhável; a sua consciência coletiva é a grande força criadora.

Decidindo o que lhe convém coletivamente, decide, também, o que lhe serve individualmente. As relações em sociedade constituem o conteúdo do Direito, expressão sintética das leis em vigência, e geram a obrigação de obediência entre as pessoas. É o dever jurídico. O homem obedece a si mesmo quando obedece a lei que expressa a consciência da sociedade em que vive. Aí a receptividade das leis pelo povo, aí o Estado de direito.

Dentro do mecanismo das leis criadas pelo Estado, levanta-se o problema, de saber quem é o guarda encarregado de manter o poder prêso aos limites que êle mesmo se traçou. Uma tendência natural seduz Q homem a exorbitar da fôrça de que dispõe. Nos Estados em que há Constituição rígida, êsse contrôle pertence a órgãos especiais, não políticos, ou, geralmente, aos juízes. Aplicadores práticos do Direito positivo, êstes não fazem as normas, não as criam, mas se negam a dar cumprimento às que contrariam os princípios institucionais do Estado. exarados no texto da Constituição. Fiscalizam a constitucionalidade das leis, anulando-as por defeito de conteúdo, inconstitucionalidade material, ou por inobservância das formalidades recomendadas pela Constituição para a sua elaboração, inconstitucionalidade formal.

Se o mecanismo dos poderes não funcionar normalmente, as decisões judiciárias periclitam em sua eficácia, pois que o Poder Executivo, encarregado de cumpri-las, através da coação material, pode tornar-se omisso e a decisão tomar caráter de mera declaração. Também ocorre isso quando o Legislativo e o Executivo entram em conflito, deixando êste de dar cumprimento às leis votadas por aquêle. O mecanismo da separação dos poderes assim desajustado faz o Judiciário perder a fôrça e o Direito deixa de imperar para eclodir o Estado de fato. No descumprimento e na interpretação da lei pelo juiz há um forçamento constitucionalizante das leis.

Logra saliência a função do juiz e o exagêro da sua importância no complexo do organismo estatal poda conduzir, nos Estados onde a instituição rígida e os poderes estão separados, ao chamado govêrno de juízes. Mal contrário ao da falta absoluta de controle e que pode, se exagerado, desembocar na ditadura do Judiciário, a pior das ditaduras, porque, como é óbvio, é a escravidão ao texto legal desamparada de uma orientação programática, a qual só é própria aos elementos atuantes na política e que se dedicam, com demora, aos estudos dêsses problemas de ordem social, na sua imensa amplidão. A politização do Judiciário é um demérito à sua função judicante, cujo prestígio advém de ser apolítico, isto é, não intervir nas disputas partidárias. Os seus membros cercam-se de garantias que os colocam fora do arbítrio dos poderes políticos e das facções.

Constituições rígidas e Constituições flexíveis

Nos Estados de Constituição flexível, como na Inglaterra, os juízes ditam a common law, mas a soberania do Parlamento, em seu permanente poder constitucional, faz a lei escrita, statute law, leis de fundação, incontroláveis pelos juízes. Mesmo assim, dada a obediência do meio às leis parlamentares, por emanarem de um corpo altamente sintonizado com a sociedade, para a qual legisla, o Estado de direito subsiste, a objetividade da norma é indiscutível e a liberdade dos súditos é intangível.

Formas de poder no Estado de fato

Nos Estados de direito, o poder encontra a sua limitação no direito superior das leis institucionais. É o princípio da superlegalidade constitucional, como chama HAURIOU. Segundo êste autor, para que essa superlegalidade esteja perfeitamente organizada, é preciso a reunião das seguintes condições: “1ª) A organização de uma operação constituinte, com um poder constituinte que esteja acima dos poderes governamentais ordinários – os quais ocupam o lugar de poderes constituídos, – e com um processo especial, de revisão, que dá à Constituição um caráter rígido; 2ª) A organização de um contrôle jurisdicional da constitucionalidade das leis ordinárias” (“Princípios”, ed. esp., págs. 309-310). Resulta, assim, uma hierarquia de leis dentro do Estado de direito perfeitamente organizado, formando a legalidade constitucional: aos princípios gerais da Constituição, suprema lei do Estado, ficam submetidas as leis ordinárias, editadas pelo Poder Legislativo, e, a estas, os regulamentos das leis, outorgados pelo Poder Executivo.

Contudo, é de observar, o Estado de direito, e esta é a sua grande característica, não cobre tôdas as relações sociais, como pretendem fazê-lo os Estados de fato totalitários. A esfera jurídica dentro da qual se inove a autoridade do Estado não envolve tôda a atividade do homem. Intervém e disciplina apenas aquelas manifestações que têm natureza política, que exigem proteção do Estado, por terem valia social e corresponderem a necessidades políticas. Muitas atividades humanas são indiferentes ao Estado e ao Direito por êle editado. Há relações e relevância, jurídica e há outras que pouco importam ao Estado. Estas últimas são relações de fato e podem ser, no dinamismo estatal histórico, interessantes ao Estado e virem a ser por êle disciplinadas. Esta ocupação de esferas de atividade social outrora indiferentes ao Estado é um dos traços do Estado moderno, mormente no capítulo de sua intervenção nas atividades econômicas.

III. Múltiplas são as formas de que se vale o poder político para desviar-se do respeito devido à Constituição. No estado moderno podem ser surpreendidas, dentro da história política contemporânea, formas típicas de Estado de fato que merecem padronização. Não deve ser objeto ele cogitação, em uma análise puramente jurídica, a etiologia sócio-filosófica determinante da criação destas formas. O interessante é o processo jurídico-político pôsto em jôgo para desvirtuar o princípio da hierarquia das leis e da soberania popular, consagrados pelo liberalismo e integrantes do patrimônio jurídico do Estado moderno.

É verdade que a criação do Estado de fato quase sempre encontra, fundamento em uma, ideologia político-social que invade a concepção da organização e fins do Estado a ponto de galvanizá-lo totalmente, tornando-se impossível o exame das novas instituições políticas sem primeiro fazer a apreensão das idéias que as informam. Uma apreciação perfunctória e parcial por vêzes se impõe, para o entendimento das formas de que o Estado se reveste.

Na História moderna colhem-se exemplares de Estado de inestimável valor para estudo. Desde que os princípios liberais da supremacia constitucional e da soberania do povo tiveram consagração universal e vieram integrar definitivamente o patrimônio jurídico das nações, dando nascimento ao Estado de direito, não faltaram momentos históricos em que se burlou esta conquista da ciência: do Estado. Muitas vêzes a autoridade tem lutado com a lei e o poder político venceu, por espaços, a fôrça teórica dos princípios e subjugando-os, procurou justificar a vitória ou toldar as aparências com falsas teorias de caráter pseudojurídico. Num encontro com a realidade dêstes tempos, surpreendem-se os aspectos dos Estados de fato, os quais, em tentâmen de sistematização, podemos agrupar da seguinte maneira:

No primeiro grupo, o poder político leva de roldão, de um só golpe, as instituições vigentes. Tomam, geralmente, êstes processos um caráter transitório. Dá-se o aberto e súbito desrespeito às leis institucionais pelo poder que dispõe da fôrça material. Não são revoluções na verdadeira acepção da palavra. Querem a mudança de uma, equipe governamental por outra, em atenção a certas injunções momentâneas. São os golpes de Estado, quase sempre de índole militar. O govêrno então implantado tem, forçosamente, a natureza de um Estado de fato. Nestas partes da Sul-América são comuns os golpes militares contra os governos legitimamente constituídos. única fôrça organizada em meio de instituições sem raízes históricas e inadequadas ao ambiente social onde vão atuar, os exércitos americanos impõem o seu domínio nos momentos em que o desajuste político traz a estagnação do progresso ou lança o país na inquietação ou na anarquia. As vêzes, o conflito político não tem repercussão profunda, mas o hábito ele resolver qualquer crise com golpes e a facilidade em dá-los, deflagra o movimento militar. A condução dêste pertence ao grupo de graduados que saiba, pela fôrça ou pela astúcia, vencer a resistência dos companheiros. O govêrno daí nascido tem tipicamente a feição de um govêrno de fato. Pode evoluir para uma situação de direito, com a rápida regularização das instituições jurídicas e a substituição dos golpistas por autoridades legitimamente eleitas, e neste caso o Estado de fato tem caráter transitório. Também os elementos golpistas podem permanecer nos cargos, evoluindo o golpe para uma revolução mais profunda e estabelecendo-se um Estado de fato em definitivo, como aconteceu na Argentina atua, onde a revolução tomou uma posição semifascista, com uma Constituição defeituosa, que dá ao presidente poderes de ditador. No início do período republicano, já quando havia um presidente eleito legalmente para o cargo, por sua renúncia assumiu o vice, que governou ditatorialmente, ignorando as garantias constitucionais e aviltando mesmo o Poder Judiciário, de nada valendo as verberações do gênio de RUI BARBOSA. A História do Brasil está pontilhada de fatos semelhantes, numa ostentação objetiva de que ainda não se encontrou a fórmula política ideal correspondente à nossa peculiaridade ambiente.

Regimes fascista, nazista, espanhol e soviético

Há casos em que o Estado de fato surge no meio social pela inexistência de normas institucionais, exercendo o poder político, livremente, sem freio legal, sua vontade soberana. Embora existam leis que parecem criar uma situação jurídica, na verdade são elas produto de enorme fôrça, do poder que as cria, mais para fundamentar uma filosofia de Estado do que, pròpriamente, para servirem como garantia contra sua mesma, autoridade prepotente. Em tais situações, o Estado de fato ostenta tôda sua exuberância, abertamente se mostra transgressor de tudo que se entende por subordinação a leis superiores de organização e garantia da liberdade do homem. A vontade do chefe é absoluta e incontrastável. Ninguém pode disputá-la. Para isso elabora-se uma filosofia sócio-política, cuja obediência é exigida de tôda a nação. Esta posição é saliente no nazismo alemão, no fascismo italiano e no falangismo espanhol. Todos têm caráter totalitário, no sentido de que absorvem todos os aspectos da vida social e empolgam o homem na sua vida íntima, vasculhando a sua consciência em franco desrespeito à pessoa humana.

O fascismo considera o Estado como uma totalidade que impõe a sua vontade por intermédio do Direito. Compreendendo-se que para o Estado nada é estranho, é fácil saber que o Direito por êle editado também invade todos os setores da vida social. O Direito tudo regula e toma aspecto polimorfo, colhendo nas suas dobras a própria vida individual dos súditos. A par disto, o Poder Executivo fascista, a cuja frente se encontrava a pessoa do Duce, controlava totalmente o Poder Legislativo, que nada podia discutir sem prévia autorização daquele. Ainda o poder administrativo tinha a faculdade de baixar decretos de prevalência indiscutível. O próprio Poder Judiciário estava subordinado ao Duce, por intermédio da, concepção do caudilhismo judicial. Havia um órgão legal, o Grande Conselho Fascista, que se infiltrava na organização do Estado. Dissemos legal porque, na realidade, admitia-se a existência dêsse organismo como fazendo parte dos órgãos do Estado. Nessa qualidade, o Grande Conselho editou a Carta do Trabalho, documento-base do regime fascista. É que o Conselho em certas ocasiões funcionava como poder constituinte, o que nada tinha de absurdo dentro das idéias fascistas. O partido é uma idéia que procura realizar-se no Estado, e para isso êle é introduzido no Estado até lograr-se a identificação dêste com aquêle. O programa do partido e o Estado passam a ser a mesma coisa. O Duce é o supremo chefe do Estado e do partido e, por conseqüência, o senhor absoluto de tôda a nação. A frase célebre de que o Duce sempre tem razão dá uma idéia da sujeição das massas italianas à vontade de um só homem. Conservava-se a vigência do Antigo Estatuto do Reino, porém foi completamente alterado e pràticamente não tinha existência em meio à enxurrada de leis fascistas. O Estado é transpersonalista. O homem não está garantido em seus direitos por nenhuma lei que obrigue ao Estado. Pelo contrário, o Estado disciplina o indivíduo, sujeitando-o aos seus fins específicos, os quais, em última análise, eram os fins do próprio partido fascista. O regime representativo e a soberania são dois conceitos que tomam definições novas. O Estado é soberano e não o povo. Êle é que disciplina tôdas as fôrças sociais, porque é êle o verdadeiro intérprete da vontade nacional. Como se faz essa representação da vontade nacional no Estado fascista? Os autores descartam a idéia de representação para considerar o regime político como uma democracia direta, até o ponto em que se pode conseguir esta nos tempos modernos. Assim, há uma identidade entre povo e govêrno. Em regime bicameral, como adotava o fascismo, as Câmaras não representam coisa alguma e seus membros são apenas órgãos do Estado, cuja função é legislar. De fato, não havia representação. Aos sindicatos competia indicar os candidatos através das confederações nacionais. Estas tinham o direito de propor 800 candidatos, dos quais se selecionava certo número, proporcionalmente a cada confederação. Também algumas pessoas jurídicas e associações podiam propor candidatos. Estas listas eram enviadas ao Grande Conselho Fascista, que fazia a seleção dos 400 candidatos. O povo se limitava a votar sim ou não, manifestando que ratifica ou não os candidatos submetidos a sua apreciação pelo Grande Conselho. Sempre aprovava, como sói acontecer em tôdas as ditaduras. Por leis sucessivas foi a autoridade sendo concentrada nas mãos do Duce, que era quem determinava tudo no Estado. Nada podia ser deliberado ou discutido nas Câmaras sem sua aprovação prévia. A unidade de mando atingiu uma situação hipertrófica. O fascismo implantou uma ditadura, absortiva e completa e um Estado de fato típico. Para o Estado de direito não bastam algumas leis gerais, que servem apenas enquanto satisfazem a vontade do ditador, se a êste compete desrespeitá-las, ignorá-las ou substituí-las quando bem entender, fazendo prevalecer a sua vontade onipotente.

No regime nazista, sob o ponto de vista jurídico, estamos em frente de um Estado de fato empolgado pela autoridade suprema de um chefe, onde as leis institucionais têm a mesma inspiração na ideologia de um partido, mas nada garantem nem significam, porque podem ser alteradas pela vontade superior do chefe. Da mesma forma que na Itália fascista, na Alemanha, nazista a Constituição anterior ao regime não foi de todo revogada. A Constituição de Weimar continuou, porém seus dispositivos foram anulados por leis posteriores e, finalmente foi totalmente ignorada e alterada. Aqui dois princípios inspiravam todo surto de autoridade: a conservação da raça e a conquista do espaço vital. Duas idéias políticas ordenavam tôda atividade estatal: a do povo alemão constituído em comunidade e a do guia, identificado com essa comunidade. Esta é constituída pela homogeneidade racial do povo alemão, que, graças à sua igualdade e unidade, se constitui em comunidade. O espírito comunitário encontra sua fonte na pureza da raça ariana, da qual o povo alemão é o representante mais puro. Daí o racismo alemão com tôdas as conseqüências bem conhecidas. Desta concepção resultam três posições políticas de suma importância: a) o indivíduo não tem autonomia de atuação, está êle subsumido no todo comunitário e suas idéias e atitudes devem ser como que um eco do espírito comunitário. Nega-se-lhe, assim, a liberdade e os outros direitos asseguradores de sua personalidade; b) como o povo tem um espírito único, resultante de formar uma comunidade única, não pode existir dentro dêle duas correntes de idéias, mas uma só, que resulta dêsse espírito comunitário, e, por conseguinte, não pude haver mais que um partido político; c) a comunidade do povo alemão é o sustentáculo do poder e a legisladora suprema do Reich, sendo seus interêsses o único objeto do poder do Estado e de sua legislação. Quem tens identidade perfeita com êsse espírito comunitário é o Führer. Nem todos os cidadãos captam com perfeição a totalidades das variações e tendências do espírito comunitário, tão-sòmente o Führer é capaz disso e tão-sòmente êle se identifica plenamente com a comunidade. O que esta quer, é o que o Führer faz. Sua vontade e a vontade do chefe, que a capta em perfeita sintonia. Dêle dimana todo o poder do Estado. Os funcionários são nomeados por ele dentre aquêles que se mostram mais sensíveis ao espírito comunitário. Resulta daí a unidade de mando do chefe, que reúne em suas mãos totalitàriamente todos os poderes do Reich. Sua responsabilidade era somente perante a nação alemã, ou melhor, o espírito da comunidade alemã, o que significa que não era, pràticamente, responsável perante ninguém. A pouco e pouco o Führer tornou-se senhor absoluto de todo Reich, inclusive da função judiciária, da faculdade de legislar, elas relações internacionais, do supremo comando das fôrças armadas, que exercia realmente e não simbòlicamente, como nus outros países acontece com o chefe do Estado. Como a fonte do Direito está no espírito de comunidade, também, em última instância, a fonte única do mesmo é o Führer alemão, intérprete supremo dêsse espírito. Aqui chegamos à monstruosa aberração de a vontade de um homem ser a única fonte de direito. Tudo que o chefe quer, é direito e tem obrigatoriedade imediata. Não se discute a vontade do Führer. Os teóricos nazistas tiveram a ousadia de afirmar que o Estado nacional-socialista era a verdadeira democracia em contraposição ao liberalismo, cuja democracia representativa, era uma ilusão. Neste estado de coisas, mesmo que se tome a legislação nazista como fundamento ordenador do Estado, é evidente que ela não representa um conjunto de superioridade legal, de vez que o ditador é quem decide de sua validade e da sua revogação. Os poderes regulares de Estado submetem-se ao servilismo mais aviltante, redundando o Estado no grande monstro absorvente de tôdas as liberdades, como no Estado fascista.

Também na Espanha nacional-sindicalista o chefe de Estado é o senhor absoluto da administração e de tôda a máquina do Estado. A idéia de caudilho, de inspiração nazista, alija do Estado espanhol qualquer resquício de um Estado de direito. Sendo o possuidor de tôdas as faculdades, o caudilho tudo dirige. A sua libertação de normas preestabelecidas é completa. O chefe do Estado foi escolhido pela providência para, guiar o povo espanhol. Ainda do nacional-socialismo alemão tira, a faculdade suprema que tem o caudilho de legislar, tornando-se a única fonte do Direito positivo. Os poderes de Estado aqui também se encontram aviltados, não sendo mesmo respeitado o Poder Judiciário, subordinado como está ao caudilho, seu supremo chefe. Há uma hierarquia completa de todos os funcionários, cujo ápice se encontra no chefe de Esta. do. Sua vontade é indiscutível e só êle sabe o que convém ao povo espanhol, do qual é o guia e supremo intérprete. Do fascismo italiano copia ainda a idéia de um grande conselho do partido, que é a único, formação política existente. Êste conselho teria por função assessorar o chefe, porém, na realidade, é completamente dominado por êle. É, Dois, o Estado espanhol, chamado sindicalista, um Estado totalitário: inspirado no nazi-fascismo. Apresenta-se como um instrumento dos fins nacionais e êstes só são perfeitamente compreendidos pelo partido e por seu chefe. Não há lugar para um Estado de direito nem para os direitos do homem. Nada resguarda êste contra a autoridade do Estado, expressão atuante de uma idéia intransigente.

A terceira forma de Estado de fato pode ter persistência tenaz e se revela, pelo mascaramento de obediência elo poder político às leis institucionais, mas, na realidade, impondo-se êste aos súditos pela, fôrça e obrigando-os a aceitar a situação pela coação. A atividade do poder cobre-se com um ideal político, ao qual persegue intransigentemente. Exemplo talhante dêsse mascaramento oferece o regime soviético russo. Partindo da concepção de que o Estado é um órgão de opressão criado pela burguesia, para sujeitar o proletariado, os comunistas russos lutam contra êsse Estado opressor e explorador, procurando liquidar com a burguesia. O Estado burguês é o resultado do processo histórico da luta de classes, instrumento de opressão de que se servem as classes capitalistas para manter o proletariado na escravidão e na miséria.

Êstes contribuem com seu trabalho para o enriquecimento dos burgueses que, em troca, lhes pagam muito menos do que o seu rendimento vale. De posse do poder, o proletariado deve destruir n Estado burguês para, em seguida, aniquilar a burguesia. Realizadas estas tarefas, resta eliminar definitivamente o Estado da sociedade, desde que as classes sociais tenham desaparecido. A primeira etapa é revolucionária, é o apossamento do poder político. “Sòmente uma revolução pode destruir o Estado capitalista”, disse LENINE. Seguem-se os processos de natureza estatal. Firma-se a ditadura do proletariado, isto é, o Estado continua, mas é a classe proletária que dêle se apodera. Daí a conclusão lógica, apoiada pela realidade, de que o Estado soviético é um Estado de classe, como o Estado burguês o é, segundo as idéias marxistas-leninistas.

Trocou-se na Rússia um Estado que, evidentemente, não era de classe, pois o Estado é um produto natural da sociedade, por um Estado classista, totalitário e violento. Quando muito, poder-se-ia admitir que o Estado tzarista era um Estado dominado por uma classe, como acontece hoje com o comunista. O Estado não é uma criação de uma classe dominante. As classes apenas podem influir, conforme as injunções históricas, mais ou menos, na sua organização e nas suas deliberações, ou mesmo podem viciar o seu fim natural e até controlar tôdas as funções do Estado em benefício de seus interêsses, exclusivamente, porém jamais o criam, Correta estaria, a concepção marxista-leninista se assim compreendesse o Estado.

Na Rússia soviética, se teòricamente se perdeu muito com a instalação de uma classe no Estado, a qual explora abertamente os seus poderes em seu benefício próprio, perdeu-se mais ainda na prática e no sentido humano que se deve dar ao Estado fenômeno social. Inicialmente, tentam os comunistas destruir o Estado burguês em muitos de seus elementos, porque o Estado tal como existe no mundo liberal não serve aos fins do proletariado, que são aniquilá-lo para sempre. A meta seria a existência de uma sociedade sem Estado. Êste, na fase da ditadura do proletariado, é um Estado-doutrina, subserviente à orientação da doutrina marxista-leninista. Torna-se monstruosamente absorvente de tôdas as atividades sociais, mormente as de natureza econômica, e invade o subjetivo do indivíduo, o qual passa a padronizar suas idéias e sua vida pela orientação que o Estado dita. Tôda atividade estatal está subordinada ao programa do Partido Comunista Russo (bolchevique). Qualquer cogitação de sentido jurídico ou humano é completamente varrida nas deliberações do Estado soviético, desde que sejam de índole a desvirtuar o fim a que perseguem. A Constituição editada é uma máscara apenas, e serve para apresentar a União Soviética no exterior como um Estado democrático onde todas as liberdades estão asseguradas. Não cabe neste estreito estudo a análise das Cartas Constitucionais russas, as quais, examinados os próprios dispositivos, põem à calva a falta absoluta de garantias ao cidadão contra, a prepotência da autoridade. Esta se exerce sobretudo através dos órgãos partidários, da polícia política (M. V. D.) e do exército comunista.

No mister de aplastamento da classe burguesa, o Estado soviético deveria, depois de logrado seu fim, ir enfraquecendo gradualmente, porém, pelo contrário, ao que nos mostra a realidade, cada vez se reforça mais, desmentindo a dialética marxista e, em conseqüência, surge o problema de saber se êle nunca mais se extinguirá. STALIN explica que o Estado continuará enquanto não se suprimir o perigo das agressões capitalistas do exterior, ou seja, enquanto o Estado comunista não liquidar com o cêrco capitalista. É, êste simples raciocínio do chefe vermelho, a prova suficiente d.e que tarde ou cedo será, necessária uma guerra internacional para terminar com as potências capitalistas. É difícil, segundo mostram os fatos, que o mundo se converta em sua totalidade ao comunismo, a não ser pela imposição violenta de uma grande potência vitoriosa. Tudo isto conduz à hipertrofia monstruosa do Estado soviético.

Há, semelhante aos Estados liberais, uma tripartição de poderes, sendo o Poder Executivo de natureza parlamentar, pois é responsável perante o Conselho Supremo da U.R.S.S., pelo qual é nomeado. O Conselho Supremo é composto de duas Câmaras, o Conselho da União e o Conselho das Nacionalidades. O primeiro é eleito por tôda a união e o segundo é formado por representantes dos países federados. A base democrática estaria na forma de representação e eleição do Supremo Soviet. Na realidade, o povo não tem interferência nenhuma nas eleições para êste órgão. O Direito soviético troca o conceito de soberania-povo pelo de soberania-classe. Só os trabalhadores do campo e da cidade exercem o direito devoto, isto é, só as classes trabalhadoras. Por outro lado, a existência de um partido único só permite a eleição dos filiados ao Partido Comunista. O certo é que os representantes são escolhidos pelos órgãos partidários e o voto é apenas uma burla grosseira. Formado assim, o Conselho Supremo designa o Presidium, órgão colegiado, que o substitui no exercício de certas funções, quando aquêle não está reunido. Desempenha função análoga à de um rei ou à de um presidente em um Estado parlamentar.

O outro órgão nomeado pelo Supremo é o Conselho dos Comissários do Povo, o qual exerce o poder executivo e administrativo. Êste é realmente o supremo poder na estrutura hierárquica do Estado soviético. Embora seus membros sejam designados pelo Supremo e fiquem perante êste responsáveis, o que de fato acontece é o Supremo se limitar a homologar as decisões tomadas pelo Conselho de Comissários e não há exemplo de que alguma vez não as tenha homologado. O chefe do Conselho de Comissários é um dos secretários. Êste comissário-chefe de gabinete é também o chefe, o guia, do partido, e, portanto, a autoridade inconteste de tôda a Rússia, a quem ninguém se atreve a contrariar ou desgostar. Todos êsses secretários são escolhidos e designados pelos órgãos dirigentes do partido e o Supremo se limita a sancionar a escolha, como aconteceu recentemente com a escolha de MALENKOF. Mal STALIN faleceu, logo se soube que o partido havia acordado em designá-lo para substituir o velho chefe. O Supremo convocado sancionou o já decidido pelo partido, aceitando MALENKOF e todos os secretários já indicados. STALIN usou de um raciocínio sofístico, para justificar êsse estado de coisas, quando afirmava que na Rússia não havia partidos políticos, porque não havia classes.

Nas sociedades onde há classes, aí há diferentes partidos, porque cada partido encarna os interêsses e a mentalidade de cada classe social. Esta forma de raciocinar mereceria flagelação completa, que poria à mostra a mendicidade das afirmações que faz; entretanto, tal forma de estudo escaparia dos propósitos dêste resumido trabalho. Basta saber que, com assento nesta linha ideológica, o senhor absoluto de tôda a forma social na União Soviética é o Partido Comunista Bolchevique. Através da polícia secreta controla tôda a atividade no país, não fugindo de sua vigilância tenaz nem sequer os próprios companheiros.

Pela natureza mesma da doutrina que impulsiona a atividade do Estado soviético, êste é mero instrumento de um grupo que se diz dirigente do Partido Comunista e que realmente se apoderou dos postos públicos e nêles se mantém a qualquer preço. Esta ditadura, jamais terá, outra etapa. As massas russas estão empolgadas por um misticismo de caráter religioso, por um messianismo proletário muito adequado à mentalidade mística do povo russo. É a religião do marxismo, como bem diz BERDIAEFF (“El cristianismo y el problema, del comunismo”, 6ª ed., página 29).

Crentes dessa destinação transcendental, a libertação da humanidade e a conquista da sua felicidade plena, as massas russas suportam e vivem as imposições necessárias do Estado soviético como uma necessidade para a conquista de um fim almejado. A utopia que o Estado soviético persegue dá-lhe longo prazo de existência e só o futuro poderá dizer-nos que espécie de Estado o substituirá.

A Carta de 10 de novembro de 1937

Um Estado de fato pode aparecer pelo defeito das normas institucionais, do maneira a permitir, impunemente, a sua existência sem que a autoridade pratique desrespeito àquelas. Exemplo temos no Brasil com a Constituição outorgada em 10 de novembro de 1937. Dispunha no artigo 180 que o presidente da República teria o poder de expedir decretos-leis sôbre tôdas as matérias da competência legislativa da União, enquanto não se reunisse o Parlamento nacional. Êste artigo permitiu ao presidente legislar invasora e torrencialmente a respeito de tôda matéria social, sem que fôsse possível criticá-lo por praticar atos inconstitucionais.

Na verdade, fazia, prevalecer a sua vontade e seu ponto de vista pessoal em todos os assuntos. Bastaria isto para caracterizar o Estado de fato, num paradoxo jurídico sui generis. O Parlamento nacional nunca se reuniu, porque as suas eleições dependiam do plebiscito referido no art. 187, tendo ficado, na data da outorga, dissolvidos a Câmara duos Deputados, o Senado Federal, as Assembléias Legislativas dos Estados e as Câmaras Municipais (artigo 178), e êsse plebiscito esperava regulamentação em decreto do presidente da República.

Como não havia prazo para tal regulamentação, ela nunca se deu e nunca houve eleições. Eis aqui o próprio texto constitucional abrindo brecha para a existência de um Estado de fato, com o império da vontade de um único homem por tempo indeterminado. O presidente da República emendava a Constituição, tornando, a pouco e pouco, o seu texto imprestável. O art. 177 retirava a garantia, dos funcionários ao cargo, inclusive dos juízes vitalícios, em um novo desrespeito ao texto mesmo, que garantia a permanência no cargo até aposentadoria por limite de idade ou a pedido (art. 91, a), e as garantias dos funcionários em geral (art. 156, c, d e e). Outros tantos defeitos, com conseqüências idênticas, podiam ser surpreendidos no texto dessa Constituição; bastam, porém, os lembretes mencionados para revelar a paradoxal existência de um Estado de fato sancionado pelo texto de uma lei constitucional.

Liberdade individual e autoridade do Estado

Uma filosofia de Estado pode hipertrofiar o valor da ação governamental na condução do social, cone desprêzo à liberdade individual e exagêro da autoridade do Estado. Tôdas as ideologias dos Estados totalitários conhecidos postulam essa supervalorização. O comunismo russo, o nazismo alemão, o falangismo espanhol, o estado-novismo português e o justicialismo argentino, sob êste ângulo, criam Estado de fato, com a justificação de base sentada, em filosofias político-sociais absorventes de tôda atividade social e de todo conteúdo humano. A hipertrofiada autoridade do Estado nasce é se justifica com estas teorias, nem sempre isentas de profundas contradições intrínsecas e quase sempre sem base científica. A catalogação de tôdas elas sob o prisma de um estudo de ordem de filosofia de Estado forma um grupo de Estados ate fato cuja caracterização deixa de ser puramente jurídica, como acima foi estudado sucintamente. E com êsse agrupamento, ao que parece, se esgotam as formas de Estados de fato que pode apresentar o Estado moderno e que a história contemporânea revela.

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