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Ruptura do testamento pela superveniência de herdeiro necessário, de Francisco Pereira de Bulhões Carvalho

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Ruptura do testamento pela superveniência de herdeiro necessário, de Francisco Pereira de Bulhões Carvalho

REVISTA FORENSE 163

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16/05/2024

SUMÁRIO: 1ª PARTE – Art. 1.750 do Cód. Civil. Revogação tácita do testamento pelo reconhecimento ulterior do filho natural preexistente. 2ª PARTE – Art. 1.752 do Cód. Civil. Direito do herdeiro necessário à totalidade da herança.

Tem sido objeto de acirrada controvérsia a questão relativa a romper-se ou não o testamento em tôdas suas disposições, no caso de reconhecimento, posterior ao testamento, de filho natural que o testador já tinha ao testar.

A matéria pode ser encarada sob dois aspectos diferentes: 1º) um, resultante da aplicação do art. 1.750 do Cód. Civil, que se coloca no ponto de vista da intenção presumida do testador, ao testar; 2º) outro, oriundo do texto do art. 1.752 do mesmo Código, dispositivo êste da mais alta importância histórica e ainda não devidamente estudado, e que se coloca do ponto de vista do direito do herdeiro necessário, salvo, deserdação, a todos os bens deixados pelo testador, e não apenas à legítima.

Consideremos cada um dêsses dois pontos.

1ª PARTE – Art. 1.750 do Cód. Civil. Revogação tácita do testamento pelo reconhecimento ulterior do filho natural preexistente

Determina o art. 1.750 do Código:

“Sobrevindo descendente sucessível ao testador, que não o tinha, ou não o conhecia, quando testou, rompe-se o testamento em tôdas as suas disposições, se êsse descendente sobreviver ao testador”.

Como observou CLÓVIS BEVILÁQUA, dois são os casos em que se dá a ruptura do testamento, segundo êsse dispositivo: 1°) se o testador não tinha descendente sucessível, quando testou; 2º) se o testador tinha descendente sucessível, porém não o conhecia (parecer na “Rev. dos Tribunais”, vol. 139, pág. 449).

Comecemos pelo estudo do primeiro dêsses dois casos.

Que se deverá entender como “descendente sucessível”, que o testador possa ter, ao testar?

A resposta está no art. 1.605 do Código Civil:

Para os efeitos da sucessão, aos filhos legítimos se equiparam os legitimados, os naturais reconhecidos e os adotivos”.

Daí o comentário de CLÓVIS: “São herdeiros, na classe dos descendentes, além dos filhos legítimos: os legitimados que, em tudo, se equiparam aos legítimos (art. 352), os naturais reconhecidos e os adotivos” (“Código Civil Comentado”, obs. I ao art. 1.605).

“O texto refere-se a “descendentes sucessíveis” (observou também JOÃO LUÍS ALVES) e como tais se entendem os filhos legítimos, legitimados, reconhecidos ou adotivos (art. 1.605) e seus descendentes nas mesmas condições…” (“Código Civil Anotado”, com. ao artigo 1.750).

Ora, se os filhos naturais sòmente se tornam sucessíveis com o reconhecimento, claro é que, sobrevindo êste ao testamento, rompe-o necessàriamente.

É a conclusão lógica a que imediatamente chegou o próprio CLÓVIS BEVILÁQUA, ao comentar o art. 1.750: “Rompe-se o testamento (diz êle), segundo o art. 1.750: … c) pela legitimação do filho, pelo reconhecimento e pela adoção posteriores” (“Código Civil Comentado”, vol. 6, pág. 229, obs. 2ª ao art. 1.750).

Igual é o ensinamento do mesmo escritor no seu “Direito de Sucessões” (ed. 1932, pág. 356, § 100), com o qual concorda a generalidade dos comentadores do nosso Cód. Civil.

Assim também FERREIRA ALVES (“Manual do Código Civil”, vol. XIX, página 395, nº 320), ITABAIANA (“Direito de Sucessões”, § 100), MARTINHO GARCÊS (“Dos Testamentos e Sucessões”, página 108), SPENCER VAMPRÉ (“Código Civil”, arts. 355 e 1.605), CARLOS MAXIMILIANO (“Direito das Sucessões”, nº 1.346), CARVALHO SANTOS (“Código Civil Interpretado”, vol. 24, pág. 249).

É verdade que se tem procurado toldar a limpidez dessa conclusão com o argumento de que o reconhecimento voluntário ou a sentença proferida em ação de investigação de paternidade têm simples caráter declaratório e não atributivo da paternidade. Teriam por isso efeito retroativo a partir do nascimento do filho e, mesmo, a partir do dia de sua concepção, se o beneficiam (PLANIOL, RIPERT et ROUAST, “Traité Pratique de Droit Civil”, II, nº 851; PLANIOL, “Droit Civil”, nº 1.486; COLIN et CAPITANT, “Cours de Droit Civil”, I, 1º, nº 261; JOSSERAND, “Cours de Droit Civil”, I, nº 1.201).

Justifica-se êsse efeito retroativo com a consideração de que o reconhecimento é um meio de prova para constatar um fato anterior, qual seja a filiação (PLANIOL et RIPERT, loc. cit.).

Não devemos, entretanto, perder de vista que, como escrevia LAFAYETTE, “a paternidade é por sua natureza oculta e incerta; e, pois, não pode ser firmada em prova direta, como a maternidade. Daí a necessidade de fundá-la em uma probabilidade”, que a lei sòmente eleva à categoria de presunção legal se fôr correlata a um casamento (“Direito de Família”, § 104).

Fora do casamento, “a filiação paterna (já o dizia CORREIA TELES), sendo quase impossível de provar-se perfeitamente, os doutôres se satisfazem com a prova imperfeita, qual a que resulta de indícios e presunções, contanto que outros indícios contrários não reduzam o caso a uma perfeita incerteza” (“Doutrina das Ações”, apud juiz AMÉRICO SALGUEIRO AUTRAN, sentença de 14 de junho de 1930, in “Arq. Judiciário”, vol. 15, pág. 114).

O reconhecimento, portanto, por sua natureza, é um meio de prova meramente conjetural para verificação dum fato por natureza incerto, qual seja a paternidade ilegítima.

Por êsse motivo, os próprios autores que acolhem a regra da retroatividade do reconhecimento aconselham não se dê à mesma um “efeito extremado”, segundo expressões de PLANIOL et RIPERT (ob. e vol. cits., nº 851).

Il ne faut pas donner à cette règle une porté contraire au bon sens” (adverte DE PAGE, “Traité de Droit Civil Belge”, vol. I, nº 1.141).

É assim, por exemplo, “evidente que as prerrogativas e encargos do pátrio-poder não começarão senão do dia do reconhecimento”.

Da mesma forma “não haveria razão para anular o matrimônio dum filho natural, menor de idade, que venha a ser reconhecido depois de sua celebração, a pretexto de não ter obtido a autorização do pai que o reconheceu posteriormente ao matrimônio” (DE PAGE, loc. cit.; PLANIOL et RIPERT, loc. cit.).

Igual restrição ao princípio da retroatividade ocorre quando estejam em jôgo direitos adquiridos por terceiros, como no caso de sucessões já abertas ao tempo em que a investigação de paternidade passou a ser permitida, segundo jurisprudência assente de há muito pelo egrégio Supremo Tribunal Federal (ARNOLDO MEDEIROS DA FONSECA, “Investigação de Paternidade”, nº 305 e acórdãos que cita).

Ora, o art. 1.750 do Cód. Civil contém precisamente uma dessas exceções expressamente estatuídas à regra da retroatividade. Determina êle que “sobrevindo” descendente sucessível ao testador, que não o tinha ao testar, rompe-se o testamento em tôdas as suas disposições.

Se o testador, ao testar, não tinha filho natural sucessível, a superveniência dêste pelo reconhecimento traz a ruptura do testamento, como está perfeitamente claro no citado dispositivo.

E o motivo da não-retroatividade dos efeitos do reconhecimento no caso de testamento prende-se ao fato de que o legislador, no art. 1.750, teve em vista o estado e espírito com que o testador, elaborou o seu testamento e não os simples direitos eventuais que, naquela ocasião, pudessem ter seus possíveis filhos naturais.

O testamento sempre foi, em nosso direito, uma das formas solenes de reconhecimento de filhos naturais.

Se, no momento sagrado de testar, o testador não reconhece filho natural então existente, exprime pùblicamente, senão sua repulsa a tal paternidade, pelo menos a sua não-aceitação e o desconhecimento legal de sua existência.

Se, mais tarde, feito o testamento, vem a reconhecer como seu filho natural uma pessoa já existente ao tempo do testamento, claro está que em seu estado de espírito ocorrerá aquela “mudança radical” invocada por CLÓVIS BEVILÁQUA para justificar o preceito do art. 1.750 do Cód. Civil em relação a tôda a distribuição de bens feita pelo testador, antes de firmada no seu espírito a convicção e proclamada por êle a existência de algum filho.

Vamos, entretanto, admitir, para argumentar, que o reconhecimento da paternidade tenha efeito retroativo irrestrito, de sorte a dever ser considerado cessível, em face à validade dum testamento, um descendente sòmente mais tarde reconhecido.

Ainda assim, o legislador foi precavido ao redigir o art. 1.750.

Não basta que o descendente já exista e seja sucessível na ocasião do testamento para que êste tenha validade. É preciso também que o testador “conheça” tal pessoa, não apenas fisicamente, como também na qualidade de seu “descendente sucessível”.

Ora, como pode o testador “conhecer” a existência dum filho reconhecido se o reconhecimento dêsse filho sòmente venha a ocorrer mais tarde?

Por mais retroativos que sejam os efeitos do reconhecimento em relação ao passado, não poderá fazer com que o testador, ao testar, preveja que, no futuro, depois do testamento, viria a reconhecer determinado indivíduo como seu filho.

Há uma contradictio in adjecto inadmissível em se pretender possa o testador conhecer, ao testar, um reconhecimento de filiação que sòmente veio a ocorrer muito depois do testamento.

Para elidir essa dificuldade, sustentam alguns autores bastar que o testador trate pùblicamente alguém como seu filho natural para que se deva entender que o “conheça” como filho, embora sem lhe dar o reconhecimento em forma legal. Há ainda quem, como o eminente ministro HAHNEMANN GUIMARÃES, chegue a sustentar bastar que o testador saiba que alguém pretenda ser seu filho natural, para que esta filiação já não lhe seja ignorada. Poderá então não aceitar a paternidade, tem, porém, pelo menos notícia da controvérsia sôbre a filiação e “num caso dêstes não se deve romper o testamento” (voto em ac. de 9 de novembro de 1948, in “Arq. Judiciário”, vol. 91, pág. 411).

Semelhante ponto de vista, data venia, fere diretamente o texto do art. 1.750 do Cód. Civil, que, para que não se rompa o testamento pela superveniência de descendente sucessível, exige, não apenas que alguém se apresente como possível descendente, mas que efetivamente já seja descendente sucessível naquela data, como tal conhecido pelo testador.

Consideremos, entretanto, com mais vagar, a modalidade mais moderada da opinião acima exposta, isto é, a dos que consideram bastar a posse do estado de filho natural na data do testamento, para que se entenda que o testador conhece a existência dêsse filho.

Para provarmos que essa doutrina é incompatível com o nosso Cód. Civil, basta atentar para o seguinte: Quando estava sendo elaborado o projeto do Código, CLÓVIS BEVILÁQUA incluiu a posse de estado como sendo um dos casos, não de reconhecimento legal do filho, mas que poderia servir de fundamento para proposição de ação de investigação de paternidade (art. 427, nº I, do Projeto).

Pois bem: o Senado, apesar de todos os protestos de CLÓVIS, suprimiu êsse dispositivo, por entender não haver posse de estado em geral, e, muito menos, de filho natural (parecer de CLÓVIS, perante a C. E. do Senado, apud FERREIRA COELHO, “Código Civil”, vol. 26, pág. 197).

E, diga-se de passagem, que razão tinha o Senado quando assim opinava. Com efeito, que significam de concreto os requisitos de nomen, tractatus e fama?

O nome, pelas nossas leis o filho não reconhecido herda de sua mãe. O sustento e a educação, como filho podem ser deferidos a um mero protegido estranho. A voz pública é contraditória, versátil e traiçoeira. Por isso, algumas legislações exigem também os requisitos de publicidade, continuidade e longa duração, não contraditados por nenhum fato (DE PAGE, 1, nº 250; ARNOLDO MEDEIROS, nº 183).

Pela dificuldade de apanhar alguma coisa de certo e concreto em indícios tão fugidios, o nosso legislador repeliu a posse de estado como fundamento de ação de investigação, exigindo a prova de concubinato, rapto da mulher, relações sexuais ou escrito paterno reconhecendo a paternidade (art. 363, ns. I a III).

Obedecendo a êsse nosso sistema legal, o Supremo Tribunal Federal, como no caso da menor Crisolina, tem negado que a posse de estado possa constituir sequer elemento de prova da filiação ilegítima (ac. de 23 de agôsto de 1924, citado por ARNOLDO MEDEIROS, ob. cit., número 188).

Uma corrente mais moderada tem admitido apenas que a posse de estado valha como adminículo de prova desde que se alie a um fundamento legal de prova, como, por exemplo, o das relações sexuais.

Nesse sentido, escreve CARVALHO SANTOS: “A posse de estado só por si não constitui motivo capaz de legitimar a ação de investigação de paternidade. Mas, como proficientemente demonstrou MENDES PIMENTEL, é uma parte adminicular (“REVISTA FORENSE”, vol. 31, pág. 175)” (vol. 5, pág. 489; MEDEIROS, nº 187).

Ora, se, pelo texto do art. 363 do Cód. Civil, a posse de estado não constitui fundamento nem mesmo para a proposição de ação de investigação de paternidade, como será possível admitir-se que para o efeito previsto no art. 1.750 do mesmo Código, valha pràticamente como reconhecimento eficaz e válido da mesma paternidade, a ponto de excluir a ruptura do testamento em virtude de reconhecimento formal posterior?

Consideremos, além disso, o valor da posse de estado mesmo para as legislações que, diversamente da nossa, a admitem como fundamento de ação de investigação de paternidade ilegítima.

Dentro dêsse sistema, a posse de estado não confere imediata certeza da paternidade ilegítima. Dá apenas ação para esta ser investigada.

Ora, nas ações há duas faces a considerar: a) pretensão de direito da parte do demandante: “basta, entretanto, que exista a aparência duma relação jurídica, pois que afinal a sentença é que há de declarar se, na pretensão do autor, há, ou não, um direito” (SPENCER VAMPRÉ, ob. cit., pág. 134, § 83); b) resistência da parte adversa.

Dando “ação”, portanto, a lei presume incerteza da situação alegada pelo demandante e resistência do alegado pai.

Isso mesmo transparece da redação usada pelo art. 363 do Cód. Civil quando dá ao filho ilegítimo ação para demandar o reconhecimento: se, quando foi concebido, a mãe estava concubinada com o pretendido pai; ou se a concepção coincidiu com o rapto da mãe com o “suposto pai”; ou se coincidiu com as relações sexuais fortuitas entre ambos; ou, enfim, se existe escrito daquele “a quem se atribui a paternidade” reconhecendo-a expressamente.

Por isso, a situação do filho ilegítimo não reconhecido diverge radicalmente da do filho legítimo.

Êste último goza da presunção de legitimidade oriunda da vigência do casamento e que não é destruída nem mesmo pela prova do adultério da mulher: “pater is est quem nuptiae demonstrant“.

O filho ilegítimo, ao contrário, antes da sentença final da ação de investigação, tem paternidade incerta e desconhecida. Seu pai é apontado na ação como simplesmente “pretenso” ou “suposto”. Mesmo provado qualquer dos requisitos enumerados no art. 363 do Cód. Civil, não se segue presunção legal alguma de paternidade, admitindo-se, ao contrário, a contestação do pretendido (e não presumido) pai, que poderá alegar, entre outras coisas, o concurso de outros homens na ocasião, da concepção do indigitado filho: “exceptio plurium concubentium“.

Por isso, diz magistralmente o artigo 302 do Cód. Civil suíço:

La filiation illégitime résulte, à l’égard de la mère, du seul fait de la naissance. A l’égard du père, elle doit être établie par une réconnaissance ou un jugement“. (“A filiação ilegítima resulta, em relação à mãe, do só fato do nascimento. Em relação ao pai, ela deve ser estabelecida por um reconhecimento ou uma sentença”.)

Tal situação de incerteza da filiação ilegítima prevalece, não sòmente antes da sentença final em ação de investigação, senão também antes que venha ocorrer reconhecimento voluntário formal por parte do apontado pai.

Com efeito, para que alguém possa ser considerado legalmente como “descendente” de outrem, não basta que o pretendido pai o afirme por escrito (art. 363, nº III), nem muito menos ainda que se afirme posse de estado. Se isso fôsse suficiente: a) consideraria a lei o beneficiado pelo escrito como descendente reconhecido, em vez de limitar-se a dar-lhe “ação” para demandar; b) seria inútil exigir escritura pública, cercada de formalidades para que o reconhecimento tivesse efeitos legais (art. 357 do Cód. Civil).

Se assim procede, é não só para dar maior autenticidade a um ato tão grave, como para tornar obrigatória uma maior reflexão prévia sôbre o assunto, e evitar surprêsas, resultantes dum juízo apressado sôbre fato, por natureza, obscuro.

É esta precisamente a lição de LAFAYETTE: “Exige a lei escritura pública “para cercar o reconhecimento das solenidades de ato autêntico, no intuito de revesti-lo do caráter de plena certeza e de evitar a surprêsa e a irreflexão em um passo de tanta gravidade” (“Direito de Família”, ed. 1918, pág, 256, § 122).

MOURLON, citado por LAFAYETTE, diz: “As solenidades do ato autêntico têm uma coisa de grave e respeitável que, despertando a atenção das partes, lhes faz compreender a importância do ato que vão praticar” (“Repétit. écrit.”, 1, 7, nº 949).

Antes de fazer passar escritura de reconhecimento, e, mesmo, antes de considerar outrem como filho, o presumível pai não poderá deixar de refletir sôbre as circunstâncias que rodearam a concepção do possível filho, refutando as suspeitas que surjam, até que chegue à convicção necessária à resolução de assumir legalmente a sua paternidade.

O reconhecimento é, assim, o têrmo final dum minucioso exame dos fatos; enquanto procede a êsse exame, aquêle que mais tarde se vai declarar pai hesita e tem dúvidas; dessa hesitação e dessa dúvida, assim como resultou afinal a convicção da paternidade, declarada solenemente em escritura pública ou testamento, poderia ter resultado a de que não era pai.

Seria absurdo pretender que aquêle que ainda não admitiu essa paternidade, que a lei presume ainda ter dúvidas a respeito, seja considerado como já tendo certeza da paternidade na própria ocasião em que está evidentemente incerto, já que omite o nome do pretenso filho ao livrar seu testamento, que é precisamente uma das formas legais que lhe possibilitariam fazer seu reconhecimento.

A interpretação contrária do art. 1.750 funda-se especialmente em pareceres de FILADELFO AZEVEDO e CLÓVIS BEVILÁQUA.

O primeiro confessa-se corifeu dessa orientação, que rompia com a tradição da jurisprudência e proclama não se revogar o testamento mesmo quando o testador nutra “dúvidas, fortes ou débeis, quanto à paternidade que lhe é atribuída”.

Êsse parecer, inserto como voto número 510 do livro “Um Triênio de Judicatura”, foi repelido, na ocasião, pelo egrégio Supremo Tribunal Federal, figurando no mesmo como voto vencido (ac. de 15 de outubro de 1945, in “Arquivo Judiciário”, vol. 80, pág. 35), embora tenha mais tarde chegado a triunfar em decisões isoladas (ac. cit. de 9 de novembro de 1948, in “Arq. Judiciário”, volume 91, pág. 407).

Parece-nos, entretanto, data venia, ter ficado demonstrado que tal orientação fere o texto expresso do art. 1.750 e a própria lógica, dado que não se pode sustentar que alguém “conheça” a existência de herdeiro necessário, quando êle próprio não admita ou repila a existência de tal herdeiro.

Costuma também ser citado um parecer que CLÓVIS BEVILÁQUA incluiu na obs. 4ª, dos seus comentários ao artigo 1.750 (“Código Civil Comentado”, vol. 6, ed. 1932, pág. 230), onde diz: “Entrou em dúvida se o testamento feito pelo amásio, no período da gravidez conhecida por obra dêle, se romperia pelo reconhecimento do filho da concubina, feito após nascimento. Respondi que não, porque a existência do filho era conhecida do pai natural, e a ruptura do testamento pressupõe o desconhecimento da existência do herdeiro, qualidade que estava na mente do testador quando redigiu o testamento, pois que lhe era conhecida a gravidez da concubina, e era intenção sua reconhecer o filho, tanto que o reconheceu ao nascer”.

Ninguém põe em dúvida o imenso merecimento jurídico de CLÓVIS BEVILÁQUA, um dos nossos maiores jurisconsultos de todos os tempos. Mas isso não quer dizer que tenha sido infalível, nem que suas “respostas” devam ter fôrça de lei, como no tempo dos romanos. A prova é que êle afirmava, por exemplo, que o filho ilegítimo não tinha ação contra os herdeiros do suposto pai, depois dêste falecido, e o contrário é que tem sido sempre decidido pelos tribunais.

No caso em exame, o parecer colide manifestamente, não já apenas com o texto do art. 1.750 do Cód. Civil, como também com o do art. 4° do mesmo Código, que determina:

“A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.

Acolheu êsse dispositivo a antiga noção romana de que o embrião humano antes do nascimento não tem personalidade civil, não é capaz nem de direito nem de obrigações, não pode ser considerado filho de quem quer que seja e nem mesmo pode ser chamado homem.

É uma simples parte das vísceras maternas: “O parto, antes de ser dado à luz, é considerado como uma porção da mulher ou de suas vísceras”. “Partus, enim, antequam edatur, mulieris portio est, vel viscerum” (D., 25, 4, fr. 1, § 1°).

“O feto ainda não dado à luz (dizia PAPINIANO) não goza das condições de homem”. “Partus, nondum editos, homo non recté fuisse dicitur“.

“Os que nascem mortos (escrevia PAULO) não se consideram nem nascidos nem procriados, porque nunca puderam ser chamados de filhos”. “Qui mortui nascuntur, peque nati neque procreati videntur: quia nunquam liberi appellari potuerunt” (D., 50, 16, fr. 129).

Se, portanto, alguém, ao fazer seu testamento, sabe que sua mulher ou sua concubina está grávida, não se pode pretender que êle, já então, tenha um filho, e muito menos ainda um filho sucessível. E se não tem tal filho, por não existir, não poderia conhecê-lo.

O que apenas lhe é possível conhecer são os sinais de probabilidade ou de certeza da gravidez de sua companheira. Saberá assim da existência dum embrião, que nada mais será, então, do que uma parte das vísceras maternas.

Sòmente mais tarde, depois de feito o testamento, é que êsse embrião, plenamente desenvolvido, poderá vir a nascer com vida. E, a partir dêsse nascimento, é que adquirirá personalidade civil e poderá tornar-se descendente sucessível do testador.

É certo que, ocorrendo êsse nascimento com vida, admite-se que o comêço da personalidade civil do recém-nascido retroaja à época da concepção, mas só no que tange à aquisição dos direitos do nascituro, e jamais em seu prejuízo.

Isso é expresso pelo Código, com as palavras “a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.

Essa regra também nos veio do direito romano: “Aquêle que está no útero (escrevia PAULO) é atendido como se estivesse entre as coisas humanas quando se tratar de suas próprias conveniências; do contrário, antes de nascer, de maneira nenhuma favoreça a terceiro”. “Qui in utero est, perinde ac si in rebus humanis esset, custoditur, quoties de commodis ipsius partus quaeritur: quamquam alii, antequam nasca ter, nequaquum prosit” (D., 1, 5, fr. 7).

E, noutro fragmento, repete: “Quando dizemos que aquêle que se espera nascer é tido como nascido, sòmente é verdade quando se tratar do seu próprio interêsse: para outra pessoa, porém, não aproveita, senão depois de nascido”. “Quod dicimus, eum qui nasci, speratur, pro suverstite esse: tum verem est, quem, de ipsius jure quaeritur: aliis autem noa prodest, nisi natus” (D., 50, 16, fr. 231).

É o que ficou sintetizado no antigo brocardo: “Nasciturua pro jam natus habetur, si de commodis ejus agitur“. “O nascituro é considerado como já tendo nascido desde que se trate de seu interêsse”.

El nacimiento determina la personalidad (dispõe modernamente o Cód. Civil espanhol, art. 29); pero el concebido se tiene por nacido para todos los efectos que le sean favorables, siempre que nasca con las condiciones que expresa el articulo siguiente“.

É o que o nosso Código exprime, com as palavras “a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.

A antiga regra romana, adotada pelo nosso Código, com efeito, como mostra DE PAGE, “não se aplica senão quando se trata de fazer adquirir direitos à criança, e não para lhe impor obrigações. Não é admitido senão em seu interêsse (quoties de commodis ejus agitur)” (volume 1, nº 236).

“Todos os efeitos da, filiação reconhecida (ensinaram por isso PLANIOL et RIPERT) produzem-se a contar dêsse dia (do nascimento) e ainda desde o dia da concepção se são favoráveis ao filho” (“Traité”, vol. II, nº 851; BAUDRY LACANTINERIE, 1, nº 289).

Quando, portanto, uma criança nasce com vida e é reconhecida como filho, os efeitos dêsse reconhecimento sòmente retroagem até a concepção quando resulte em benefício da criança, e não para seu exclusivo prejuízo, como seria evitar a ruptura integral de testamento em que tenha sido emitida e beneficiadas terceiras pessoas.

Não tem razão, portanto, CLÓVIS quando admite que não se rompa um testamento feito ao tempo em que o testador tinha uma concubina em estado de gravidez e que tenha mais tarde dado à luz uma criança que o testador venha a reconhecer.

Nem tampouco é aceitável que o testador tenha tido em mente reconhecer mais tarde o filho, o que só veio afazer depois do mesmo nascido.

Se o testador, ao testar, tivesse tido essa intenção, poderia desde logo reconhecer o filho apenas concebido, nos têrmos do art. 357 do Cód. Civil, e mesmo instituí-lo herdeiro no próprio testamento, ex vi do art. 1.718 do mesmo Código.

Crítica semelhante pode ser feita ao parecer em que CLÓVIS admite que alguém possa “conhecer” como seu filho natural pessoa que não “reconhece” como seu filho:

Tal concepção poderia impressionar à primeira vista na penumbra duma reflexão menos intensiva.

Submetida, porém, ao foco luminoso duma análise atenta e minuciosa, não tarda a desvanecer-se. Ver-se-á, então, como demonstramos, ser impossível precisar a natureza e extensão dêsse alegado “conhecimento”, seus característicos de certeza e seu exato fundamento jurídico.1

2ª PARTE – Art. 1.752 do Cód. Civil. Direito do herdeiro à totalidade da herança.

Na parte anterior estudamos o artigo 1.750 do Cód. Civil, relativo à ruptura do testamento pela modificação presumida da vontade do testador.

Agora, passamos a considerar a questão sôbre um outro aspecto previsto no art. 1.752: o do direito do herdeiro necessário à totalidade da herança, da qual sòmente pode ser privado mediante deserdação.

Reza êsse art. 1.752:

“Não se rompe, porém, o testamento, em que o testador dispuser da sua metade, não contemplando os herdeiros necessários, de cuja existência saiba, ou deserdando-os, nessa parte, sem menção de causa legal (arts. 1.741 e 1.742)”.

O dispositivo que acabamos de citar ainda não foi apreciado, pelos comentadores do nosso Código, dentro de sua devida importância.

Basta dizer que CLÓVIS BEVILÁQUA o considerou “ocioso”. depois que o artigo 1.721 havia permitido ao testador dispor da sua metade disponível (“Código Civil Comentado”, obs, ao art. 1.752).

FILADEELFO AZEVEDO também o entende “escusadamente redigido” (“Um Triênio de Judicatura”, pág. 71).

Para CARLOS MAXIMILIANO, só tem êle um efeito prático: servir de contrapartida aos arts. 1.750 e 1.751. Segundo êstes, se o testador ignorava ter herdeiros necessários, rompe-se todo o testamento. Em contrapartida, se sabia da existência dêsses sucessores forçados, vale o testamento na sua metade disponível (“Direito das Sucessões”, nº 1.350).

FERREIRA ALVES critica àsperamente êsse dispositivo. Entende êle ser “de estranhar” que o mesmo atribua ao testador o direito de deserdar na quota disponível os herdeiros necessários, sem menção de causa legal. Como deserdação, segundo êsse escritor, sòmente pode entender-se a privação da legítima, e não a da quota disponível (“Manual do Código Civil”, vol. XIX, nº 321, pág. 397).

Essa mesma opinião foi sustentada por JOÃO LUÍS ALVES (“Código Civil Anotado”, ed. 1926, pág. 1.281, com. ao art. 1.752).

Entretanto, é precisamente nesse ponto criticado por FERREIRA ALVES e por JOÃO LUÍS ALVES que se encontra o elemento característico e fundamental do art. 1.750, cuja realidade e importância passou despercebida àqueles eminentes juristas e em geral pelos estudiosos do nosso direito.

Parece-nos, entretanto, que é o momento de “descobrir”2 o art. 1.752, em seu verdadeiro alcance, propondo-lhe uma interpretação nova que lhe atribua a posição de realce que, como vamos ver, lhe cabe dentro do sistema do nosso Código Civil.

Com efeito, conforme passaremos a demonstrar, não foi por simples inadvertência ou êrro de técnica que o nosso legislador se referiu a deserdação da meação disponível do testador.

Fê-lo em obediência não sòmente ao sistema por êle adotado sôbre a extensão do direito do herdeiro necessário em relação à totalidade da herança, como também filiando-se a uma velha tradição de nosso direito que, através das Ordenações, remonta ao direito romano.

Comentando o art. 1.176 do Cód. Civil, observou CLÓVIS BEVILÁQUA que, “pelo sistema do Cód. Civil, há uma espécie de comunhão familial, que transparece em vários institutos e dispositivos”. Um dêles é êsse art. 1.176 que, em defesa das legítimas, em vida, determina: Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento” (“Código Civil Comentado”, obs. 4ª ao art. 1.176).

Essa comunhão familial reflete-se de maneira mais vigorosa sôbre a metade dos bens do que tenha herdeiro necessário, e que deverão constituir sua legítima, sôbre a qual terá a propriedade de pleno direito, ao abrir-se a sucessão (artigo 1.721 do Cód. Civil).

Por isso, a doação de pais a filhos importa adiantamento de legítima (artigo 1.171) e deverão ser trazidos à colação para igualar as legítimas os bens doados (art. 1.785).

Mas também sôbre os demais bens, incluídos os que pertenceriam à quota disponível do que possua herdeiro necessário, o Código reconhece a existência da dita comunhão familial mais ou menos definida.

Bem expressivo a êsse respeito é o art. 460 do Código, onde êste estabelece que “o pródigo só incorrerá em interdição, havendo cônjuge ou tendo ascendentes ou descendentes legítimos, que a promovam”.

Como mostra PONTES DE MIRANDA, “a interdição por prodigalidade ainda tem por fim resguardar os direitos eventuais de certos herdeiros necessários, o que evidencia ser a curatela dos pródigos sobrevivência de comunismo familiar” (“Tratado de Direito de Família”, ed. 1947, § 289, 3).

Também o art. 1.132, ao vedar que os ascendentes vendam aos descendentes sem que os outros descendentes expressamente consintam, não se limita a mandar fazer a redução dessa venda à metade disponível do vendedor, à semelhança do que ocorre em relação à doação inoficiosa. Torna nula tôda a venda, incluindo, portanto, a parte que o vendedor poderia dispor e doar livremente em vida ou por testamento.

Da mesma forma, se, na partilha feita em vida pelo pai, fôr prejudicada a legítima de algum dos herdeiros necessários, faz-se a redução. Se, porém, houver sido omitido algum filho, ou êste sobrevier, será inteiramente nula, e não apenas redutível (CLÓVIS, “Código Civil Comentado”, obss. 4ª e 6ª ao art. 1.776; CARVALHO SANTOS, vol. 24, pág. 396).

Não há aqui sequer o problema sôbre o conhecimento ou não da existência do herdeiro necessário. Basta sua simples omissão para trazer a nulidade de todo o ato.

Ora, o art. 1.752 do Cód. Civil vem também proclamar o direito do herdeiro necessário, não sòmente à legítima, ou à metade dos bens do testador, nos têrmos do art. 1.721, senão também à metade disponível do testador.

Êste, para excluir da sucessão os herdeiros necessários, não basta que disponha do seu patrimônio, sem os contemplar, como ocorre em relação ao cônjuge e aos parentes colaterais, nos têrmos do art. 1.725.

Tem de deserdá-los, mesmo nessa parte disponível, como está expresso na parte final do art. 1.752: “deserdando-os nessa parte (disponível), sem menção de causa legal”.

É verdade que essa deserdação pode não sòmente ser injustificada, como também não ser expressa. Deve, porém, sempre ser comprovada pela demonstração de que o testador conhecia o herdeiro necessário e assim a sua omissão no testamento foi feita por êle consciente e voluntàriamente, para o deserdar.

Há assim uma patente antinomia, entre os arts. 1.750 e 1.751, de um lado, e o art. 1.752, de outro lado.

Pelos primeiros, deve ser pesquisada a vontade presumida do testador. O testamento se presumirá válido até que se prove que, ao testar, o testador ainda não tinha o herdeiro necessário que lhe sobreveio, ou que, já o tendo, não conhecia então legalmente sua existência.

Pelo art. 1.752, tem-se em conta primacialmente o direito do herdeiro necessário a tôda a herança. Presume-se rôto o testamento em que tenha sido omitido algum herdeiro necessário, salvo provando-se que êle foi deserdado expressamente pelo testador, ou que pelo menos já existia ao tempo do testamento e o testador sabia de sua existência.

O interêsse prático da distinção ocorreria no caso de abertura de inventário. Se a presunção fôsse de validade do testamento, no caso do testador já ter o herdeiro necessário, ao testar, a questão relativa a saber ou não o testador da existência daquele herdeiro, sendo de alta indagação, seria remetida para as vias ordinárias, enquanto se executaria provisòriamente o testamento.

Se a presunção fôsse de ruptura do testamento, o herdeiro testamentário é que teria de vir, por via ordinária, propor ação de petição de herança em que deveria provar que o testador conhecia, ao testar, a existência do herdeiro necessário que omitiu e não deserdou de maneira expressa no testamento.

Está claro, porém, que a antinomia entre êsses dois grupos de textos legais tem de ser solvida pela predominância da regra consignada no art. 1.752 do Código Civil.

Com efeito, se êste estabelece que o testamento sòmente “não se rompe” quando se prove que o testador “conhecia” a existência do herdeiro necessário omitido no testamento, claro está que haverá, presunção de ruptura do testamento até que, em vias ordinárias, seja feita a prova dêsse conhecimento.

Não é só, entretanto, a boa lógica que impõe a interpretação, senão também tôda a tradição de nosso direito, como passamos a ver.

Segundo o direito romano, por uma ficção de direito, os descendentes sob poder eram co-proprietários do ascendente, em vida dêste último; de sorte que pròpriamente não herdavam mas recebiam o que já era dêles, em comunhão com o falecido, e do que só poderiam ser privados violentamente por expressa cláusula testamentária.

Daí o descendente chamar-se, então, heres suus, herdeiro seu: “Êstes herdeiros (dizem as Institutas) são chamados seus, porque são herdeiros domésticos e considerados de alguma sorte como proprietários mesmo quando vivia seu pai” (Inst., 2, 19, § 2º, ORTOLAN, “Expl. Hist. des Inst.”, vol. 1, pág. 624; LAGRANGE, “Man. de Dr. Rom.”, página 274). “Itaque post mortem patris non hereditatem percipere videntur; sed magis liberam bonorum administrationem consequuntur“. “Depois da morte do pai não são considerados como recolhendo uma sucessão, mas antes como obtendo a livre administração de seus bens” (D., 28, 2, fr. 11; BONJEAN, “Explication Méth. des Inst. de Just.”, 1, pág. 670, nº 1.255).

Mas, além de herdeiro “seu”, o referido descendente era também “necessário”, isto é, a princípio “de qualquer maneira, quisesse ou não, tornava-se herdeiro, já ab intestato, já por testamento” (Inst., 2, 19 § 2); só por uma concessão posterior do pretor veio a poder usar do “benefício de abstenção”, jus abstinendi.

Era sòmente em relação a êsses herdeiros sob pátrio-poder, e do sexo masculino, que o primitivo direito civil romano estabeleceu a regra de que deveriam ser instituídos ou deserdados nomeadamente, nominatim, sob pena de nulidade ipso jure do testamento (Inst., 2, 13, pr.).

Mais tarde, o pretor estendeu essa regra aos filhos emancipados, que já não eram herdeiros “seus” e aos quais, se não fôssem instituídos herdeiros ou deserdados, lhes concedia a posse dos bens contra tabulas (Inst., loc. cit., § 4º).

JUSTINIANO ainda ampliou a aplicação da regra a todos os filhos e filhas, netos e netas, póstumos e emancipados (Inst., hoc tit., § 5°).

Ficou, entretanto, excetuado o caso do testamento feito por militares, mulheres ou pelo avô materno, os quais poderiam não fazer referência aos filhos, no seu testamento, porque, dizem as Institutas, “o silêncio da mãe ou do avô materno e dos outros ascendentes maternos tem o mesmo efeito que a deserdação feita pelo pai” Unst., hoc tit., § 7º).

Para que equivalesse, porém, a uma deserdação, o referido silêncio deveria ser voluntário, como é lógico e o diz expressamente a Instituta a propósito do testamento dos militares: “Se êstes preterirem os filhos em silêncio, não ignorando ter filhos, seu silêncio, segundo as Constituições imperiais, equivale a uma deserdação feita nomeadamente”, “si… nominatim non exheredaverit, sed silentio praeterierit, non ignorans an habeat liberos, silentium ejus pro exheredatione nominatim facta valere constitutionibus principum cautum est” (Inst., hoc. tit., § 6º).

Na última fase do direito romano, portanto, a falta de instituição ou deserdação nominativa dos descendentes importava ipso jure a nulidade do testamento, salvo se feito por militares em campanha, mulheres ou ascendentes maternos, caso em que o silêncio equivaleria a uma deserdação nominal, desde que se provasse que o testador sabia da existência dos filhos.

Desde o fim da República,3 entretanto, os prudentes (e não o pretor, como, por equívoco, afirma FERREIRA ALVES, “Direito das Sucessões”, pág. 381, nº 288) inventaram a querela inofficiosi testamenti, pela qual o descendente (e até mesmo o ascendente e irmãos) injustamente deserdado podia pedir a anulação do testamento (BONJEAN, 1, pág. 721; DEMANGEAT, 1, pág. 737).

É curioso ver a razão que os jurisconsultos invocavam para a sua inovação: baseava-se na suposição de que, ao fazer seu testamento, o testador não estava são de espírito: “o que não significava que estivesse realmente louco, mas que, se testou vàlidamente, não observou seus deveres de afeição para com seus filhos; visto como, se estivesse realmente louco, seu testamento seria nulo”. (Inst., 2, 18, pr.).

A princípio os motivos justos para a deserdação ficavam ao critério judicial (VAN WETTER, 2, pág. 499), mas a Nov. 115 fixou-os taxativamente no número de 14 para os descendentes, de 8 para os ascendentes, e de 3 para os irmãos e irmãs, e deviam ser indicados no testamento.

Qual era o efeito da querela? No direito clássico, era sempre a rescisão de pleno direito (“ipso jure rescisum est“), quer se tratasse de deserdação injusta, quer de não-aquinhoamento, e abrangia tanto a instituição como os legados (ULPIANO, D., 5, 2, de inoff. test., 8, § 16; DEMANGEAT, 1, pág. 748).

JUSTINIANO, porém, na Nov. 115 (cap. 3, § 15, e cap. 4, § 9°), determinou que, em caso de deserdação injusta, só seria anulada a instituição, subsistindo, porém, os legados (DEMANGEAT, 1, página 754; BONJEAN, 1, pág. 780; VAN WETTER, 2, pág. 499).

Ao mesmo tempo, entretanto, que assim vedava a deserdação arbitrária,, o direito romano obrigou o testador a não sòmente instituir seus descendentes, como efetivamente aquinhoá-los com determinada parcela de seus bens.

A essa quota se deu o nome de “legítima”, ou seja uma “quota obrigatòriamente reservada”.

Examinemos, ainda que perfunctòriamente, como surgiu e se desenvolveu històricamente essa “legítima”.

O aquinhoamento a princípio era indeterminado (FOIGNET, “Dr. Romain”, pág. 242) e foi depois influenciado pelas leis restritivas da capacidade de legar. Destas, a lei Vocônia (ano 585 de Roma) tornou obrigatório o aquinhoamento de qualquer herdeiro instituído, proibindo que se dêsse mais a um legatário do que era dado ao herdeiro (GAIO, “Comm.”, 2, 226). Em seguida, a lei Falcídia (714 de Roma) estabeleceu que “o testador não podia legar mais do que três quartos (nove duodécimos, dodrantem) da sucessão: um quarto, ao menos, devia caber ao herdeiro instituído; chamava-se a “quarta Falcídia” (FOIGNET, pág. 268). Por semelhança, criou-se a quarta legítima. Entretanto, entre quarta “Falcídia” ou quarta “Pegasiana” e a quarta “legítima” há essa diferença: que as duas primeiras se referem ao herdeiro instituído contra os legatários ou fideicomissários, ao passo que a última é privilégio dos herdeiros ab intestato (BONJEAN, 1, pág. 830, nº 1.577).

Segundo a lei Falcídia, tratando-se de legados, tudo o que excedesse dos três quartos se reduzia de pleno direito a êsse limite.

Para a quarta legítima, a exigência era maior, porque só se evitava a querela se o testador tivesse aquinhoado seu herdeiro ab intestato “em tôda a quota, legítima”. É verdade que se admitia que essa quota podia ser dada não só por direito hereditário, como por qualquer outro título, legado, fideicomisso, doação por causa de morte (Inst., 2, 18, § 6º).

Note-se, contudo, que, além de deixar a quarta, o testador, também devia instituir (ou deserdar com motivo legítimo).

Le de cujus (diz VAN WETTER, 2, pág. 501, § 687) peut laisser la légitime d’une manière quelconque, sauí qu’il doit en outre instituer ses descendants et ses ascendants; à leur égard il a donc une double obligation, celle de leur laisser la légitime et celle de les instituer“.

Se os omitisse, o testamento era nulo de pleno direito, como já vimos Unst., 2. 13, pr.; BONJEAN, 1, pág. 722, nº 1.357).

Se o testador aquinhoava os referidos herdeiros em menos da quarta, dava-se a princípio o direito à rescisão do testamento por meio da querela. Mas CONSTANTINO permitiu que o testador usasse da cláusula formal boni viri arbitratu quarta impleatur, pela qual o herdeiro só podia usar duma ação supletória para completar sua legítima.

Mais tarde, JUSTINIANO tornou essa cláusula subentendida (Inst.; 2, 16, § 3°).

JUSTINIANO, entretanto, ainda achava nisso uma iniqüidade. “Com muita freqüência (diz êle na Nov. 18, prefácio), com muita freqüência temo-nos admirado de que aos filhos legítimos e benévolos, que fazem a felicidade de seus pais, e a respeito dos quais o que se lhes deixa alguns chamam também coisa já devida (“quibus quod relinquitur jam etiam debitum vocant“) se haja determinado que, por necessidade (“ex necessitate“), se lhes deixem sòmente três onças, e que o restante fique à vontade dos pais, o que certamente os cognados e estranhos e escravos com liberdade o adquirem todo…”

Pelo que, o referido imperador aumentou a taxa da legítima para um têrço da herança se o testador deixasse quatro filhos, e metade se deixasse mais (Nov. 18, cap. 1).

A situação, portanto, na última fase do direito romano, do descendente já existente ao tempo do testamento e omitido pelo testador, pode ser sintetizada nos seguintes itens:

1º) O testador deveria necessária e nomeadamente instituir ou deserdar cada um dos seus descendentes, sob pena de nulidade ipso jure do testamento, em caso de omissão de qualquer dêles, salvo se o testador fôsse militar em campanha, mulher ou ascendente materno, caso em que o silêncio equivaleria a uma deserdação nominal, desde que se provasse que o testador sabia da existência dos filhos omitidos.

2º) A contrario sensu, vigorava a regra da nulidade do testamento, em qualquer caso, desde que o testador ignorava, ao testar, a existência de algum descendente omitido.

3°) Se o testador deserdava algum descendente sem causa legitima, era nula a instituição, mas valiam os legados, dentro dos limites da quota disponível.

4º) Se o testamento declarava uma causa legítima de deserdação, cabia ao herdeiro instituído prová-la (BONJEAN, 1, pág. 725, nº 1.363).

Tôdas essas regras vigoravam a respeito do descendente já existente na qualidade de herdeiro “seu” do testador ao tempo do testamento.

Muito diverso era o caso do herdeiro superveniente, como, por exemplo: se o descendente nascia após o testamento, em que não houvesse sido prèviamente instituído ou deserdado; ou se após a confecção do testamento o testador adotasse ou ad-rogasse alguém a título de filho (GAIO, II, § 138), etc.

No caso de descendente omitido já existente ao tempo do testamento, sua omissão importaria nulidade do testamento, ao passo que a superveniência do mesmo traria sua ruptura.

O direito romano clássico, entretanto, ainda fazia uma importantíssima distinção entre os efeitos da omissão de descendentes, conforme sobrevivessem ou não ao testador.

Se se tratava, com efeito, de descendentes emancipados aos quais o pretor concedia a bonorum possessio contra tabulas sòmente no momento de se abrir a sucessão, é razoável admitir que o falecimento dêsse descendente antes da abertura da sucessão paterna não retirava jure praetorio a eficácia ao testamento em que tivessem sido omitidos (DEMANGEAT, 1, nº 334).

Os proculeanos procuraram generalizar essa regra a todos os filhos omitidos em testamento. Tal omissão traria a nulidade do testamento, mas se o filho, assim omitido ou deserdado inter coeteros, viesse a morrer antes do testador, como a regra havia sido estabelecida em seu interêsse, pareceu razoável aos proculeanos decidir que o testamento desde então era validado. Os sabinianos, ao contrário, ativeram-se ao rigor dos princípios. Se a omissão importara nulidade, não poderia ser validado um ato nulo desde o princípio (GAIO, II, § 123; DEMANGEAT, loc. cit.).

JUSTINIANO optou pela opinião dos sabinianos e decidiu que o testamento seria nulo, mesmo “se o filho morre antes do testador” (Inst., 2, 13, pr.).

O nosso direito, desde as Ordenações, orientou-se, como vamos ver, pela doutrina proculeana.

Com isso, porém, criou a grave dificuldade de classificar a nulidade resultante da não-deserdação expressa ou tácita do descendente sucessível, existente no momento do testamento.

Sòmente pela moderna teoria da ineficácia seria possível dar ao problema uma resolução satisfatória, entendendo-se que, pela simples omissão de herdeiro necessário ignorado pelo testador, ao testar, e já então existente, o testamento não é pròpriamente nulo, mas inoponível, ou com ineficácia relativa para com o dito herdeiro. E essa inoponibilidade, por seu turno, pende da condição da sobrevivência do herdeiro omitido pelo testador, a êsse último.

Quer, porém, se considere o testamento como originàriamente nulo, quer como inoponível, no caso de omissão de herdeiro, êle se revalidará, no primeiro caso, ou se tornará plenamente oponível, no segundo, caso o herdeiro omitido faleça antes de se abrir a sucessão do testador.

E também, num ou noutro caso, como o testamento é, por natureza, um ato ineficaz que só adquire eficácia com a abertura da sucessão, é no momento desta que a nulidade ou a ineficácia do testamento pode ser pleiteada pelo herdeiro omitido.

Diz-se, então, que o testamento se rompe.

Pràticamente, portanto, haverá ruptura do testamento, quer se trate de descendente necessário já existente na ocasião do testamento, quer superveniente a êle. No primeiro caso, a nulidade ou a inoponibilidade serão contemporâneas ao testamento. No segundo, serão posteriores à sua lavratura. Mas em um ou em outro caso, sòmente se efetivam ao se abrir a sucessão do testador, e se o herdeiro a êle sobreviver.

Feita essa resenha da doutrina romana, especialmente a consignada na legislação justiniana, é fácil verificar que a mesma passou quase literalmente para as Ordenações e destas para o Cód. Civil.

Assim é que as Ordenações estabeleceram:

1º) Se o testador não houver instituído nem deserdado o descendente, mas sabia da sua existência ao testar, será nula a instituição, mas valerão os legados, dentro dos limites da quota disponível.

Igual fato ocorrerá se o houver deserdado sem causa legítima.

O primeiro dêsses preceitos consiste na generalização da regra admitida em direito romano em relação aos testamentos dos militares em campanha, mulheres e ascendentes maternos.

E o que diz o § 1º do tít. 82 do livro 4º das Ordenações:

“E dispondo o pai, ou mãe em seu testamento de todos os seus bens ou fazenda, não fazendo menção do seu filho legítimo, sabendo que o tinha, ou deserdando-o não declarando a causa legítima, por que o deserda, tal testamento é, por direito, nenhum, e de nenhum vigor, quanto à instituição ou deserdação nêle feita; mas os legados conteúdos no dito testamento serão em todo o caso firmes e valiosos, em quanto abranger a têrça do testador assim e tão cumpridamente como se o testamento fôsse bom e valioso por direito”.

Mais tarde, a Consolidação das Leis Civis de TEIXEIRA DE FREITAS repetiu: “Art. 1.010. Se o testador dispuser de tôda a herança, preterindo os herdeiros necessários, de cuja existência sabia o testamento será nulo quanto à instituição, mas serão válidos os legados, que couberem na têrça”. “Art. 1.011. A mesma determinação se guardará quando o testador deserdar os herdeiros necessários sem declaração de causa legítima”.

2º) Se, ao contrário, o testador não houver feito menção do filho no testamento, crendo que era morto ou não existir, e dispôs de todos os seus bens instituindo terceiro, prevalece a regra da nulidade integral do testamento, quer na instituição, quer nos legados.

Diz o texto do § 3° do título citado das ordenações:

“Porém se o pai ou mãe, ao tempo que fêz testamento, tinha algum filho legítimo, e crendo que era morto não fêz dêle menção no testamento, mas dispôs e ordenou de todos os seus bens e fazenda, instituindo outro herdeiro, em tal caso o testamento será nenhum, não sòmente quanto à instituição, mas também quanto aos legados nêle conteúdos”.

3º) Igual preceito vigorava se, de qualquer forma, sobreviesse filho ao testador que o tivesse omitido no testamento, não sòmente por não o ter ainda, como também porque então ignorava a existência de filho já existente:

“Outrossim, se o pai ou mãe, ao tempo do testamento, não tinha filho ilegítimo, e depois lhe sobreveio, ou o tinha e não era disso sabedor, e é vivo ao tempo da morte do pai, ou mãe, assim ò testamento, como os legados nêle conteúdos, são nenhuns e de nenhum vigor” (§ 5°).

4º) Se o testador declarava a causa ou razão por que deserdava o filho, cabia ao herdeiro instituído prová-la, e, provando êle a legitimidade da causa alegada, ficaria o testamento nenhum, devendo porém ser pagos os legados dentro das fôrças da têrça do testador (§ 2º).

*

O Cód. Civil trasladou essas regras respectivamente para os arts. 1.752, 1.750 e 1.743 (excluída a obrigação de instituição de herdeiro, em geral):

1º) Se o testador não mencionar o herdeiro necessário, mas souber de sua existência, vale o testamento dentro dos limites da quota disponível.

Igual fato ocorrerá se o testador houver deserdado o herdeiro sem declaração de causa legítima.

É o que ficou indicado no art. 1.752:

“Não se rompe, porém, o testamento, em que o testador dispuser de sua metade, não contemplando os herdeiros necessários, de cuja existência saiba, ou deserdando-os nessa parte sem menção de causa legal”.

2º) Se, porém, o testador não mencionar o filho, por crê-lo morto ou em geral por ignorar sua existência, e o filho lhe sobreviver, rompe-se o testamento em tôdas suas disposições:

“Art. 1.750. Sobrevindo descendente sucessível ao testador, que o não tinha, ou não o conhecia, quando testou, rompe-se o testamento em tôdas as suas disposições, se êsse descendente sobreviver ao testador“.

3°) Para deserdar na parte legítima, o testador tem de indicar causa legítima e o herdeiro instituído prová-la:

“Art. 1.742. A deserdação só pode ser ordenada em testamento com expressa declaração de causa.”

Art. 1.743. Ao herdeiro instituído, ou àquele a quem aproveite a deserdação, incumbe provar a veracidade da causa alegada pelo testador.

Parág. único. Não se provando a causa invocada para a deserdação, é nula a instituição e tôdas as disposições que prejudiquem a legítima do deserdado”.

Ficou, assim, demonstrado:

1°) que, se, ao testador, após testar, houver sobrevinda filho legítimo, ou se êle houver reconhecido ou legitimado filho natural preexistente ou feito adoção, rompe-se ipso jure o testamento desde que tal filho sobreviva ao testador;

2º) que, se, ao tempo do testamento, tiver o testador algum filho legítimo já nascido, ou já reconhecido, legitimado ou adotado e fôr omitido no testamento, presume-se a nulidade dêste, se o dito filho sobreviver ao testador, salvo ao herdeiro ou beneficiário do testamento fazer a prova de que o testador, ao testar, sabia da existência daquele filho.

*

É interessante cotejarmos agora êsses princípios do nosso Código com os que vêm consignados no art. 687 do vigente Cód. Civil italiano (que, com ligeira modificação, é igual ao art. 888 do antigo Código):

“Revogação por superveniência de filhos. As disposições a título universal ou particular, feitas por aquêle que, ao tempo do testamento, não tinha ou ignorava ter filhos ou descendentes, são revogadas ipso jure pela existência ou pela superveniência de um filho ou descendente legítimo do testador, ainda que póstumo, ou legitimado ou adotivo, ou pelo reconhecimento de um filho natural.

A revogação tem lugar ainda quando o filho já esteja concebido ao tempo do testamento, e, tratando-se de filho natural legitimado, ainda que esteja reconhecido pelo testador antes do testamento e sòmente em seguida legitimado.

A revogação entretanto não terá lugar quando o testador tenha previsto o caso de existirem ou sobrevirem filhos ou descendentes dêle.

Se os filhos ou descendentes não vierem a sucessão ou se não tiver lugar a sua representação, a disposição testamentária terá seu efeito”.

A doutrina acolhida no corpo principal dêsse dispositivo e na parte inicial da primeira alínea coincidem com as que propugnamos no presente trabalho: a) rompe-se o testamento pelo reconhecimento ulterior de filho natural; b) dá-se também a ruptura pela superveniência de filho ainda quando já êste se encontre concebido ao tempo do testamento.

Surge, entretanto, controvérsia em relação ao nosso direito sôbre as duas proposições subseqüentes dêsse art. 687 do novo Código italiano (e já constantes do art. 888 do Código anterior), a saber: a) se também se rompe o testamento pela legitimação de filho natural já reconhecido pelo testador antes de testar; b) se o testador pode deserdar antecipadamente um descendente ainda não nascido ou não concebido.

Estudemos essas duas, questões:

a) Em relação à primeira, constitui uma regra tradicional, que nos veio do direito francês, a de que a legitimação não retroage ao tempo do nascimento do filho, e isso mesmo foi consignado em diversos Códigos (POTHIER, “Contr. de mar.”, nº 425; Códs. Civis: de Portugal, art. 119; espanhol, art. 123; e italiano, art. 197; BAUDRY LACANTINERIE, 4, nº 746).

Essa irretroatividade, entretanto, é relativa aos efeitos da própria legitimação e não do reconhecimento, que lhe é conexo e que, segundo muitas legislações, seria necessário vir em ato autônomo anterior ou simultâneo ao da legitimação (art. 331 do Código francês; art. 119, nº 1, do Código português; art. 121 do Código espanhol; art. 197 do Código italiano; art. 317 do Código argentino; HERMENEGILDO DE BARROS, “Manual do Código Civil”, vol. 18, nº 252; DE PAGE, 1, nº 1.239).

Ora, como vimos, o reconhecimento do filho natural, ao contrário da legitimação, tem em regra efeito retroativo.

O interêsse prático da distinção surge, no campo sucessório, quando se defronta com uma legislação que restrinja os efeitos do simples reconhecimento.

Tal acontece, por exemplo, com os Códs. Civis da França (art. 756, modificado nela lei de 25 de março de 1896), da Itália (art. 749 do antigo Código), da Espanha (art. 943), de Portugal (artigo 2.005), da Argentina (art. 3.582), que negam aos filhos naturais reconhecidos o direito de suceder aos colaterais (PLANIOL, 1, nº 1.370: “Il y a un principe qui n’est écrit nulle part en termes généraux et dont la loi fait une seule fois mention à propos des successions (art. 756 anc., 757 nouv.), mais qui domine toute la théorie du Code Napoléon: c’est que, en dehors de ses père et mère, l’enfant naturel n’a pas de famille. La parenté naturelle n’a qu’en seul degré et ne va pas au delà…”).

El hijo natural (prescreve, dentro dêsse ponto de vista, o art. 3.582 do Cód. Civil argentino) nunca hereda á los ahuelos naturales ni á los hijos y parientes legitimos del padre, la madre que lo reconoció; ni los ahuelos naturales, ni los hijos legitimou y parientes de su padre ó madre, tampoco heredan al hijo natural“.

Aberta, portanto, a sucessão dum filho legítimo, o filho natural, irmão daquele, não tem em relação a êle direito sucessório. E não o adquirirá em virtude de legitimação anterior, porque prevalece a regra de que sua equiparação ao filho legítimo principia na data do casamento dos Dais e não retroage.

É o que explica muito bem PLANIOL: “Il subsiste toute-fois une différence entre l’enfant légitimé et les véritables enfants légitimes. C’est que l’assimilation qui se produit alors n’est pau rétroactive; elle ne se produit qu’à cometer du mariage et pour l’avenir seulement, et ne remonte pas dons le passe jusqu’au jour de la conception de l’enfant. Il a été conçu comme enfant naturel, et il est resté tal jusqu’au mariage; il n’est devenu légitime que le jour oú seu parents se sont mariés. Il ne peut pau y avoir de légitimé antérieure à l’union conjugale. De là résulte une conséquence pour les successions qui se sont ouvertes avant le mariage: l’enfant légitimé n’y a aucun droit, parce qu’à cette époque il était encore enfant naturel, et que leu enfants de cette catégorie ne peuvent succéder aux parents legitimes de leurs pére et mère” (vol. 1, nº 1.567; vol. 3, nº 1.827).

Daí a conhecida lição de BAUDRY LACANTINERIE: “1) O filho legitimado não tem nenhum direito às sucessões abertas antes da celebração do casamento, embora após sua concepção. Exemplo: um homem tem um filho natural; casa-se com uma mulher diversa da mãe dessa criança e dêsse casamento nascem dois outros filhos, Primus e Secundus: um dêles, Secundus, morre; em seguida, o pai, tendo enviuvado, casa-se com sua anterior concubina e legitima seu filho natural. Êste não poderá reclamar nenhum direito sôbre a sucessão de seu irmão consangüíneo Secundus, morto antes do casamento que produziu sua legitimação. 2) Um filho natural legitimado pode ser legalmente mais velho em relação a filhos legítimos oriundos dum casamento anterior àquele que tenha produzido sua legitimação e que, de fato, são menos velhos do que êle” (vol. 4, nº 746).

No antigo direito português, essa doutrina prevalecia entre os praxistas, fundados na interpretação das Ord., IV, t. 93, v. último, como expôs BORGES CARNEIRO: “Os irmãos ou outros parentes colaterais naturais, ou o são por serem gerados do mesmo pai (consangüíneos), ou da mesma mãe (uterinos). Os primeiros não têm direito algum de sucederem, nem entre si nem aos irmãos legítimos. Os uterinos, inda sendo vulgo quasiti, sucedem uns aos outros e a todos os colaterais procedentes da mãe, inda concorrendo com irmãos uterinos legítimos, 1. 2, 4, ff. und. cognat. Stry. sucess. diss: 3, cp. 1 § 35, 38. O, cit. v. ult. Hei. VI, § 89″ (“Direito Civil”, volume 2, § 197, ns. 8 e 9).

“Há aqui ainda outra questão bem problemática (comentava LOBÃO): se os naturais filhos de peão, assim como sucedem a seus pais, sucedem também aos consangüíneos paternos ab intestato? Esta questão a disputou largamente CORDEIRO, de Natural Sucess. Dub. 11. Pela negativa estão graves DD. reinícolas (Portug. de Donat., L. 3, C. 18 a n. 62. Nett. de Testam., L. 2, T. 17, a n. 3 Egid de Privil, hoest., Art. 13, n. 59). CORDEIRO sustentou a afirmativa, mas com razões as mais irrisórias no presente século. Se respeitamos o direito romano, não sucedem aos irmãos paternos (Stryk. de Success, ab intest. Diss. 3, C. 1 § 35)” (LOBÃO, “Notas a Melo”, parte III, liv. 3, tít. 8, § 17, n° 3).

Ainda depois da lei de 2 de setembro de 1847, assim continuou a ser admitido pela jurisprudência brasileira, sob o fundamento de que “sendo omissa a legislação brasileira, devia recorrer-se à subsidiária dos novos civilizados, onde o direito de sucessão aos colaterais paternos era vedado expressamente” (HERMENEGILDO DE BARROS, “Manual do Código Civil”, vol. 18, nº 334; “O Direito”, vols. 1, pág. 97, e 17, pág. 544).

TEIXEIRA DE FREITAS a ela aderiu em seu “Esbôço”, e, embora não houvesse chegado a redigir a matéria relativa a direito sucessório, deixou aquela doutrina expressa no art. 1.571 sôbre legitimação: “Começam os efeitos da legitimação, isto é, os direitos e obrigações que ela produz, desde o dia em que o subseqüente matrimônio fôr celebrado. Ela não terá efeito retroativo, isto é, não remontará nem à época da concepção, nem ao dia do nascimento dos filhos legitimados; ou para influir em direitos já adquiridos de sucessão hereditária, ou para aproveitar ao pai no usufruto que lhe compete sôbre os bens dêsses filhos. Os que nasceram de um casamento intermediário do pai ou mãe legitimamente, reputar-se-ão mais velhos do que o filho legitimado, embora houvesse nascido depois dêle”.

Como corolário a essa doutrina sôbre legitimação, TEIXEIRA DE FREITAS deveria negar ao filho natural direito sucessório sôbre os colaterais. Não o deixou expresso, porque não completou o “Esbôço do Código Civil” no local próprio, que seria o de sucessões. Fê-lo, porém, o legislador argentino, como vimos, que, como se sabe, se inspirou no trabalho daquele nosso grande jurisconsulto.

Hodiernamente, porém, nosso Código Civil mudou totalmente de orientação.

No art. 1.605 proclamou o princípio de que, para os efeitos sucessórios, aos filhos legítimos se equiparam, não sòmente os legitimados, como também os naturais reconhecidos.

Sòmente fêz uma restrição quanto à extensão do direito dêstes, em confronto com os irmãos legítimos ou legitimados, quando reconhecido na constância do casamento (o que aliás foi revogado pelo art. 127 da Constituição de 1937 e não se revigorou pela revogação dessa Constituição, PONTES DE MIRANDA, 3, nº 226; de 15 de setembro de 1952 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, in “REVISTA FORENSE”, vol. 151, pág. 310).

Por uma curiosa coincidência, entretanto, todos os comentadores do nosso Código incidem no equívoco de reproduzir a regra do direito francês e italiano segundo os quais o filho legitimado não teria direito às sucessões abertas antes de sua legitimação.

Além de ESTÊVÃO DE ALMEIDA (“Direito de Família”, no “Manual do Código Civil”, vol. 6, nº 106), HERMENEGILDO DE BARROS (man. cit., vol. 18, nº 255, pág. 415) e BATISTA DE MELO (“Direito de Bastardia”, § 52), assim o continuam dizendo modernamente PONTES DE MIRANDA, CARLOS MAXIMILIANO e CARVALHO SANTOS:

“O filho legitimado (escreve PONTES DE MIRANDA) não tem direito, como legítimo, às sucessões abertas antes de efetuar-se o casamento, embora depois de seu nascimento; e até se dizia que o filho legitimado, embora mais velho do que os legítimos do casamento anterior, era, sempre, em direito, considerado mais moço (assim TEIXEIRA DE FREITAS, no “Esbôço”, art. 1.571, alínea 3ª…)” (“Tratado de Direito de Família”, vol. 3, 1947, § 215, n° 2, pág. 70).

“Ainda que os legítimos sejam mais moços, recolhem sòzinhos o espólio de parentes falecidos antes do desposório dos pais do legitimado” (afirma CARLOS MAXIMILIANO, “Direito das Sucessões” vol. 1, 1952, nº 192 pág. 257).

“A legitimação não incluirá em direitos já adquiridos de sucessão hereditária, como, por exemplo, o filho já concebido, legitimado posteriormente, não sucede aos parentes mortos depois de sua concepção, mas antes do casamento de seus pais” (proclama CARVALHO SANTOS, “Código Civil Interpretado”, vol. 5, pág. 390).

E assim também CLÓVIS BEVILÁQUA: “Nem o filho legitimado adquire direitos hereditários anteriores à legitimação, nem aos pais aproveita o usufruto dos bens do filho antes do casamento” (“Código Civil Comentado”, volume 2, obs. 2 ao art. 353).

Não há dúvida de que os efeitos da legitimação pròpriamente dita não retroage. Mas, concomitantemente a ela há necessàriamente o reconhecimento da filiação natural, cujo efeito retroativo é admitido pacificamente pela doutrina: “les enfants naturels (escrevem BAUDRY LACANTINERIE et WAHL) peuvent exercer leurs droits dons la succession de leurs père et mère, même si leur reconnaissance est postérieure à l’ouverture de la succession” (vol. 7, nº 392; vide a lista de autores citados em nota 2 à pág. 314).

O legitimado, portanto, pelo nosso direito, sucede, na qualidade concomitante de filho natural reconhecido, aos parentes mortos depois de sua concepção e antes do casamento de seus pais, como se fôssem filhos legítimos.

Mesmo em face à legislação francesa e italiana, apesar de tôdas suas restrições aos direitos sucessórios dos filhos naturais reconhecidos, o mesmo princípio de retroatividade ocorre em relação à herança anteriormente aberta do pai ou da mãe.

É contrário; portanto, à norma da lógica jurídica o preceito adotado pelo novo Cód. Civil italiano, segundo o qual se rompe o testamento pela legitimação ulterior do filho já reconhecido pelo testador antes de testar (art. 687, 1ª alínea).

Pelo reconhecimento, já o testador tinha um filho sucessível e sabia de sua existência.

É verdade que o filho natural tem apenas, como legítima, ou quota obrigatòriamente a êle reservada no testamento, apenas a metade do que caiba ao filho legítimo (art. 541).

Mas não será essa maior ou menor extensão de legítima que irá influir sôbre a liberdade de deliberação do testador, ao testar, nem a simples modificação ulterior da qualidade de filho natural para filho legitimado.

Por isso, os comentadores do Código italiano têm entendido que o legislador, com o referido preceito, agiu com critério político para favorecer as legitimações: “È chiaro che questi casi, secondi i principi ai quali é informato (art. 233, II C. C. (888 c. c.), non devrebbero produrre la revoca del testamento, perchè …nel caso del figlio naturale legittimato e già riconosciuto prima del testamento, sé egli sapeva di aver un figlio naturale, vuol dire che non ha voluto testare a favore suo. Ma il, legislatore, opportunamente, ha voluto derogare alla norma generale, ammettendo, anche in questi casi, la revoca, per favorire la condizione del figli legittimi ou legittimati” (FRANCESCO DEGNI, “Nuovo Dig. Italiano”, vb. Successioni Testamentarie, nº 54, volume XII, parte 1ª, pág. 1.119).

Em nosso direito, que alude apenas à superveniência de herdeiro necessário sucessível e não abre exceção ao caso de legitimação, a norma do art. 687 do Código Civil italiano seria manifestamente inaplicável.

b) Examinemos agora o preceito subseqüente da 2ª alínea do art. 687 do novo Código italiano (igual ao do art. 888 do Código anterior), que autoriza o testador a prever o caso de existirem ou sobrevirem filhos ou descendentes para os deserdarem antecipadamente.

Adotou assim o legislador italiano, em relação à revogação do testamento, uma orientação oposta à que consagrou a respeito da revogação da doação pela superveniência de filho.

Segundo o art. 806 do novo Código (o 1.084), não é válida a renúncia preventiva à revogação da doação por ingratidão ou superveniência de filho.

Tanto a razão justificativa dessa causa de revogação da doação como da proibição da renúncia prévia são assim explicadas por RICCI: “O fundamento desta causa de revogação é a presumida vontade do doador, já que se admite que êste não se teria desfeito de seus bens se, no momento em que doava, houvesse tido os filhos ou descendentes legítimos. Mas, dir-se-á, se esta causa de revogação tem fundamento na vontade presumida do doador, por que declara a lei de nenhum efeito a manifestação de uma vontade contrária feita pelo doador no ato da doação? Porque o sentimento da paternidade não pode ser tido senão por aquêle que seja pai, e porque aquêle que não tem filho, se pode prever vir a tê-lo, não pode entretanto compreender com exatidão o potente afeto que o genitor tem para sua prole; daí resulta que se considera feita sem justo conhecimento de causa a renúncia feita ao direito de revogar a liberdade pela superveniência de filhos; e é justamente por êste motivo que a lei lhe declara a nulidade” (FRANCESCO RICCI, “Corso di Diritto Civile”, vol. IV, 1907, nº 369, pág. 689).

Tôdas essas razões invocadas para o caso da revogação da doação ajustam-se como uma luva para o caso da revogação do testamento.

Se o testador, ao testar, já tivesse filho que depois lhe sobreveio, teria disposto de outra forma de seus bens. E se no momento de testar, ainda não tem filho, não pode avaliar o futuro afeto paterno, sendo portanto desrazoada a renúncia antecipada à revogação do testamento pela superveniência de filho.

E, no caso do testamento, há ainda um outro argumento a favor da nulidade dessa renúncia: é que se deve ter em vista não sòmente a vontade presumida do testador, ao testar, senão também o interêsse do descendente sucessível, que sòmente depois sobreveio e que sòmente pode ser privado da herança mediante deserdação. Parece contrário à ordem pública que se desfaçam direitos que o legislador reservou a herdeiros necessários, sem sua existência atual e pleno conhecimento do testador.

Nem foi por outro motivo que o legislador declarou rôto o testamento pela simples superveniência de descendente sucessível. Seria contra a ordem pública permitir ao testador derrogar livremente e de maneira antecipada essa norma legal, à semelhança com o que ocorreria com a renúncia antecipada do direito de revogar a doação por ingratidão do donatário (art. 1.182 do Cód. Civil).

O interessante é que CARVALHO SANTOS pretendeu sustentar a opinião contrária, fundando-se precisamente no art. 1.752 do Cód. Civil, que, como vimos, reconhece direito próprio do herdeiro necessário a tôda a herança.

Basta, entretanto, uma leitura atenta do texto do art. 1.752 para mostrar que o mesmo tem em vista a deserdação de herdeiro necessário já existente ao tempo do testamento, in verbis, “de cuja existência saiba”. O legislador jamais teve em vista a deserdação de prole eventual futura, como resulta também dos antecedentes históricos do mesmo dispositivo.

Por isso, o eminente escritor citado procura apoiar sua tese em outros argumentos.

“Em primeiro lugar (diz êle), se o Código, explicitamente, não considera rôto o testamento quando o testador dispõe de sua metade, não contempla os herdeiros necessários que sabe existirem, com maior razão, não o poderá julgar rôto, também, quando apenas o testador admite a possibilidade da superveniência de descendentes. E que, dispondo para o mais, implicitamente contém e abrange o menos” (vol. 24, pág. 257).

É translúcida, porém, a improcedência dêsse primeiro argumento.

O mesmo Código, que, no art. 1.752, declara não se romper o testamento quando o testador conhece a existência de herdeiros necessários, declara também, nos arts. 1.750 e 1.751, que se rompe o testamento no caso de ignorar o testador a existência de tais herdeiros.

Se, portanto, o testador quer se sobrepor a essa determinação do Código, declarando não se romper pela superveniência de herdeiros o testamento que o Código determina se rompa por êsse motivo, a questão é a de saber se é válida essa declaração de vontade do testador em sentido contrário ao texto legal.

Não há qualquer argumento de “maior razão” nem de correlação entre os dois casos: o de conhecer o testador a existência atual do herdeiro necessário e o de ordenar não se rompa o testamento em caso de superveniência de herdeiro, apesar da determinação em contrário dos arts. 1.750 e 1.751.

O segundo argumento de CARVALHO SANTOS é o de que, “em tais hipóteses, falha, nem tem cabimento, a presunção que justifica a revogação presumida do testamento. De fato, se a revogação é presumida e se não tem cabimento a presunção, diante da manifestação expressa do testador de deixar de lado os filhos, não se contemplando, como se falar em revogação? O que se exige é que o testador tenha previsto a hipótese de ter filhos ou descendentes, ou dêles aparecerem, se não sabe de sua existência, esclarecendo expressamente que deseja seja válido seu testamento, ainda que apareçam seus descendentes ou com a superveniência dêstes”.

Êste segundo argumento já foi por nós apreciado mais acima, lembrando a lição de RICCI. A revogação presumida não se funda na simples vontade arbitrária do testador, mas no seu presumido afeto paterno e êste não poderia evidentemente manifestar-se em relação a um filho ainda inexistente ou cuja existência ignore.

Por último, cumpre-nos protestar contra uma restrição que se pretende fazer ao texto do nosso art. 1.750 do Código Civil, por influência de doutrina estrangeira elaborada em face a leis de redação diferente.

Tem-se dito que, “quando existem um ou mais descendentes, o inesperado aparecimento de outro não inutiliza o testamento. O mesmo ocorre com respeito aos ascendentes… Assim acontece, porque a lei, ao interpretar a vontade presumida do defunto, não contempla os filhos na sua individualidade, mas a filiação em geral” (escreve CARLOS MAXIMILIANO, reproduzindo confessadamente o pensamento de BORSARI, III, parte 1ª, § 1.906; “Direito de Sucessões”, nº 1.349). “Assim, se (o testador) tivesse um só (filho) quando testou, e se quando morreu deixou 4, 5 ou 10, não se verifica a revogação, assim como não se dá no caso de ignorar o testador a existência de um só dentre os muitos que existiam. É que, em casos tais, não tem cabimento a presunção em que a lei funda a revogação (cf. PACIFICI MAZZONI, nº 155)” (CARVALHO SANTOS, vol. 24, pág. 253).

Semelhante doutrina pode sem dúvida coincidir com a redação dada ao texto, por exemplo, do art. 888 do antigo Código Civil italiano (e art. 687 do novo), em que se estatui que as disposições feitas por aquêle que ao tempo do testamento não tinha ou ignorava ter filhos ou descendentes (no plural) seriam revogadas, de direito pela existência ou superveniência de um filho ou descendente legítimo ao testador.

Por êsse dispositivo, para a ruptura do testamento não basta que sobrevenha ao testador um descendente que êle ainda não tivesse ao testar. É preciso também, como assinala RICCI, que ao tempo do testamento não exista nenhuma das pessoas indicadas no início do artigo ou que o testador lhe ignorasse a existência: “Pois se uma só das ditas pessoas existir ao tempo do testamento, ou uma só fôr conhecida pelo testador, a revogação legal não terá lugar, ainda quando sôbre venham outros descendentes legítimos, ou se descubra mais tarde a existência de outros descendentes legítimos anteriormente ignorada” (vol. 3, nº 250).

É o mesmo pensamento expresso pelo legislador italiano a propósito da revogação da doação pela superveniência de filhos ou descendentes legítimos. Segundo o art. 1.083 do antigo Código (e art. 803 do novo), “a doação, feita por aquêle que não tinha ou ignorava ter filhos ou descendentes legítimos ao tempo da doação, pode ser revogada pela superveniência de um filho ou descendente legitimo do doador”.

Trata-se de norma colhida no art. 960 do Cód. Civil francês:

Toutes donations entre vifs faites par personnes qui n’avaient point d’enfants ou de descendents actuellement vivants dans le temps de la donations… demeureront révoqués de plein droit par la survenance d’un enfant légitime du donateur…

Assim também o art. 1.483 do Código Civil português:

“A doação não será revogada por superveniência de filhos: 1º, se o doador já tiver algum filho ou descendente legítimo, vivo ao tempo da doação”.

Correlatamente, tratando da caducidade do testamento pela superveniência de filhos, dispõe o mesmo Cód. Civil português, no art. 1.814:

“A instituição de herdeiro, feita por pessoa que não tinha filhos ao tempo do testamento, ou ignorava tê-los, caduca de direito pela superveniência de filhos ou outros descendentes legítimos, ainda que póstumos, ou nela legitimação dos ilegítimos em virtude de subseqüente matrimônio”.

Por êsse dispositivo, o legislador português não sòmente exige que o testador não tivesse filhos, ao testar, como vai ao ponto de sòmente decretar a caducidade apenas da instituição de herdeiro, no caso de superveniência de filhos. E, ainda, no art. 1.760 tornou claro que ao nascimento de filhos após o testamento só invalidaria o testamento no excedente a têrça disponível.

Dai ensinar DIAS FERREIRA: “parece, pois, ter sido introduzido o presente art. 1.760 exatamente para revogar o preceito da Ord., liv. 4º, tít. 82, § 5º, que com a superveniência de filhos declarava totalmente nulo o testamento sem salvar sequer a têrça” (“Código Civil Português Anotado”, vol. 3, página 305).

Não é possível pretender interpretar o nosso Cód. Civil que se ateve rigidamente ao sistema das Ordenações, sôbre a matéria, lançando mão inconsideradamente da doutrina fundada em legislações estrangeiras que comprovadamente repeliram aquêle sistema e organizaram um outro com elementos estranhos alo nosso Direito.

O texto do art. 1.750 é claro e sôbre êle é que tem de ser lançada qualquer interpretação.

Declara que, “sobrevindo descendente sucessível ao testador que não o tinha ou não o conhecia quando testou, rompe-se o testamento em tôdas as suas disposições, se êsse descendente sobreviver ao testador”.

Pouco importa, assim, que o testador, ao testar, já tenha outros filhos. Se, então, ainda não tinha o filho que sobreveio ao testamento, rompe-se êste: “sobrevindo descendente sucessível ao testador que não o tinha (isto é, não tinha aquêle descendente que sobreveio), rompe-se o testamento”.

Pouco importa se, ao testar, o testador tinha ou não outros filhos. Disso não cogita o nosso legislador, que tem em vista em primeiro lugar a intenção presumida do testador que teria possivelmente disposto de outro modo em seu testamento se conhecesse a existência daquele novo filho; e, de outro lado, o interêsse de cada filho omitido, ao qual a lei sòmente permite seja privado da herança do ascendente mediante deserdação expressa ou tácita.

Êste segundo aspecto da questão é particularmente importante na interpretação do sistema adotado pelos arts. 1.750 e 1.752 do nosso Cód. Civil e sòmente poderá ser compreendido em tôda sua latitude mediante a adjutório do histórico da questão remontando à sua origem e seu fundamento no direito romano.

_______________________

Notas:

1 Esta 1ª parte do presente trabalho foi lida pelo autor como parte integrante de voto que proferiu, como revisor, na revista no 2.585, na apelação cível no 22.611, e adotada pelas Câmaras Cíveis Reunidas do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, contra apenas um voto, em sessão de 26 de outubro de 1955.

2 Referimo-nos a “descoberta” do art. 1.752 por analogia com o que ocorreu com a famosa “descoberta” do art. 1.384, § 1º do Cód. Civil francês, relativo à responsabilidade pelo fato das coisas que se tenha sob sua guarda. A fortuna dêste dispositivo, como mostram MAZEAUD et MAZEAUD, foi singular: “longtemps tenu pour une disposition sans portée propre, pour une simples annonce des textes qui le suivent, c’est vers lui que se tournent les juristes le jour on l’homme donne le mouvement à la matière, et on, de plus en plus souvent, il tombe victime de cette force aveugle qu’il a crée, mais qu’il ne sait compter qu’imparfaitement“. Sòmente um século depois de estar vigorando o Cód. Civil é que SALEILLES e JOSSERAND construíram sôbre á letra do art. 1.384, § 1º, uma teoria completa da responsabilidade pelo fato das coisas: “Ainsi, le texte jusque-là ignoré acquérait droit de cité, et dans la doctrine, et dans la jurisprudence. L’interprétation nouvelle est aujour’hui incontestée” (MAZEAUD et MAZEAUD, “Resp. Civile”, 2, ns. 1.038 e 1.141).

3 Parece que a querela já existia ao tempo de CÍCERO e POMPEU (Cic., 2ª ação contra Verres, 1, 42; Valerio Máximo, livro 7, c. VII, nº 2). Segundo CUJAS, teria provindo duma lei Glítia, porque, na inscriptio dum fragmento de GAIO existente no Digesto (5, 2, de inoff. test., lei 4), há referência a “libro singolari ad legem Glitiam“, tratando de matéria de testamento inoficioso… Mas não há certeza nem sôbre a verdadeira natureza nem sôbre a data dessa lei Glícia (DEMANGEAT, “Dr. Rom.”, 1, pág. 737).

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