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Transformações jurídicas da Família no Brasil
Paulo Lobo
12/02/2018
Das origens à contemporaneidade
A família sofreu profundas mudanças de função, natureza, composição e, consequentemente, de concepção, sobretudo após o advento do Estado social, ao longo do século XX.
No plano constitucional, o Estado, antes ausente, passou a se interessar de forma clara pelas relações de família, em suas variáveis manifestações sociais. Daí a progressiva tutela constitucional, ampliando o âmbito dos interesses protegidos, definindo modelos, nem sempre acompanhados pela rápida evolução social, a qual engendra novos valores e tendências que se concretizam a despeito da lei.
A família patriarcal, que a legislação civil brasileira tomou como modelo, desde a Colônia, o Império e durante boa parte do século XX, entrou em crise, culminando com sua derrocada, no plano jurídico, pelos valores introduzidos na Constituição de 1988.
Como a crise é sempre perda dos fundamentos de um paradigma em virtude do advento de outro, a família atual está matrizada em paradigma que explica sua função atual: a afetividade. Assim, enquanto houver affectio haverá família, unida por laços de liberdade e responsabilidade, e desde que consolidada na simetria, na colaboração, na comunhão de vida.
Fundada em bases aparentemente tão frágeis, a família atual passou a ter a proteção do Estado, constituindo essa proteção um direito subjetivo público, oponível ao próprio Estado e à sociedade. A proteção do Estado à família é, hoje, princípio universalmente aceito e adotado nas constituições da maioria dos países, independentemente do sistema político ou ideológico. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, votada pela ONU em 10 de dezembro de 1948, assegura às pessoas humanas o direito de fundar uma família, estabelecendo o art. 16.3: “A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado”. Desse dispositivo defluem conclusões evidentes: a) família não é só aquela constituída pelo casamento, tendo direito todas as demais entidades familiares socialmente constituídas; b) a família não é célula do Estado (domínio da política), mas da sociedade civil, não podendo o Estado tratá-la como parte sua. Pontes de Miranda[1], referindo-se à Constituição de 1946, diz que o legislador constituinte, com intuito ético-político, não pretendeu defender só a instituição jurídica, mas a família como instituição social, na multiplicidade de sua expressão.
Direitos novos surgiram e estão a surgir, não só aqueles exercidos pela família, como conjunto, mas por seus membros, entre si ou em face do Estado, da sociedade e das demais pessoas, em todas as situações em que a Constituição e a legislação infraconstitucional tratam a família, direta ou indiretamente, como peculiar sujeito de direitos (ou deveres).
Sob o ponto de vista do direito, a família é feita de duas estruturas associadas: os vínculos e os grupos. Há três sortes de vínculos, que podem coexistir ou existir separadamente: vínculos de sangue, vínculos de direito e vínculos de afetividade. A partir dos vínculos de família é que se compõem os diversos grupos que a integram[2]: grupo conjugal, grupo parental (pais e filhos), grupos secundários (outros parentes e afins).
Função Atual da Família. Sua Evolução e Perspectivas
À família, ao longo da história, foram atribuídas funções variadas, de acordo com a evolução que sofreu, a saber, religiosa, política, econômica e procracional. Sua estrutura era patriarcal, legitimando o exercício dos poderes masculinos sobre a mulher — poder marital, e sobre os filhos — pátrio poder. As funções religiosa e política praticamente não deixaram traços na família atual, mantendo apenas interesse histórico, na medida em que a rígida estrutura hierárquica foi substituída pela coordenação e comunhão de interesses e de vida.
Para Fustel de Coulanges, a família antiga era mais “uma associação religiosa do que uma associação natural”. Ainda segundo o autor, “o princípio da família não o encontramos tampouco no afeto natural. O direito grego e o direito romano não levavam em consideração esse sentimento. O pai podia amar muito sua filha, mas não podia legar-lhe os seus bens”. O efeito do casamento “consistia da união de dois seres no mesmo culto doméstico, fazendo deles nascer um terceiro apto a perpetuar esse culto” [3].
No direito luso-brasileiro, era rígido o poder marital sobre a mulher, com as seguintes previsões, nas Ordenações: castigos, cárcere privado pelo tempo que exigisse a correção, direito de morte, se a surpreendia em flagrante adultério. O direito canônico também inferiorizava a condição da mulher, mas seus “delitos” tinham punição mais branda, segundo Pontes de Miranda[4].
A família atual busca sua identificação na solidariedade (art. 3º, I, da Constituição), como um dos fundamentos da afetividade, após o individualismo triunfante dos dois últimos séculos, ainda que não retome o papel predominante que exerceu no mundo antigo. Na expressão de Henry Summer Maine [5], “pode-se expressar o contraste de uma maneira mais clara dizendo que a unidade da antiga sociedade era a família como a da sociedade moderna é o indivíduo”.
Por seu turno, a função econômica perdeu o sentido, pois a família — para o que era necessário o maior número de membros, principalmente filhos — não é mais unidade produtiva nem seguro contra a velhice, cuja atribuição foi transferida para a previdência social. Contribuiu para a perda dessa função a progressiva emancipação econômica, social e jurídica feminina e a drástica redução do número médio de filhos das entidades familiares. A doutrina estrangeira[6] também destaca que a família perdeu seu papel de “comunidade de produção”; a sociedade conjugal de trabalhadores é muito mais caracterizada pelo consumo conjunto e não mais pelo ganha-pão conjunto (como na sociedade agrária).
A função procracional perdeu força em razão do grande número de casais sem filhos, por livre escolha, ou da primazia da vida profissional, ou de infertilidade, o que levou à impressionante redução da taxa de fecundidade das brasileiras, que em 1960 foi de 6,3 nascimentos/mulher, em 2000 foi de 2,38 e em 2010 foi de 1,89, menor que a taxa mínima de reposição populacional. O direito também contempla essas uniões familiares, para as quais a procriação não é essencial. O favorecimento constitucional da adoção fortalece a natureza socioafetiva da família, para a qual a procriação não é imprescindível. Nessa direção encaminha-se o reconhecimento jurídico da natureza familiar das uniões de pessoas do mesmo sexo.
Os milhares de sugestões populares e de entidades dedicadas à família, recolhidas pela Assembleia Nacional Constituinte que promulgou a Constituição de 1988, voltaram-se muito mais para os aspectos pessoais do que para os patrimoniais das relações familiares, refletindo as transformações por que passam. Das 5.517 sugestões recebidas, destacaram-se os temas relativos a: fortalecimento da família como união de afetos, igualdade entre homem e mulher, guarda de filhos, proteção da privacidade da família, proteção estatal das famílias carentes, aborto, controle de natalidade, paternidade responsável, liberdade quanto ao controle de natalidade, integridade física e moral dos membros da família, vida comunitária, regime legal das uniões estáveis, igualdade dos filhos de qualquer origem, responsabilidade social e moral pelos menores abandonados, facilidade legal para adoção.
A realização pessoal da afetividade, no ambiente de convivência e solidariedade, é a função básica da família de nossa época. Suas antigas funções feneceram, desapareceram ou passaram a desempenhar papel secundário. Até mesmo a função procracional, com a secularização crescente do direito de família e a primazia atribuída ao afeto, deixou de ser sua finalidade precípua.
A família, na sociedade de massas contemporânea, sofreu as vicissitudes da urbanização acelerada ao longo do século XX, como ocorreu no Brasil. Por outro lado, a emancipação feminina, principalmente econômica e profissional, modificou substancialmente o papel que era destinado à mulher no âmbito doméstico e remodelou a família. São esses os dois principais fatores do desaparecimento da família patriarcal.
Reinventando-se socialmente, reencontrou sua unidade na affectio, antiga função desvirtuada por outras destinações nela vertidas, ao longo de sua história. A afetividade, assim, desponta como elemento nuclear e definidor da união familiar, aproximando a instituição jurídica da instituição social. A afetividade é o triunfo da intimidade como valor, inclusive jurídico, da modernidade. Como diz Anthony Giddens, ao estudar a perspectiva da intimidade como democracia da vida pessoal, “as mulheres prepararam o caminho para uma expansão do domínio da intimidade em seu papel como as revolucionárias emocionais da modernidade” [7].
Na medida em que a família deixou de ser concebida como base do Estado para ser espaço de realizações existenciais, manifestou-se “uma tendência incoercível do indivíduo moderno de privatizar suas relações amorosas, afetivas, de rejeitar que sua esfera de intimidade esteja sob a tutela da sociedade, do Estado e, portanto, do direito” [8]. As demandas são, pois, de mais autonomia e liberdade e menos intervenção estatal na vida privada, pois a legislação sobre família foi, historicamente, mais cristalizadora de desigualdades e menos emancipadora.
Ante a tribalização orgânica da sociedade globalizada atual, a família é reivindicada “como o único valor seguro ao qual ninguém quer renunciar. Ela é amada, sonhada e desejada por homens, mulheres e crianças de todas as idades, de todas as orientações sexuais e de todas as condições”, na expectativa de que “saiba manter, como princípio fundador, o equilíbrio entre o um e o múltiplo de que todo sujeito precisa para construir sua identidade” [9].
Perfil Demográfico da Família Contemporânea
A família brasileira transformou-se intensamente ao final do século XX e início do século XXI, não apenas quanto aos valores, mas quanto à sua composição, como revelam os dados dos censos demográficos do IBGE, especialmente o de 2010. Constata-se a existência de uma população avassaladoramente urbana (superior a 80%), completamente diferente do predomínio rural, cuja família serviu de modelo para o Código Civil de 1916, quando a proporção era inversa. Apurou-se que:
a) a média nacional de membros por família caiu para menos de quatro pessoas, confirmando o declínio das famílias numerosas;
b) em contrapartida, as entidades monoparentais compostas, principalmente, por mulheres e seus filhos têm atingido um quinto dos domicílios;
c) o decréscimo da taxa de fecundidade por mãe foi notável, atingindo-se menos de 2,1 filhos por mãe, cuja média é necessária para um país manter seus níveis de reposição e garantir a substituição das gerações. Para efeito de comparação, em 1960 eram 6,28 filhos por mulher, em média;
d) os mais velhos estão vivendo mais, demandando atenção crescente das famílias, especialmente os idosos;
e) a população é mais feminina, em razão da maior taxa de mortalidade entre os homens e maior longevidade das mulheres;
f) o perfil das famílias formadas por casais com filhos revela que em 83,8% delas todos os filhos são comuns de cada casal, enquanto que em 16,2% há outras configurações, principalmente de famílias recompostas, após a separação de um ou de ambos os genitores (filhos de um, ou de cada um, ou filhos de cada um com filhos comuns etc.);
g) 12% dos domicílios eram habitados apenas por uma pessoa, 1% dos domicílios eram habitados por duas ou mais pessoas sem relação de parentesco.
A Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD), realizada anualmente pelo IBGE, indica uma queda progressiva no modelo de família nuclear (pai, mãe e filhos), constituída pelo casamento ou pela união estável. Em quase metade dos domicílios as pessoas convivem em outros tipos de entidades familiares ou vivem sós. Contudo, a PNAD revela uma tendência de crescimento da taxa de conjugalidade, principalmente após a Emenda Constitucional n. 66/2010, que facilitou a obtenção do divórcio, uma vez que os divorciados procuram constituir novas entidades familiares.
Repersonalização das Relações de Família
A família, ao converter-se em espaço de realização da afetividade humana, marca o deslocamento de suas antigas funções para o espaço preferencial de realização dos projetos existenciais das pessoas. Essas linhas de tendências enquadram-se no fenômeno jurídico-social denominado repersonalização das relações civis, que valoriza o interesse da pessoa humana mais do que suas relações patrimoniais. É a recusa da coisificação ou reificação da pessoa, para ressaltar sua dignidade. A família é o locus por excelência da repersonalização do direito civil.
Os autores sempre afirmaram que o direito de família disciplina direitos de três ordens, a saber, pessoais, patrimoniais e assistenciais, ou, ainda, matrimoniais, parentais e de proteção. Sempre se afirmou, igualmente, que esses direitos e situações são plasmados em relações de caráter eminentemente pessoais, não sendo os interesses patrimoniais predominantes. Seria o direito de família o mais pessoal dos direitos civis. As normas de direito das coisas e de direitos das obrigações não seriam subsidiárias do direito de família.
Entretanto, os códigos civis, na maioria dos povos ocidentais, desmentem essa recorrente afirmação. Editados sob a inspiração do liberalismo individualista, alçaram a propriedade e os interesses patrimoniais a pressuposto nuclear de todos os direitos privados, inclusive o direito de família. O que as codificações liberais sistematizaram já se encontrava na raiz histórica do próprio conceito de família. Lembra Pontes de Miranda[10] que a palavra família, aplicada aos indivíduos, empregava-se no direito romano em acepções diversas. Era também usada em relação às coisas, para designar o conjunto do patrimônio, ou a totalidade dos escravos pertencentes a um senhor.
Engels[11] esclarece que a palavra família não pode ser aplicada, em princípio, nos romanos antigos, ao casal e aos filhos, mas somente aos escravos. Famulus queria dizer escravo e família era o conjunto de escravos pertencentes a um mesmo homem. Ainda no tempo de Caio, a família id est patrimonium (quer dizer, parte da herança) era transmitida testamentariamente. Segundo esse autor, a expressão foi inventada pelos romanos para designar um novo organismo social cujo chefe tinha sob suas ordens a mulher, os filhos e certo número de escravos, submetidos ao poder paterno romano, com direito de vida e morte sobre todos eles. Essa família seria baseada no domínio do homem, com expressa finalidade de procriar filhos de paternidade incontestável, inclusive para fins de sucessão. Foi a primeira forma de família fundada sobre condições não naturais, mas econômicas, resultando no triunfo da propriedade individual sobre a compropriedade espontânea primitiva.
É na origem e evolução histórica da família patriarcal e no predomínio da concepção do homem livre proprietário que foram assentadas as bases da legislação sobre a família, inclusive no Brasil. No Código Civil de 1916, dos 290 artigos da parte destinada ao direito de família, 151 tratavam de relações patrimoniais e 139 de relações pessoais. A partir da década de 1970 essas bases começaram a ser abaladas com o advento de nova legislação emancipadora das relações familiares, que desmontaram as estruturas centenárias ou milenares do patriarcalismo.
No que se refere à filiação, a assimetria do tratamento legal aos filhos, em razão da origem e do pesado discrime causado pelo princípio da legitimidade, não era inspirada na proteção da família, mas na proteção do patrimônio familiar. A caminhada progressiva da legislação rumo à completa equalização do filho ilegítimo foi delimitada ou contida pelos interesses patrimoniais em jogo, sendo obtida a conta-gotas: primeiro, o direito a alimentos, depois, a participação em 25% da herança, mais adiante, a participação em 50% da herança, chegando finalmente à totalidade dela.
O Código Civil de 2002, apesar da apregoada mudança de paradigma, do individualismo para a solidariedade social, manteve forte presença dos interesses patrimoniais sobre os pessoais, em variados institutos do Livro IV, dedicado ao direito de família, desprezando-se o móvel da affectio, inclusive no Título I destinado ao “direito pessoal”. Assim, as causas suspensivas do casamento, referidas no art. 1.523, são quase todas voltadas aos interesses patrimoniais (principalmente, em relação à partilha de bens). Da forma como permanece no Código, a autorização do pai, tutor ou curador para que se casem os que lhe estão sujeitos não se volta à tutela da pessoa, mas ao patrimônio dos que desejam casar; a razão de a viúva estar impedida de casar antes de dez meses depois da gravidez não é a proteção da pessoa humana do nascituro, ou a da certeza da paternidade, mas a proteção de seus eventuais direitos sucessórios; o tutor, o curador, o juiz, o escrivão estão impedidos de casar com as pessoas sujeitas a sua autoridade, porque aqueles, segundo a presunção da lei, seriam movidos por interesses econômicos. No capítulo destinado à dissolução da sociedade conjugal (antes da nova redação dada ao § 6º do art. 226 da Constituição, pela EC n. 66, de 2010) e do casamento ressaltavam os interesses patrimoniais. A confusa redação dos preceitos relativos à filiação (principalmente a imprescritibilidade prevista no art. 1.601) estimula que a impugnação ou o reconhecimento judicial da paternidade tenham como móvel interesse econômico (principalmente herança), ainda que ao custo da negação da história de vida construída na convivência familiar. As normas destinadas à tutela e à curatela estão muito mais voltadas ao patrimônio do que às pessoas dos tutelados e curatelados. Na curatela do pródigo, a proteção patrimonial chega ao clímax, pois a prodigalidade é negada e a avareza premiada.
Quando cuida dos regimes de bens entre os cônjuges, o Código Civil (art. 1.641, com a redação da Lei n. 12.344/2010) impõe, com natureza de sanção, o regime de separação de bens aos que contraírem casamento com inobservância das causas suspensivas e ao maior de 70 anos (na redação original, 60 anos), regra esta de discutível constitucionalidade, pois agressiva da dignidade da pessoa humana, cuja afetividade é desconsiderada em favor de interesses de futuros herdeiros. João Baptista Villela considera a proibição de casar aos idosos um reflexo agudo da postura patrimonialista do Código Civil e constitui mais um dos ultrajes gratuitos que nossa cultura inflige à terceira idade. E arremata: “A afetividade enquanto tal não é um atributo da idade jovem” [12]
A realidade palpável é a de o Código Civil permanecer impermeável — inclusive no que concerne às relações de família — aos interesses da maioria da população brasileira que não tem acesso às riquezas materiais. Evidentemente, as relações de família também têm natureza patrimonial; sempre terão. Todavia, quando passam a ser determinantes, desnaturam a função da família, como espaço de realização pessoal e afetiva de seus membros.
A repersonalização contemporânea das relações de família retoma o itinerário da afirmação da pessoa humana como objetivo central do direito. No mundo antigo, o conceito romano de humanitas era o da natureza compartilhada por todos os seres humanos. No Digesto (1, 5, 2) encontra-se o famoso enunciado: hominum causa ius constitutum sit, todo direito é constituído por causa dos homens. Essa centralidade na pessoa humana foi acentuada na modernidade desde seu início, principalmente com o Iluminismo, despontando na construção grandiosa dos direitos humanos fundamentais e do conceito de dignidade da pessoa humana. Daí a bela proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos contida em seu art. 1º: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. No mundo atual, o foco na pessoa humana é matizado com a consciência da tutela jurídica devida aos outros seres vivos (meio ambiente) e da coexistência necessária, pois a pessoa existe quando coexiste (solidariedade).
O anacronismo da legislação sobre família revelou-se em plenitude com o despontar dos novos paradigmas das entidades familiares. O advento do Código Civil de 2002 não pôs cobro ao descompasso da legislação, pois várias de suas normas estão fundadas nos paradigmas passados e em desarmonia com os princípios constitucionais referidos.
A excessiva preocupação com os interesses patrimoniais que marcou o direito de família tradicional não encontra eco na família atual, vincada por outros interesses de cunho pessoal ou humano, tipificados por um elemento aglutinador e nuclear distinto — a afetividade. Esse elemento nuclear define o suporte fático da família tutelada pela Constituição, conduzindo ao fenômeno que denominamos repersonalização.
O desafio que se coloca ao jurista e ao direito é a capacidade de ver a pessoa humana em toda sua dimensão ontológica e não como simples e abstrato sujeito de relação jurídica. A pessoa humana deve ser colocada como centro das destinações jurídicas, valorando-se o ser e não o ter, isto é, sendo fator de medida do patrimônio, que passa a ter função complementar.
Orlando de Carvalho julga oportuna a repersonalização de todo o direito civil — seja qual for o invólucro em que esse direito se contenha — isto é, a acentuação de sua raiz antropocêntrica, de sua ligação visceral com a pessoa e seus direitos. É essa valorização do poder jurisgênico do homem comum — inclusive no âmbito do direito de família, quando sua efetividade se estrutura —, é essa centralização em torno do homem e dos interesses imediatos que faz o direito civil, para o autor, o foyer da pessoa, do cidadão mediano, do cidadão puro e simples[13].
A restauração da primazia da pessoa, nas relações de família, na garantia da realização da afetividade, é a condição primeira de adequação do direito à realidade. Essa mudança de rumos é inevitável.
A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, de 1989, adotada pela Assembleia das Nações Unidas, internalizada no direito brasileiro com força de lei em 1990 (Decreto Legislativo n. 28, de 24-9-1990, e Decreto Executivo n. 99.710, de 21-11-1990), que tem natureza supralegal (segundo o parâmetro utilizado pelo STF no RE 404.276), preconiza a proteção especial da criança mediante o princípio do melhor interesse, em suas dimensões pessoais. Para cumprir o princípio do melhor interesse, a criança deve ser posta no centro das relações familiares, devendo ser considerada segundo o “espírito de paz, dignidade, tolerância, liberdade, igualdade e solidariedade”. As crianças são definidas de maneira afirmativa[14], como sujeitos plenos de direitos: “já não se trata de ‘menores’, incapazes, pessoas incompletas, mas de pessoas cuja única particularidade é a de estarem crescendo”. Tais valores não são compatíveis com razões predominantemente patrimoniais.
A família tradicional aparecia através do direito patrimonial e, após as codificações liberais, pela multiplicidade de laços individuais, como sujeitos de direito atomizados. Agora, é fundada na solidariedade, na cooperação, no respeito à dignidade de cada um de seus membros, que se obrigam mutuamente em uma comunidade de vida. A família atual é apenas compreensível como espaço de realização pessoal afetiva, no qual os interesses patrimoniais perderam seu papel de principal protagonista. A repersonalização de suas relações empodera as entidades familiares, em seus variados tipos ou arranjos.
Por outro ângulo, o interesse a ser tutelado não é mais o do grupo organizado como esteio do Estado e o das relações de produção existentes. A subsunção da família no Estado, uma condicionando o outro, estava pacificamente assente na doutrina jurídica tradicional. Savigny, por exemplo, afirmava que na família se teria o germe do Estado, e o Estado, uma vez formado, tem por elemento imediato a família e não as pessoas[15].
As relações de consanguinidade, na prática social, são menos importantes que as oriundas de laços de afetividade e da convivência familiar, constituintes do estado de filiação, que deve prevalecer quando houver conflito com o dado biológico, salvo se o princípio do melhor interesse da criança ou o princípio da dignidade da pessoa humana indicarem outra orientação, não devendo ser confundido o direito àquele estado com o direito à origem genética, como demonstramos alhures[16]. A adoção foi alçada pela Constituição à mesma dignidade da filiação natural, confundindo-se com esta e revelando a primazia dos interesses existenciais e repersonalizantes. Até mesmo a adoção de fato, denominada “adoção à brasileira”, fundada no “crime nobre” da falsificação do registro de nascimento, é um fato social amplamente aprovado, por suas razões solidárias (salvo quando oriundo de rapto), convertendo-se em estado de filiação indiscutível após a convivência familiar duradoura (posse de estado de filho).
A família como sujeito de direitos e deveres retoma a velha e sempre instigante questão de sua personalidade jurídica. No direito estrangeiro, René Savatier[17] foi quem melhor defendeu essa tese, partindo de uma concepção matizada da personalidade moral ou natural, essencial à vida humana, que existiria antes de qualquer construção jurídica. Entendemos que não haja necessidade do recurso à personalidade jurídica, pois o direito tem admitido com frequência a existência de tipos variados de sujeitos de direito, dotados de capacidade e legitimidade para cujo exercício é dispensado o enquadramento como pessoa jurídica, a exemplo de outras entidades (por exemplo, a massa falida, o condomínio de edifícios, os consórcios, o espólio, as sociedades em comum e em conta de participação, estas duas disciplinadas nos arts. 986 a 996 do Código Civil de 2002).
A repersonalização das relações jurídicas de família é um processo que avança, notável em todos os povos ocidentais, revalorizando a dignidade humana, e tendo a pessoa como centro da tutela jurídica, antes obscurecida pela primazia dos interesses patrimoniais, nomeadamente durante a hegemonia do individualismo proprietário, que determinou o conteúdo das grandes codificações. Com bastante lucidez, a doutrina vem revelando esse aspecto pouco investigado dos fundamentos tradicionais do direito de família, a saber, o predomínio da patrimonial, que converte a pessoa humana em mero homo economicus.
A criança, o adolescente, o idoso, o homem e a mulher são protagonistas dessa radical transformação ética, na plena realização do princípio estruturante da dignidade da pessoa humana, que a Constituição elevou ao fundamento da organização social, política, jurídica e econômica.
A repersonalização, posta nesses termos, não significa um retorno ao vago humanismo da fase liberal, ao individualismo, mas é a afirmação da finalidade mais relevante da família: a realização da afetividade pela pessoa no grupo familiar; no humanismo que só se constrói na solidariedade — no viver com o outro.
Socioafetividade e Origem Biológica
A família é socioafetiva, em princípio, por ser grupo social considerado base da sociedade e unido na convivência afetiva. A afetividade, como categoria jurídica, resulta da transeficácia de parte dos fatos psicossociais que a converte em fato jurídico, gerador de efeitos jurídicos. Todavia, no sentido estrito, a socioafetividade tem sido empregada no Brasil para significar as relações de parentesco não biológico, de parentalidade e filiação, notadamente quando em colisão com os vínculos de origem biológica.
A socioafetividade como categoria do direito de família tem sistematização recente no Brasil. Esse fenômeno, que já era objeto de estudo das ciências sociais e humanas, migrou para o direito, como categoria própria, por meio dos estudos da doutrina jurídica especializada, a partir da segunda metade da década de 1990. Há muito tempo, obras de antropologia, de outras ciências sociais e de psicanálise já tinham chamado a atenção para o fato de que é só após a passagem do homem da natureza para a cultura que se torna possível estruturar a família. Pode-se dizer que a evolução da família expressa a passagem do fato natural da consanguinidade para o fato cultural da afetividade, principalmente no mundo ocidental contemporâneo.
O afeto é um fato social e psicológico. Talvez por essa razão, e pela larga formação normativista dos profissionais do direito no Brasil, houvesse tanta resistência em considerá-lo a partir da perspectiva jurídica. Mas não é o afeto, enquanto fato anímico ou social, que interessa ao direito. Interessam, como seu objeto próprio de conhecimento, as relações sociais de natureza afetiva que engendram condutas suscetíveis de merecer a incidência de normas jurídicas e, consequentemente, deveres jurídicos. O afeto, em si, não pode ser obrigado juridicamente, mas sim as condutas que o direito impõe tomando-o como referência.
O termo socioafetividade conquistou as mentes dos juristas brasileiros, justamente porque propicia enlaçar o fenômeno social com o fenômeno normativo. De um lado há o fato social e de outro o fato jurídico, no qual o primeiro se converteu após a incidência da norma jurídica. A norma é o princípio jurídico da afetividade. As relações familiares e de parentesco são socioafetivas, porque congrega o fato social (socio) e a incidência do princípio normativo (afetividade).
O despertar do interesse pela socioafetividade no direito de família, no Brasil, especialmente na filiação, deu-se, paradoxalmente, no mesmo tempo em que os juristas se sentiram atraídos pela perspectiva de certeza quase absoluta da origem biológica, assegurada pelos exames de DNA. Alguns ficaram tentados a resolver todas as dúvidas sobre filiação no laboratório. Porém, a complexidade da vida familiar é insuscetível de ser apreendida em um exame laboratorial. Pai, com todas as dimensões culturais, afetivas e jurídicas que o envolvem, não se confunde com genitor biológico; é mais que este.
A paternidade e a filiação socioafetiva são, fundamentalmente, jurídicas, independentemente da origem biológica. Pode-se afirmar que toda paternidade é necessariamente socioafetiva, podendo ter origem biológica ou não biológica; em outras palavras, a paternidade socioafetiva é gênero do qual são espécies a paternidade biológica e a paternidade não biológica. Tradicionalmente, a situação comum é a presunção legal de que a criança nascida biologicamente dos pais que vivem unidos em casamento adquire o status jurídico de filho. Paternidade biológica aí seria igual a paternidade socioafetiva. Mas há outras hipóteses de paternidade que não derivam do fato biológico, quando este é sobrepujado por valores que o direito considera predominantes.
Fazer coincidir a filiação necessariamente com a origem genética é transformar aquela, de fato cultural e social em determinismo biológico, o que não contempla suas dimensões existenciais. A origem biológica era indispensável à família patriarcal e exclusivamente matrimonial, para cumprir suas funções tradicionais e para separar os filhos legítimos dos filhos ilegítimos. A família atual é tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e a responsabilidade.
A chamada verdade biológica nem sempre é adequada, pois a certeza absoluta da origem genética não é suficiente para fundamentar a filiação, especialmente quando esta já tiver sido constituída na convivência duradoura com pais socioafetivos (posse de estado) ou quando derivar da adoção. Os desenvolvimentos científicos, que tendem a um grau elevadíssimo de certeza da origem genética, pouco contribuem para clarear a relação entre pais e filho, pois a imputação da paternidade biológica não substitui a convivência, a construção permanente dos laços afetivos.
O biodireito depara-se com as consequências da dação anônima de sêmen humano ou de material genético feminino. Nenhuma conclusão da bioética aponta para atribuir a paternidade ao dador anônimo de sêmen. É princípio reconhecido universalmente que o mero dador de gametas não é juridicamente pai ou mãe, porque falta qualquer projeto de parentalidade. Tudo se esgota com o mero fornecimento do material genético. A referência feita na Lei n. 11.105, de 2005 (Lei da Biossegurança), ao consentimento dos genitores não inclui os dadores de gametas. Tampouco, a inseminação artificial heteróloga (CC, art. 1.597, V) permite o questionamento da paternidade dos que a utilizaram, com material genético de terceiros.
O problema da verdade real, que tem sido manejada de modo equivocado quando se trata de paternidade, é que não há uma única, mas três verdades reais: a) verdade biológica com fins de parentesco, para determinar paternidade — e as relações de parentesco decorrentes — quando esta não tiver sido constituída por outro modo e for inexistente no registro do nascimento, em virtude da incidência do princípio da paternidade responsável imputada a quem não a assumiu; b) verdade biológica sem fins de parentesco, quando já existir pai socioafetivo, para os fins de identidade genética, com natureza de direitos da personalidade, fora do direito de família; c) verdade socioafetiva, quando já constituído o estado de filiação e parentalidade, em virtude de adoção, ou de posse de estado de filiação, ou de inseminação artificial heteróloga.
O art. 232 do Código Civil estabelece que a recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova que se pretendia obter com o exame. Essa norma tem sido interpretada de modo literal e equivocado, como se o legislador brasileiro tivesse feito opção exclusiva para a verdade biológica, afastando a verdade socioafetiva. A presunção referida no artigo não é legal, mas judiciária, ou seja, depende da convicção do juiz, ante o conjunto probatório que se produziu. Se, por exemplo, o estado de filiação da paternidade estiver provado, a presunção resultante da recusa ao exame não prevalecerá. Já se disse[18] que esse artigo “não tem muita utilidade, pois, de nada adianta o legislador ‘regrar’ a presunção judicial, que é raciocínio do juiz”.
No estágio em que se encontram as relações familiares e o desenvolvimento científico, tende-se a encontrar a harmonização entre o direito de personalidade ao conhecimento da origem genética, sem implicação no parentesco, até como necessidade de concretização e prevenção do direito à saúde, e o direito à relação de parentesco, quando este já se estabeleceu, fundado no princípio jurídico da afetividade.
No sentido que vimos afirmando, o legislador brasileiro se encaminhou. A Lei n. 12.010/2009, ao dar nova redação ao art. 48 do ECA, passou a admitir, em relação ao adotado, “o direito de conhecer sua origem biológica”, mediante acesso aos dados contidos no processo de sua adoção, ao completar dezoito anos, ou, se menor, com assistência jurídica e psicológica. Esse direito não importa desfazimento da relação de parentesco, pois a adoção é inviolável.
Mesmo na família tradicional, a filiação biológica era nitidamente recortada entre filhos legítimos e ilegítimos, a demonstrar que a origem genética nunca foi, rigorosamente, a essência das relações familiares. As pessoas que se unem em comunhão de afeto, não podendo ou não querendo ter filhos, constituem também família protegida pela Constituição.
A igualdade entre filhos biológicos e não biológicos implodiu o fundamento da filiação na origem genética. A concepção de família, a partir de um único pai ou mãe e seus filhos, eleva-a à mesma dignidade da família matrimonial. O que há de comum nessa concepção plural de família e filiação é sua fundação na afetividade.
No Código Civil, identificamos as seguintes referências da clara opção pelo paradigma da filiação socioafetiva:
a) art. 1.593, para o qual o parentesco é natural ou civil, “conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. A principal relação de parentesco é a que se configura na paternidade (ou maternidade) e na filiação. A norma é inclusiva, pois não atribui a primazia à origem biológica; a paternidade de qualquer origem é dotada de igual dignidade;
b) art. 1.596, que reproduz a regra constitucional de igualdade dos filhos, havidos ou não da relação de casamento (estes, os antigos legítimos), ou por adoção, com os mesmos direitos e qualificações. O § 6º do art. 227 da Constituição revolucionou o conceito de filiação e inaugurou o paradigma aberto e inclusivo;
c) art. 1.597, V, que admite a filiação mediante inseminação artificial heteróloga, ou seja, com utilização de sêmen de outro homem, desde que tenha havido prévia autorização do marido da mãe. A origem do filho, em relação aos pais, é parcialmente biológica, pois o pai é exclusivamente socioafetivo, jamais podendo ser contraditada por investigação de paternidade ulterior;
d) art. 1.605, consagrador da posse do estado de filiação, quando houver começo de prova proveniente dos pais, ou, “quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos”. As possibilidades abertas com esta segunda hipótese são amplas. As presunções “veementes” são verificadas em cada caso, dispensando-se outras provas da situação de fato;
e) art. 1.614, continente de duas normas, ambas demonstrando que o reconhecimento do estado de filiação não é imposição da natureza ou de exame de laboratório, pois admitem a liberdade de acolhê-lo ou rejeitá-lo. A primeira norma faz depender a eficácia do reconhecimento ao consentimento do filho maior; se não consentir, a paternidade, ainda que biológica, não será admitida; a segunda norma faculta ao filho menor impugnar o reconhecimento da paternidade até quatro anos após adquirir a maioridade.
O STF tem decidido que há causa obstativa da expulsão de estrangeiro, quando houver a constituição de paternidade socioafetiva e não exclusivamente biológica. Como se lê no HC 114.901, o afeto é tido “como valor constitucional irradiador de efeitos jurídicos” e como novo paradigma do “núcleo conformador do conceito de família”.
O STJ orientou-se, firmemente, em diversas decisões, pela primazia da paternidade socioafetiva, precisando o espaço destinado à origem genética, o que coloca o Tribunal na vanguarda da jurisprudência mundial, nessa matéria. O STJ foi sistematizando os requisitos para a primazia da socioafetividade nas relações de família, notadamente na filiação, em situações em que a origem genética era posta como fundamento para desconstituir paternidades ou maternidades já consolidadas, podendo ser indicadas as seguintes decisões, proferidas no ano de 2009: REsp 932692, REsp 1067438, REsp 1088157. Em 2011, no REsp 1.000.356, confirmou-se a irrevogabilidade do reconhecimento voluntário da maternidade socioafetiva, ainda que procedida em descompasso com a verdade biológica. Em 2012 (REsp 1.059.214), afirmou o Tribunal a sedimentação do entendimento de que “a pretensão voltada à impugnação da paternidade não pode prosperar, quando fundada apenas na origem genética, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva”.
Nesses casos, subjaz o interesse eminentemente patrimonial dos interessados, máxime em relação à sucessão hereditária dos pretendidos genitores biológicos, a expensas das histórias de vida das pessoas envolvidas e dos estados de filiação consolidados no tempo. Quando ainda não se falava em socioafetividade, o STF, em 1970, já tinha consagrado “a interpretação de que interessados na herança não podem impugnar o registro civil de nascimento de filho do de cujus, declarado e assinado livremente por este e sua esposa, tanto mais quanto a esta reafirma a autenticidade do ato” (RTJ 53/131, relator Min. Aliomar Baleeiro).
Em 22-9-2016, o STF fixou tese de repercussão geral (Tema 622, RE 898.060) com o seguinte enunciado: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com efeitos jurídicos próprios”. Resulta dessa decisão, de aplicação geral pelos tribunais: a) o reconhecimento jurídico da parentalidade socioafetiva (abrangente tanto da paternidade quanto da maternidade); b) a impossibilidade de impugnação da paternidade ou maternidade socioafetivas que tenha por fundamento a origem biológica de reconhecimento superveniente; c) a possibilidade de conhecimento da origem biológica, tanto para fins de direito da personalidade quanto para os efeitos de parentesco biológico concorrente com o parentesco socioafetivo; d) a possiblidade de multiparentalidade, máxime na situação paradigma que serviu de base para a fixação da tese (RE 898.060): a mãe, o pai socioafetivo e o pai biológico; e) aplicabilidade exclusiva à parentalidade socioafetiva em sentido estrito, ou seja, posse de estado de filiação. A decisão do STF implica compartilhamento, por ambos os pais (ou mães), dos direitos e deveres existenciais (ex.: poder familiar e guarda compartilhada) e patrimoniais (ex.: alimentos e sucessão), orientando-se a resolução de eventuais conflitos pelo princípio do melhor interesse da criança ou adolescente. A admissão pelo STF da dupla parentalidade ou multiparentalidade foi surpreendente ante seu alcance alargado, pois a doutrina da parentalidade socioafetiva tinha por fito principal seu reconhecimento jurídico, que não poderia ser desafiado por investigação de paternidade (ou maternidade) cumulada com o cancelamento do registro civil, com fundamento exclusivamente na origem biológica, além da igualdade jurídica de ambas as parentalidades, sem prevalência a priori. A decisão do STF não se aplica à situação inversa: a paternidade ou maternidade biológicas, assim declaradas no registro civil do nascimento do filho, não poderão ser acrescentadas de parentalidade socioafetiva superveniente. Também não se aplica a decisão do STF às hipóteses de filiação decorrente de adoção, pois a lei determina a extinção dos vínculos biológicos exceto para impedimento matrimonial (ECA, art. 41), ou de inseminação artificial heteróloga, com autorização expressa do marido, em virtude de presunção legal (CC, art. 1.597, V), ou de dação anônima de sêmen.
Constitucionalização das Famílias e de Seus Fundamentos Jurídicos
O modelo igualitário da família constitucionalizada contemporânea se contrapõe ao modelo autoritário do Código Civil anterior. O consenso, a solidariedade, o respeito à dignidade das pessoas que a integram são os fundamentos dessa imensa mudança paradigmática que inspiraram o marco regulatório estampado nos arts. 226 a 230 da Constituição de 1988.
As constituições modernas, quando trataram da família, partiram sempre do modelo preferencial da entidade matrimonial. Não é comum a tutela explícita das demais entidades familiares. Sem embargo, a legislação infraconstitucional de vários países ocidentais tem avançado, desde as duas últimas décadas do século XX, no sentido de atribuir efeitos jurídicos próprios de direito de família às demais entidades familiares. A Constituição brasileira inovou, reconhecendo não apenas a entidade matrimonial, mas também outras duas explicitamente (união estável e entidade monoparental), além de permitir a inclusão das demais entidades implícitas.
O Estado liberal, hegemônico no século XIX no mundo ocidental, caracterizava-se pela limitação do poder político e pela não intervenção nas relações privadas e no poder econômico. Concretizou o ideário iluminista da liberdade e igualdade dos indivíduos. Todavia, a liberdade era voltada à aquisição, domínio e transmissão da propriedade, e a igualdade ateve-se ao aspecto formal, ou seja, da igualdade formal de sujeitos abstraídos de suas condições materiais ou existenciais. Mas a família, nas grandes codificações liberais burguesas, permaneceu no obscurantismo pré-iluminista, não se lhe aplicando os princípios da liberdade ou da igualdade, porque estava à margem dos interesses patrimonializantes que passaram a determinar as relações civis.
A posição jurídica subalterna da mulher, nas codificações liberais, está bem retratada na frase famosa pronunciada por Napoleão, intervindo na comissão que elaborou o Código Civil francês de 1804, para destacar o poder marital: “O marido deve poder dizer: senhora, você me pertence de corpo e alma; você não sai, não vai ao teatro, não vai ver essa ou aquela pessoa, sem o meu consentimento”.
As Constituições brasileiras reproduzem as fases históricas que o país viveu, em relação à família, no trânsito do Estado liberal para o Estado social. As Constituições de 1824 e 1891 são marcadamente liberais e individualistas, não tutelando as relações familiares. Na Constituição de 1891 há um único dispositivo (art. 72, § 4º) com o seguinte enunciado: “A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita”. Compreende-se a exclusividade do casamento civil, pois os republicanos desejavam concretizar a política de secularização da vida privada, mantida sob o controle da igreja oficial e do direito canônico durante a Colônia e o Império.
Em contrapartida, as Constituições do Estado social brasileiro (de 1934 a 1988) democrático ou autoritário destinaram à família normas explícitas. A Constituição democrática de 1934 dedica todo um capítulo à família, aparecendo pela primeira vez a referência expressa à proteção especial do Estado, que será repetida nas constituições subsequentes. Na Constituição autoritária de 1937 a educação surge como dever dos pais, os filhos naturais são equiparados aos legítimos e o Estado assume a tutela das crianças em caso de abandono pelos pais. A Constituição democrática de 1946 estimula a prole numerosa e assegura assistência à maternidade, à infância e à adolescência.
O Estado social, consolidado no século XX, caracterizou-se pela intervenção nas relações privadas e no controle dos poderes econômicos, tendo por fito a proteção dos mais fracos. Sua nota dominante é a solidariedade social ou a promoção da justiça social. O intervencionismo também alcança a família, com o intuito de redução dos poderes domésticos — notadamente do poder marital e do poder paterno —, da inclusão e equalização de seus membros, e na compreensão de seu espaço para a promoção da dignidade humana. No Brasil, desde a primeira Constituição social, em 1934, a família é destinatária de normas crescentemente tutelares, que assegurem a liberdade e a igualdade materiais, inserindo-a no projeto da modernidade emancipadora.
Se for verdade que entre o forte e o fraco é a liberdade que escraviza e a lei que liberta, a Constituição do Estado social de 1988 foi a que mais interveio nas relações familiares e a que mais as libertou. Consumou-se a redução ou mesmo eliminação, ao menos no plano jurídico, do elemento despótico existente no seio da família, no Brasil.
Ficou tão notável a influência do Estado na família que se cogitou da substituição da autoridade paterna pela estatal[19]. Há certo exagero nessa perspectiva. O sentido de intervenção que o Estado assumiu foi antes de proteção do espaço familiar, de sua garantia, mais do que sua substituição. Até porque a afetividade não é subsumível à impessoalidade da res publica.
A Constituição de 1988 proclama que a família é a base da sociedade. Aí reside a principal limitação ao Estado. A família não pode ser impunemente violada pelo Estado, porque seria atingida a base da sociedade a que serve o próprio Estado.
Há situações, entretanto, que são subtraídas da decisão exclusiva da família, quando entra em jogo o interesse social ou público. Nesses casos, o aumento das funções do Estado é imprescindível. Como exemplos, têm-se:
a) é social a obra de higiene, de profilaxia, de educação, de preparação profissional, militar e cívica;
b) é de interesse social que as crianças sejam alfabetizadas e tenham educação básica, obrigatoriamente;
c) é de interesse público a política populacional do Estado, cabendo a este estimular a prole mais ou menos numerosa. O planejamento familiar é livre, pela Constituição, mas o Estado não está impedido de realizar um planejamento global;
d) é de interesse social que se vede aos pais a fixação do sexo dos filhos, mediante manipulação genética;
e) é de interesse social que se assegure a ajuda recíproca entre pais e filhos e idosos e que o abandono familiar seja punido;
f) é de interesse público que seja eliminada a repressão e a violência dentro da família.
A Constituição de 1988 expande a proteção do Estado à família, promovendo a mais profunda transformação de que se tem notícia, entre as constituições mais recentes de outros países. Alguns aspectos merecem ser salientados:
a) a proteção do Estado alcança qualquer entidade familiar, sem restrições;
b) a família, entendida como entidade, assume claramente a posição de sujeito de direitos e deveres jurídicos;
c) os interesses das pessoas humanas, integrantes da família, recebem primazia sobre os interesses patrimonializantes;
d) a natureza socioafetiva da filiação torna-se gênero, abrangente das espécies biológica e não biológica;
e) consuma-se a igualdade entre os gêneros e entre os filhos;
f) reafirma-se a liberdade de constituir, manter e extinguir entidade familiar e a liberdade de planejamento familiar, sem imposição estatal;
g) a família configura-se no espaço de realização pessoal e da dignidade humana de seus membros.
Caio Mário da Silva Pereira adverte para o novo sistema de interpretação do direito de família, em que “destacam-se os princípios constitucionais e os direitos fundamentais, os quais se impõem aos interesses particulares, prevalecendo a constitucionalização do direito civil”, muito mais exigente com o advento do Código Civil de 2002. Segundo o autor, “ao mesmo tempo em que os direitos fundamentais passaram a ser dotados do mesmo sentido nas relações públicas e privadas, os princípios constitucionais sobrepuseram-se à posição anteriormente adotada pelos Princípios Gerais do Direito” [20].
As revolucionárias transformações promovidas pela Constituição na concepção, na natureza e nas atribuições das relações familiares e, consequentemente, no direito de família, puseram o Brasil na dianteira da refundação dos novos institutos jurídicos, pelo trabalho criativo da doutrina civilista. Em comparação, a França, país que sempre se destacou pelas inovações no direito de família, apenas em 2005, com a lei de 4 de julho, extinguiu definitivamente a discriminação entre filhos legítimos e ilegítimos, que deixou de existir no Brasil desde 1988, com o § 6º do art. 227 da Constituição.
A constitucionalização das famílias apresenta alguns caracteres comuns nas Constituições atuais: a) neutralização do matrimônio; b) deslocamento do núcleo jurídico da família, do consentimento matrimonial para a proteção pública; c) potencialização da filiação como categoria jurídica e como problema, em detrimento do matrimônio como instituição, dando-se maior atenção ao conflito paterno-filial que ao conjugal; d) consagração da família instrumental no lugar da família-instituição; e) livre desenvolvimento da afetividade e da sexualidade[21].
Liberdade, justiça e solidariedade são os objetivos supremos que a Constituição brasileira (art. 3º, I) consagrou para a realização da sociedade feliz, após os duzentos anos da tríade liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa. Do mesmo modo são os valores fundadores da família brasileira atual, como lugar para a concretização da dignidade da pessoa humana de cada um de seus membros, iluminando a aplicação do direito.
[1]Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, v. 7, p. 174, 175, 179, 192 e 193.
[2] CORNU, Gérard. Droit civil: la famille. Paris: Montchrestien, 2003, p. 26
[3]A cidade antiga. Trad. Jonas Camargo. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, p. 29-26.
[4]Fontes e evolução do direito civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p 52.
[5] El derecho antigo. Trad. A. Guerra. Madrid: Alfredo Alonso, 1893, p. 89.
[6] BATTES, Robert. Sentido e limites da compensação de aquestos. Porto Alegre: SAFE, 2000, p. 25.
[7] A transformação da intimidade. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Unesp, 1993, p. 146.
[8] CARBONNIER, Jean. Droit et passion du droit. Paris: Forum/Flammarion, 1996, p. 208.
[9] ROUDINESCO, Elisabeth. A família em desordem. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 198.
[10]Op cit. V. 7, p. 172.
[11] A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trad. Abgnar Bastos. Rio de Janeiro: Ed. Calvino, 1944, p. 80-5.
[12] Liberdade e família. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, 1980, p.35-6.
[13] A teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Centelha, 1981, p. 90-2.
[14] BELOFF, Mary. Los derechos del niño en el sistema interamericano. Buenos Aires: Ed. del Puerto, 2004, p. 35.
[15] SAVIGNY, Friedrich Carl von. Sistema del diritto romano attuale. Trad. Vittorio Scialoja. Torino: UTET, 1886. v. 1, p. 345.
[16] LÔBO, Paulo. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese, n. 19, p. 133-56, ago./set. 2003.
[17]Les métamorphoses économiques et sociales du droit civil d’aujourd’hui. Paris: Dalloz, 1964. v. 1, p; 153-182.
[18] DIDIER JR., Fredie. A recusa da parte a submeter-se a exame médico. O art. 232 do Código Civil e o enunciado 301 da súmula da jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça. Revista de Direito Privado, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 25, p.177/180, jan./mar. 2006, p. 177.
[19] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Atualizadores: Maria Celina Bodin de Moraes (v. 1) e Tânia da Silva Pereira (v. 5). Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. 5, p. 30.
[20] Apresentação. In: Direito de família e o novo Código Civil. 4. ed. Rodrigo da Cunha Pereira e Maria Berenice Dias (Orgs.). Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. VIII.
[21] MORENO, Jose Luis Serrano. El efecto familia. Granada: TAT, 1987, p. 74-8.
Veja também:
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