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Responsabilidade Civil No Comércio Exterior Cobranças Indevidas E Indenizações Por Atrasos Logísticos

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PROCESSO CIVIL

Responsabilidade Civil No Comércio Exterior: Cobranças Indevidas E Indenizações Por Atrasos Logísticos

COMÉRCIO EXTERIOR

RESPONSABILIDADE CIVIL

Rubem Valente

Rubem Valente

23/05/2025

1 INTRODUÇÃO

De acordo com estudo da Bain & Company, publicado pelo jornal Valor Econômico, o Brasil teve um custo adicional de US$ 2,3 bilhões em 2024 apenas com atrasos em portos, o que representou um aumento de 15% em relação ao ano anterior. O país ocupa a terceira colocação mundial em impacto financeiro derivado de disrupções logísticas, atrás apenas de China e Estados Unidos. Tais dados evidenciam que falhas na cadeia logística deixaram de ser apenas um problema operacional e passaram a representar fator de risco jurídico e econômico concreto.

José de Aguiar Dias já advertia que toda manifestação humana traz em si o problema da responsabilidade. Quando um dever jurídico é descumprido, nasce para o seu autor o dever de reparação. A responsabilidade civil, assim, funciona como um mecanismo de equilíbrio social.

O presente artigo tem por objetivo examinar, sob uma perspectiva teórico-prática, os contornos da responsabilidade civil no contexto das operações de comércio exterior, destacando tanto os fundamentos dogmáticos aplicáveis quanto os reflexos concretos no ambiente negocial. Trata-se de uma temática que demanda não apenas a compreensão dos institutos jurídicos clássicos – como o nexo de causalidade, o dano, a culpa e o risco da atividade – mas também sua adequada aplicação diante das complexidades operacionais do comércio internacional contemporâneo. Ao abordar aspectos regulatórios, administrativos, preventivos e contenciosos, propõe-se uma análise que concilie a densidade conceitual da responsabilidade civil com a realidade dinâmica da logística internacional.

2 O NOVO CENÁRIO DO COMÉRCIO EXTERIOR E OS PREJUÍZOS INVISÍVEIS.

Com o aumento das importações e exportações em setores sensíveis como o hospitalar, farmacêutico e tecnológico, tornou-se cada vez mais frequente o surgimento de prejuízos ocultos, nem sempre contabilizados ou juridicamente enfrentados.

Entre os principais prejuízos estão os decorrentes de atrasos logísticos, retenções indevidas, paralisações operacionais e, sobretudo, as cobranças relacionadas à sobrestadia1. Segundo estimativas do setor, empresas brasileiras desperdiçam bilhões de reais por ano com taxas que poderiam ser evitadas ou discutidas judicialmente.

Maria Helena Diniz ressalta que a responsabilidade civil surge da violação de um dever jurídico preexistente, seja contratual ou não, e que a reparação deve ser ampla, abrangendo os danos patrimoniais e extrapatrimoniais.

3 QUANDO A CULPA NÃO É DO CLIENTE: RESPONSABILIDADE OBJETIVA NAS OPERAÇÕES LOGÍSTICAS.

Em grande parte das operações internacionais, o importador se vê cobrado por taxas elevadas(como demurrage2 e detention3), mesmo quando não deu causa direta ao atraso. Situações como greves, falhas no sistema público (ex.: Siscomex), ou omissões de intermediários, são frequentes. Ainda assim, a cobrança recai sobre o importador.

Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona explicam que a responsabilidade civil decorre da violação de um dever jurídico, que dá origem a um dever sucessivo de reparação. O dano, nesse contexto, não precisa ser exclusivamente patrimonial. Cavalieri Filho esclarece que a obrigação de reparar surge da violação de um dever jurídico primário, configurando o dever jurídico secundário.

O Enunciado 38 da I Jornada de Direito Civil afirma que a responsabilidade por atividade de risco se configura quando a atividade normalmente desenvolvida causa à pessoa determinado um ônus maior do que aos demais membros da coletividade.

4 GARGALOS LOGÍSTICOS E SUA IMPLICAÇÃO JURÍDICA: O QUE O OPERADOR PRECISA SABER.

A cadeia logística internacional é composta por múltiplos agentes: exportadores, agentes de carga4, armadores, terminais, transportadoras internas, despachantes e órgãos de fiscalização. A falha de um elemento impacta todos os demais.

O direito civil brasileiro acolhe tanto a teoria da causalidade adequada quanto a teoria da causalidade direta. Cavalieri entende que a adequada é a regra; Tepedino defende que o art. 403 adota a causalidade direta.

A jurisprudência admite, em certos casos, o dano in re ipsa5 — ou seja, presumido pela simples lesão de um direito.

5 COBRANÇAS INDEVIDAS: CINCO CASOS REAIS E AS TESES JURÍDICAS APLICÁVEIS.

A seguir, apresentam-se cinco hipóteses práticas envolvendo cobranças indevidas em operações de comércio exterior, extraídas da vivência de mercado e da jurisprudência atual. Em cada situação, é indicada a tese jurídica aplicável, com fundamento técnico e sugestão de encaminhamento.

Caso 1 – Cobrança de demurrage durante paralisação da Receita Federal.

Importador brasileiro teve a liberação da carga suspensa por sete dias devido à greve de auditores fiscais da Receita Federal. Após o período de free time, o armador cobrou demurrage.

Tese jurídica: A cobrança é indevida, pois o atraso decorreu de fato de terceiro (ente público), alheio à vontade do importador. A jurisprudência admite a exclusão do dever de indenizar em caso de caso fortuito ou força maior alheio à atividade da parte (Enunciado 443 da V Jornada de Direito Civil). Aplica-se ainda a teoria da quebra do nexo causal.

Caso 2 – Cobrança de detention sem entrega do contêiner vazio por indisponibilidade de janela no terminal.

O importador devolveu a carga no prazo, mas não conseguiu devolver o contêiner vazio por falta de agendamento no sistema do terminal portuário, que estava fora do ar.

Tese jurídica: A responsabilidade objetiva do transportador contratual impõe o dever de assegurar meios razoáveis para a devolução. Trata-se de fortuito interno, inerente à operação logística. A cobrança de detention neste caso é abusiva. A tese é reforçada pelo art. 187 do CC (abuso de direito) e pela teoria do risco da atividade (art. 927, parágrafo único).

Caso 3 – Armazenagem cobrada em duplicidade por erro do recinto alfandegado.

Empresa pagou armazenagem à operadora do terminal, mas foi posteriormente cobrada novamente por erro de conciliação no sistema interno do porto.

Tese jurídica: O pagamento em duplicidade caracteriza enriquecimento sem causa (art. 884 do CC). Além disso, configura dano in re ipsa, autorizando inclusive pedido de compensação por dano moral se houver negativação indevida ou constrangimento.

Caso 4 – Demurrage cobrada após solicitação formal de avaria e vistoria pendente por parte do armador.

A carga chegou com possível avaria. O importador solicitou vistoria oficial ao armador antes de liberar o contêiner, o que foi protelado. Enquanto isso, o relógio da demurrage seguiu correndo.

Tese jurídica: A mora é do armador, que criou impedimento à devolução. Aplica-se a exceção do não cumprimento do contrato (exceptio non adimpleti contractus). A cobrança é ilegal. A jurisprudência já afastou a demurrage em casos de retenção provocada por conduta do próprio credor.

Caso 5 – Cobrança de armazenagem indevida após trânsito aduaneiro autorizado.

Após deferimento de trânsito aduaneiro para interiorização da carga, o terminal de origem cobrou armazenagem pelos dias subsequentes, antes da efetiva remoção física da carga.

Tese jurídica: O deferimento do trânsito transfere a responsabilidade pela guarda da carga para o regime de trânsito. A cobrança pelo terminal de origem, após a autorização, é indevida. Aplica-se a tese da cessação do dever de custódia com base em ato administrativo válido e eficaz.

6 A ATUAÇÃO JURÍDICA ESTRATÉGICA COMO FERRAMENTA DE RESULTADO EMPRESARIAL.

O STJ consolidou o entendimento de que o agente marítimo não pode ser responsabilizado por infrações do armador estrangeiro (AgRg no RMS 19.120/RJ).

Silvio Rodrigues explica que a responsabilidade objetiva funda-se na teoria do risco, enquanto a responsabilidade subjetiva exige demonstração de culpa. Ambas coexistem no Código Civil (arts. 186, 187 e 927).

O STJ pacificou a possibilidade de cumulação de danos, editando a Súmula 37 e a Súmula 387. Além disso, conforme o Enunciado 631 da VIII Jornada de Direito Civil, é válida cláusula que limita ou exclui o dever de indenizar em contratos paritários, desde que não contrarie normas de ordem pública.

7 CONCLUSÃO.

A responsabilidade civil no comércio exterior não pode ser tratada como mera consequência de falhas operacionais. É ferramenta jurídica essencial para proteger o equilíbrio econômico das relações comerciais internacionais.

O operador jurídico que compreende a dinâmica do comércio internacional e os fundamentos da responsabilidade civil contribui diretamente para a redução de perdas e o fortalecimento da segurança jurídica nas operações.

Mais do que resolver conflitos, é papel do advogado antecipar riscos, estruturar defesas e participar ativamente da construção de soluções que tornem o comércio internacional brasileiro mais eficiente, previsível e justo.

Referências bibliográficas.

BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

BRASIL. Decreto nº 350, de 21 de outubro de 1935.

BRASIL. Projeto de Lei nº 1.572/2011. Código Comercial.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

PAMPLONA FILHO, Rodolfo; STOLZE, Pablo. Manual de direito civil. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2017.

RODRIGUES, Silvio. Direito civil: responsabilidade civil. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgRg no RMS 19.120/RJ.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Súmula 161, Súmula 187.

JORNADAS DE DIREITO CIVIL. Enunciados 38, 411, 443, 444, 445, 450, 451, 455, 456, 589, 631.

VALOR ECONÔMICO. Estudo aponta custo adicional de US$ 2,3 bilhões com atrasos logísticos no Brasil em 2024. Valor Econômico, São Paulo, 2024. Disponível em: https://valor.globo.com. Acesso em: 17 maio 2025.

NOTAS

1 Sobrestadia: permanência da carga ou equipamento além do tempo contratado, abrangendo demurrage e detention.

2 Demurrage: taxa cobrada pelo tempo excedente de permanência de um contêiner no terminal após o período livre (free time).

3 Detention: taxa pelo tempo excedente de uso do contêiner fora do terminal, geralmente suportada pelo importador.

4 Agente de cargas (NVOCC): operador de transporte que assume responsabilidade pelo transporte sem operar navios próprios, emitindo conhecimento de transporte em nome próprio.

5 Dano in re ipsa: dano presumido, que dispensa prova específica do prejuízo, como em casos de ofensa à honra.

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