32
Ínicio
>
Artigos
>
Civil
ARTIGOS
CIVIL
A tutela da autonomia financeira da pessoa idosa e a alienação fiduciária em garantia de bem imóvel (PLS 52/2018)
Marco Aurélio Bezerra de Melo
26/08/2020
INTRODUÇÃO
A expectativa de vida do brasileiro vem aumentando muito nas últimas décadas. De acordo com dados colhidos em 2018 pelo IBGE, alcançará 76,3 anos de idade, sendo que em algumas regiões como o Estado de Santa Catariana alcança a provecta idade de 79,7 anos como média[1]. Essa constatação estatística é animadora, mas deve vir acompanhada de medidas que criem condições para que o idoso, além de quantidade maior de vida, tenha também qualidade melhor de vida.
Esse texto não se propõe a apontar a realidade da nossa desigualdade social e econômica e a diminuta renda per capita, em regra, do povo brasileiro, seja em decorrência da remuneração que se paga como salário-mínimo, assim como o desdobramento dos rendimentos quando se passa para a aposentadoria para a grande maioria dos brasileiros.
Aqui, apenas de modo muito tímido com vistas a incitar uma possível reflexão, gostaríamos de convidar o leitor à reflexão sobre a possibilidade de que com o aprimoramento do Projeto de Lei do Senado nº 52/2018 que dispõe sobre a “hipoteca reversa”, de autoria do ilustre Senador Paulo Bauer (PSDB-SC), pode se tornar possível melhorar a situação financeira do idoso maior de 60 anos que tenha conseguido adquirir um imóvel durante a sua vida, possibilitando que extraia frutos do seu patrimônio a partir da alienação fiduciária do bem a determinada instituição financeira que, nos termos do contrato celebrado, ficaria como devedora fiduciante reversa de determinada importância pactuada a ser percebida mensalmente pelo credor fiduciário reverso, titularizando a posse indireta e a propriedade resolúvel do bem, permanecendo o idoso na posse direta do imóvel em caráter vitalício.
Pretendemos, dessarte, defender que a adoção da garantia real prevista na citada lei projetada, com os devidos ajustes, pode contribuir para uma qualidade de vida com maior plenitude em favor do idoso que logrou adquirir um bem imóvel em sua vida, possibilitando uma autonomia financeira condizente com as suas necessidades e expectativas legítimas no inverno da sua existência.
A CONCEPÇÃO DA HIPOTECA REVERSA
A hipoteca reversa é uma modalidade de direito real de garantia pelo qual uma pessoa, em regra, idosa, grava o seu imóvel em favor do credor com o escopo de receber determinada importância em dinheiro, entregues pelo mutuante de uma só vez ou em parcelas periódicas, valor que somente deverá ser quitado após o falecimento ou alienação do imóvel por parte do mutuário.
Essa espécie de hipoteca é utilizada em outros países como, por exemplo, nos Estados Unidos, recebendo a denominação de reverse mortgage e funciona como um produto econômico oferecido pelas instituições financeiras que tem como destinatário a pessoa idosa a fim de que esta, com o notório aumento da expectativa de vida, reúna condições de extrair do patrimônio imobiliário eventualmente granjeado uma liquidez monetária apta a atribuir melhor qualidade de vida sem que com isso a pessoa tenha que se desfazer do patrimônio em vida.
Serve como complemento da aposentadoria para o devedor e para o credor há a vantagem de considerável segurança jurídica com relação à satisfação da recuperação do ativo emprestado por dois motivos:
1) a morte é evento futuro e certo e com relação aos idosos, estatisticamente, é mais próxima;
2) os bens imóveis são dotados de perenidade se comparados com os móveis.
Aplicam-se, no caso, todas as características da hipoteca com a peculiaridade de que a satisfação do crédito dar-se-á após o momento da morte do devedor ou mesmo da alienação, voluntária ou forçada, do bem onerado. Com o evento morte faz-se um acerto de contas em relação à importância que o credor emprestou e o valor do imóvel afetado ao cumprimento da obrigação.
Enquanto a hipoteca clássica, muitas vezes, é feita para facilitar a aquisição de um imóvel para fins de moradia e, conforme vai sendo pago o financiamento, o bem, em proporção ao adimplemento, se incorpora no patrimônio livre do adquirente, nessa modalidade, ainda atípica no Brasil, os recursos entregues ao devedor, se não forem pagos, levarão a perda futura do imóvel que não atingirá a esfera jurídica do devedor, mas dos seus pretensos herdeiros que como sabido possuem sobre a herança apenas expectativa de direito.
Sendo o ato de constrição oneroso, sequer há que se falar em preservação da legítima dos herdeiros necessários.
Sem lei federal regulamentando, não vemos como ser possível a efetivação dessa modalidade de hipoteca em razão da insegurança jurídica que desmotiva o empreendimento, a especialização é diferente do modelo estabelecido no Código Civil, além das dificuldades de ordem registral para a eficácia da garantia, pois como cediço a tipicidade norteia tal ramo do direito.
Em se tratando de constrição imobiliária, se a pessoa for casada, indispensável será a outorga uxória, salvo se o regime for o da separação absoluta de bens (art. 1647, I, CC).
Importa ainda esclarecer, nesse passo, a dificuldade que a hipoteca reversa terá para subsistir frente ao direito real de habitação que compete ao cônjuge ou companheiro sobrevivente que somente pode ser renunciado após a sua efetivação com a morte, conforme prevê o enunciado 271 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal/STJ: “Art. 1.831: O cônjuge pode renunciar ao direito real de habitação, nos autos do inventário ou por escritura pública, sem prejuízo de sua participação na herança.”.
De efeito, tal proteção que encontra fundamento na proteção da entidade familiar e no direito à moradia é dotada de interesse público, sendo irrenunciável antes de sua efetivação.
O PROJETO DE LEI DO SENADO 52/2018
Tramita no Congresso Nacional o PLS 52/2018 que acrescenta o Capítulo II-B, à Lei 9.514/97, para dispor sobre a hipoteca reversa de coisa imóvel, de autoria do Senador Paulo Bauer e que, na realidade, cuida de uma nova modalidade de um conhecido instituto que poderia ser chamado de alienação fiduciária em garantia reversa ou simplesmente a compreensão da utilização da propriedade fiduciária sendo utilizada como garantia de uma interessante operação de crédito.
O referido projeto de lei visa alterar a lei 9514/97 que dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário e institui a alienação fiduciária de coisa imóvel no direito brasileiro. Nessa toada, o artigo 33-G da lei projetada prescreve que “a hipoteca reversa regulada por esta lei é o negócio jurídico pelo qual o credor hipotecário reverso, com o escopo de garantia contrata a transferência ao devedor hipotecário reverso da propriedade resolúvel de coisa imóvel.”.
Na realidade, utiliza-se a expressão que se tornou clássica no direito estrangeiro – hipoteca reversa – para definir o acerto jurídico da alienação fiduciária em garantia, o que não é conveniente. Não se justifica esse proceder equivocado do legislador em desrespeito a categorias jurídicas com estruturas e funções que não se confundem. O tramitar do projeto deverá corrigir essa dubiedade que macula os bons propósitos da presente iniciativa legislativa.
A palavra “reversa” significa que algo se encontra em posição diversa daquela tida como normal. Há uma circunstância que leva o intérprete a crer na existência de um caráter diverso, contrário, àquilo que se espera. Na questão aqui analisada não é diferente, pois pelo projeto de lei a instituição financeira é que será devedora do valor acordado para ser utilizado pela pessoa idosa que em contrapartida, com escopo de garantir o cumprimento da obrigação contraída, transferirá a propriedade em caráter resolúvel (art. 1359, CC).
Fundamental é que fique claro que o acerto negocial se verifica com a circunstância de a instituição financeira se tornar devedora, possuidora indireta e proprietária resolúvel do imóvel e o tomador do empréstimo permanece como possuidor direto da coisa até o seu passamento, ou seja, exercerá o idoso todos os poderes de uso e fruição do imóvel até a sua morte, assegurando-se a ele o piso vital mínimo da moradia se for o caso.
O objeto do instituto é o bem imóvel e exige-se que o tomador do empréstimo seja proprietário, ainda que em decorrência de enfiteuse ou direito real de superfície, podendo ainda ser usuário, por concessão especial para fins de moradia ou a outro título, desde que o direito alienável e, se for temporário, a concessão do empréstimo e a consequente garantia deverá respeitar o período de vigência do direito real.
O artigo 33-H prescreve que a propriedade fiduciária reversa se constitui com o registro do título constitutivo no cartório do registro de imóveis competente como sói acontecer com os direitos reais imobiliários, pecando o parágrafo segundo do dispositivo por estabelecer a indisponibilidade do bem por parte do tomador do empréstimo, salvo consentimento da instituição financeira que figura como proprietário resolúvel do bem gravado. Ora, pela publicidade do registro imobiliário e a característica decorrente da aderência e correspondente sequela dos direitos reais de garantia, eventual adquirente receberá o bem com o gravame que garante a dívida perante a instituição financeira credora.
A alienação sem o consentimento do credor pode extinguir o empréstimo a partir da notificação ao credor acerca da realização do negócio jurídico, mas não se justifica a dependência desse assentimento para o exercício do poder de disposição do bem pelo credor, pois como sabido, a alienação à instituição financeira é apenas fiduciária com o objetivo de servir como garantia real da dívida.
Pelo artigo 33-I, o contrato que serve de título ao negócio fiduciário conterá: “I – o credor hipotecário reverso; II – o devedor hipotecário reverso; III – o valor do imóvel dado em garantia para a hipoteca reversa; IV – o prazo e as condições de reposição do empréstimo ou do crédito da hipoteca reversa; V – o valor do pagamento mensal em benefício do credor hipotecário reverso, a taxa de juros e demais encargos incidentes; VI – a cláusula de constituição da propriedade hipotecária reversa, com a descrição do imóvel objeto da hipoteca reversa e a indicação do título e modo de aquisição; VII – a cláusula assegurando ao credor hipotecário reverso a livre utilização, por sua conta e risco, do imóvel objeto da hipoteca reversa; VIII – a cláusula de carência da hipoteca reversa assegurando aos herdeiros do imóvel hipotecado em reverso o direito de adquirir o imóvel por herança em caso de falecimento do credor hipotecário nos termos do § 4o deste artigo; IX – a indicação, para efeito de venda em público leilão, do valor do imóvel e dos critérios para a respectiva revisão; X – a cláusula dispondo sobre os procedimentos de que trata o art. 33-L.”.
A cláusulas acima citadas são obrigatórias, sob pena de nulidade do negócio jurídico e têm a potencialidade de conferir ao instituto maior segurança jurídica em razão da transparência e da natureza de essencialidade de que se revestem tais disposições, cumprindo o comando normativo e principiológico do Código de Defesa do Consumidor com relação ao dever de informar (art. 6º, III, da lei 8078/90).
Por se tratar de uma espécie de fornecimento de oferta de crédito no mercado de consumo, amolda-se ao disposto no artigo 52 do estatuto consumerista, tão importante quanto por vezes esquecido, verbis: “No fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, o fornecedor deverá, entre outros requisitos, informá-lo prévia e adequadamente sobre: I – preço do produto ou serviço em moeda corrente nacional; II – montante dos juros de mora e da taxa efetiva anual de juros; III – acréscimos legalmente previstos; IV – número e periodicidade das prestações; V – soma total a pagar, com e sem financiamento.§ 1° As multas de mora decorrentes do inadimplemento de obrigações no seu termo não poderão ser superiores a dois por cento do valor da prestação. § 2º É assegurado ao consumidor a liquidação antecipada do débito, total ou parcialmente, mediante redução proporcional dos juros e demais acréscimos.”
O conceito de idoso para fins de aplicação dessa lei é a pessoa com mais de 60 (sessenta) anos de idade. Nos termos do artigo 33-I, § 1º, “para a constituição da hipoteca reversa, o credor hipotecário reverso deve ser pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.”. A norma projetada apresenta indisfarçável aspecto cogente com relação à idade mínima.
Mantendo a concepção jus-filosófica dessa figura jurídica acima referida, o parágrafo segundo do artigo 33-I, § 3º, dispõe que o falecimento do devedor, comprovado por atestado de óbito configura o termo final para a reposição do empréstimo ou do crédito da hipoteca reversa.
Se o credor falecer até cinco anos da celebração do contrato (art. 33-I, §4º), o imóvel será entregue aos herdeiros que herdarão também a dívida contraída pelo autor da herança, respondendo, por óbvio, nos limites desta (art. 1792, CC). Com a morte do credor fiduciário reverso (idoso) após o citado prazo legal, a propriedade se consolida nas mãos do devedor fiduciante reverso (instituição financeira) que, a partir desse momento deverá adotar algumas providências (art. 33-J, caput), sobre as quais se falará a seguir.
A primeira é a de, no prazo de trinta dias a contar da data do falecimento do credor fiduciário reverso (melhor seria a partir do conhecimento), fornecer ao inventariante ou aos herdeiros em caso de não abertura do inventário, o termo de resolução do contrato, sob pena de multa em favor do espório, equivalente a meio por cento ao mês, ou fração, calculado sobre o valor principal da dívida. Submetido ao oficial do registro de imóveis o termo de resolução do contrato, este providenciará o registro do imóvel em nome da instituição financeira que figura como devedora fiduciante reversa.
Por sua vez, o inventariante ou os seus herdeiros, contarão após a notificação do termo de resolução do contrato, com o prazo de trinta dias para retirar os bens que guarnecem o imóvel e levantar eventuais benfeitorias voluptuárias.
O projeto de lei chama esse fato jurídico apriorístico decorrente da imediata incidência da condição resolutiva de “consolidação do domínio útil”, talvez querendo indicar, o que é verdade, que os herdeiros ainda terão a oportunidade de trazer o imóvel dado em garantia para o espólio do falecido e isto se dará com o adimplemento da obrigação pecuniária deixada pelo falecido frente à instituição financeira.
De acordo com os termos contratuais, se a dívida perante o banco vencer e não for paga pelos interessados, a propriedade se consolida definitivamente nas mãos do credor da obrigação pecuniária. O projetado artigo 33-K traz uma série de providências para que seja efetiva a notificação da dívida ao inventariante ou aos seus herdeiros a fim de que estes tenham a oportunidade de purgar a mora no Cartório do Registro de Imóveis, levando ao convalescimento do contrato de alienação fiduciária reversa que terá por efeito a possibilidade de recolhimento do bem alienado para o acervo hereditário deixado pelo falecido devedor.
Outras regras podem ser anotadas como a que trata da proibição de o credor fiduciário reverso alugar o imóvel, o que não se justifica (art. 33-L), pois a fruição econômica do bem é dele que, a propósito, está obrigado a arcar com todas as obrigações que incidem sobre o imóvel, tais como impostos, taxas e despesas condominiais até a eventual imissão da posse em mãos do devedor fiduciante reverso (art. 33-M). Assim também, a norma que possibilita a cessão do crédito, objeto da propriedade fiduciária reversa, a terceiros e a do o credor (art. 33-N).
AUSÊNCIA DE DETERMINAÇÃO DE VENDA DO IMÓVEL APÓS A CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA: GRAVE OMISSÃO
Peca o projeto de lei por não trazer, à moda da alienação fiduciária em garantia de imóvel clássica, determinação para a venda do imóvel de modo público de modo que os herdeiros possam fiscalizar a estrita satisfação do crédito com a devolução do que sobejar a fim de não se permitir a configuração de enriquecimento sem causa em desfavor do espólio do falecido devedor.
Essa omissão pode conduzir ao entendimento de que na alienação fiduciária reversa que, se aprovada, contará com lei especial, é admitido o pacto comissório tido, corretamente, como nulo de pleno direito no artigo 1428 do Código Civil para todos os outros direitos reais de garantia, verbis: “é nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício, anticrético ou hipotecário a ficar com o objeto da garantia, se a dívida não for paga no vencimento”.
Pacto comissório no regime de garantias reais é a cláusula que autoriza o credor com garantia real a ficar imediatamente com a coisa se a dívida não for paga no vencimento[2]. A par de referendar a odiosa prática do enriquecimento sem causa, como adverte Pontes de Miranda, a permissão dessa prática coloca “o devedor à mercê de explorações usurárias”[3] em detrimento dos legítimos interesses do devedor e da própria sociedade, uma vez que é totalmente possível que o bem dado em garantia supere o montante da dívida.
Clóvis Beviláqua[4] fundamenta a proibição na moral quando assevera que “a proteção do fraco em face da exploração gananciosa do argentário, que usa desse meio para extorquir do devedor por preço irrisório, o bem que este lhe dá em garantia do pagamento”.
Outra razão justificadora da proibição pode ser encontrada no princípio constitucional processual do devido processo legal, de vez que o artigo 5o, LIV, da CF veda a perda forçada de bens sem o devido processo legal. Concluindo, temos que para que o credor tenha a sua pretensão satisfeita, terá que executar a dívida e, após a observância dos requisitos legais presentes no processo de execução, receber apenas o seu crédito. O que sobejar deverá ser entregue ao devedor.
Não se reveste de abusividade eventual norma especial que à semelhança do pa parágrafo único do artigo 1.428 do Código Civil possibilite que, após o vencimento da obrigação, o credor da prestação pecuniária aceite receber o bem objeto da garantia em pagamento. A hipótese seria de uma dação em pagamento, cuja natureza é a de ato negocial que enseja a extinção do pagamento mediante a entrega de objeto diverso do que era devido (arts. 356 a 359, CC).
A despeito de não ser tecnicamente correto falar em vedação ao pacto comissório na alienação fiduciária em garantia tradicional, pois o bem é alienado, com escopo de garantia, exatamente para o credor[5], não tendo sentido proibir que alguém fique com aquilo que já lhe pertence. No caso da propriedade fiduciária reversa, com a consolidação da propriedade após a morte do tomador de empréstimo da instituição financeira e o não pagamento da dívida pelos seus herdeiros, o bem passa a pertencer ao credor, a ensejar que na teoria perderia o sentido em se falar na vedação ao pacto comissório. Entretanto, pelos mesmos fins que animam a proibição no penhor, hipoteca e anticrese, na alienação fiduciária, o consolidar o domínio diante do inadimplemento, o credor é obrigado a alienar o bem a terceiro, amortizando a dívida com o produto da venda e devolvendo eventual saldo ao devedor.
Não por outro motivo, o artigo 1365 do Código Civil[6], ao tratar da propriedade fiduciária genérica estabelece que “é nula a cláusula que autoriza o proprietário fiduciário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga no vencimento. Parágrafo único. O devedor pode, com a anuência do credor, dar seu direito eventual à coisa em pagamento da dívida, após o vencimento desta.”.
Figurando como credor uma instituição financeira, o contrato se submeterá à incidência do Código de Proteção e Defesa do Consumidor e essa consolidação da propriedade sem prestação de contas, ofende a não mais poder princípios e regras desse ramo do direito, sendo digno de destaque que a pessoa idosa pode ser considerada hipervulnerável (art. 39, IV, lei 8078/90).
Registre-se que o artigo 53 da lei consumerista[7] fulmina com a pena de nulidade absoluta a chamada cláusula de decaimento que de modo oblíquo e, portanto, em fraude à lei, pode acabar por se concretizar, na medida em que os herdeiros do idoso falecido poderão perder o imóvel gravado pelo autor da herança em razão da dívida deste. Evidente que aqui não se trata da vedação de perda de todas as prestações pagas em razão das que se deixou de pagar, mas pode ocorrer um prejuízo patrimonial significativo para o consumidor se a dívida não for quitada pelos herdeiros. Se o imóvel tiver um valor de um milhão de reais e a dívida for de cem mil reais? A consolidação da propriedade em mãos do credor ensejará enriquecimento sem causa e perda da propriedade sem o devido processo legal, pois como dito acima, a alienação se dá apenas com o escopo de garantia, tratando-se como se trata de negócio fiduciário[8].
É possível até que seja positivado, por opção legislativa, o denominado pacto marciano, no qual como salienta Moreira Alves[9], “se o débito não for pago, a coisa oderá passar à propriedade plena do credor pelo seu justo valor, a ser estimado, antes ou depois de vencida a dívida, por terceiro.”. Ainda que não concordemos com tal pactuação em contratos regidos pelo Código de Defesa do Consumidor[10], somos obrigados a aceitar que em tese a questão merece discussão mais aprofundada, pois é da essência de tal pacto que não ocorra o enriquecimento sem causa a partir da busca do justo valor para o bem alienado fiduciariamente e o posterior acerto de contas justo e transparente entre credor e devedor. Não é possível juridicamente que a propriedade plena passe para as mãos da instituição financeira sem o exato equilíbrio no momento do pagamento forçado, evitando-se o possível enriquecimento sem causa.
Permanecendo tal equívoco na aprovação da lei, ainda que o idoso já esteja falecido por ocasião da perda peremptória do imóvel, é importante lembrar que o momento jurídico a ser considerado para a análise da validade do negócio é o da contratação. Falta de boa fé objetiva, transparência, locupletamento, desequilíbrio contratual em desfavor do vulnerável são alguns pontos que devem ser discutidos perante o Poder Judiciário.
NOTAS CONCLUSIVAS
Deve ser resolvido o equívoco da nomenclatura do projeto que denomina de hipoteca reversa aquilo que define como alienação fiduciária em garantia reversa!!!
Imperioso, igualmente, que se dê tratamento jurídico adequado à sensível questão do justo acerto de contas entre o valor da dívida deixada pelo falecido e a do imóvel gravado a fim de se evitar possível enriquecimento sem causa e apropriação do bem alheio sem o devido processo legal. Esta falha nos parece tão grave que ousamos afirmar que o esforço e os bons propósitos do projeto se perdem completamente, devendo ser recomendado realmente a sua não aprovação como indica pesquisa na página do Senado Federal do dia 22/08/2020.
Sanadas as irregularidades acima e com as melhorias redacionais e de mérito que decorrem naturalmente do procedimento legislativo, temos que o instituto pode ser de grande valia para atribuir ao idoso maior autonomia e independência financeira e, por conseguinte, uma vida com mais qualidade e dignidade em cumprimento ao comando constitucional (art. 230) e do artigo 2º do Estatuto do Idoso, o qual preconiza que além dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, ao idoso deve ser garantidas “todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.”.
Queremos encerrar esse estudo com uma passagem que colhemos de um estudo feito pela Federação Espírita do Paraná denominado “As Quatro Estações da Vida”[11]:
“Enfim, um dia chega o inverno. A mais inquietante das estações. Muitos temem o inverno, como temem a velhice. É que esquecem a beleza misteriosa das paisagens cobertas de neve. Época de recolhimento? Em parte. O inverno é também a época do compartilhamento de experiências. Quem disse que a velhice é triste? Ela pode ser calorosa e feliz, como uma noite de inverno diante da lareira, na companhia dos seres amados. Velhice também pode ser chocolate quente, sorrisos gentis, leitura sossegada, generosidade com filhos e netos. Basta que não se deixe que o frio enregele a alma. Felizes seremos nós se aproveitarmos a beleza de cada estação. Da primavera levarmos pela vida inteira a espontaneidade e a alegria. Do verão, a leveza e a força de vontade. Do outono, a reflexão. Do inverno, a experiência que se compartilha com os seres amados.”.
Oxalá que o aprimoramento do projeto alcance o seu nobre objetivo de colaborar para a efetividade da dignidade da pessoa idosa sem que se perca nos terrenos sombrios do abuso do direito e da usura.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALVES, José Carlos Moreira. Da Alienação Fiduciária em Garantia. São Paulo: Saraiva, 1973.
BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Coisas. Vol. 2. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1956.
CHALHUB, Melhim Namem. Direitos Reais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais. 6ª ed. São Paulo; RT, 2011, p. 1040-1055.
MELO, Marco Aurélio Bezerra. Direito Civil. Coisas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2019.
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes. Tratado de Direito Privado, vol. 20. 5 ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971.
SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; Simão, José Fernando; DELGADO, Mário; MELO, Marco Aurélio Bezerra. Código Civil Comentado. 2ª ed. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2020.
TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor: Direito Material e Processual. 4ª ed. São Paulo: Método, 2015.
Veja aqui os livros do autor!
LEIA TAMBÉM
- Por uma Lei excepcional: dever de renegociar como condição de procedibilidade da Ação de Revisão e Resolução Contratual em tempos de Covid-19
- ‘Código Civil Comentado’ chega à 2ª edição com atualizações e novos conteúdos. Confira!
- Anderson Schreiber e Marco Aurélio Bezerra de Melo debatem o princípio do equilíbrio contratual no direito brasileiro
- Evento que debate a MP da Liberdade Econômica é realizado em São Paulo
Leia aqui outros textos do autor!
[1] Disponível em: <https://censo2020.ibge.gov.br/2012-agencia-de-noticias/noticias/26103-expectativa-de-vida-dos-brasileiros-aumenta-para-76-3-anos-em-2018.html.
[2] Sobre o tema: MELO, Marco Aurélio Bezerra. Direito Civil. Coisas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2019, p. 429.
[3] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes. Tratado de Direito Privado, vol. 20. 5 ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, p. 30.
[4] BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Coisas. Vol. 2. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1956, p. 36.
[5] CHALHUB, Melhim Namem. Direitos Reais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 373/375.
[6] Ver nossos comentários ao dispositivo in Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência / Anderson Schreiber … (et al.). 2. ed. – Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2020, p. 1043/1044.
[7] Sobre o tema: TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor: Direito Material e Processual. 4ª ed. São Paulo: Método, 2015, p. 325-338; MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais. 6ª ed. São Paulo; RT, 2011, p. 1040-1055.
[8] Sobre a natureza de Negócio Fiduciário da transferência da propriedade na alienação fiduciária em garantia: SAAD, Renan Miguel. A Alienação Fiduciária Sobre Bens Imóveis. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 73-82. GOMES, Orlando. Alienação Fiduciária em Garantia. 2ª ed. São Paulo: RT, 1971, p. 31-32;
[9] Alves, José Carlos Moreira. Da Alienação Fiduciária em Garantia. São Paulo: Saraiva, 1973, p. 127.
[10] Enunciado 626, da VIII Jornada de Direito Civil do CJF/STJ: “Art. 1.428: Não afronta o art. 1.428 do Código Civil, em relações paritárias, o pacto marciano, cláusula contratual que autoriza que o credor se torne proprietário da coisa objeto da garantia mediante aferição de seu justo valor e restituição do supérfluo (valor do bem em garantia que excede o da dívida).”
[11] Disponível em http://www.momento.com.br/pt/ler_texto.php?id=3082&let=Q&stat=0. Acesso em: 22/08/2020.