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Responsabilidade civil na imprensa: de volta ao caso Escola Base

ESCOLA BASE

Anderson Schreiber

Anderson Schreiber

31/03/2023

O que ainda não aprendemos sobre a responsabilidade civil na imprensa

No mês passado, a obra audiovisual “Escola Base – Um repórter enfrenta o passado” foi eleita a melhor série documental do ano pela Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA).[1] No documentário, lançado em novembro de 2022, o jornalista Valmir Salaro revisita a atitude adotada pela imprensa brasileira diante de uma denúncia de pedofilia em uma escola de São Paulo, em 1994. À época, seis pessoas foram acusadas de abusar sexualmente de crianças de aproximadamente 4 anos de idade. Dentre os acusados, estavam as duas sócias da escola e seus respectivos maridos, um deles responsável pelo transporte escolar, além dos pais de um dos alunos.

Valmir Salaro foi o primeiro jornalista a divulgar as acusações formuladas por duas mães de alunos. O “furo” foi anunciado em rede nacional, sem que os acusados tivessem sido ouvidos. A notícia espalhou-se rapidamente e tomou as manchetes do país, ganhando menções em programas de TV. A retratação de abuso infantil despertou a ira da população, que pichou e tentou atear fogo à escola. Os acusados foram ameaçados de morte e precisaram sair às pressas de suas casas, algumas das quais foram invadidas e depredadas.

Toda a exploração midiática do episódio – que incluiu manchetes como “Kombi era motel na escolinha do sexo”[2] – baseou-se apenas nas acusações das duas mães, na opinião do delegado de polícia (embora a investigação estivesse ainda em uma etapa inicial) e em um laudo pericial falho, que acabou retificado dias depois. Com o tempo, as investigações avançaram e restou demonstrado que as acusações eram absolutamente infundadas. O inquérito foi arquivado, mas já era tarde: os acusados, que não puderam se manifestar antes da divulgação do “furo” jornalístico, já haviam tido suas vidas devastadas pela falência de seus negócios, mudanças de cidade, separações familiares.

Responsabilidade civil na imprensa

O caso Escola Base, como é, até hoje, conhecido nas Faculdades de Direito e de Comunicação de todo Brasil, tornou-se um símbolo de erro jornalístico. A observância do contraditório, comumente sintetizado no jargão profissional por meio da expressão “ouvir o outro lado”, não é apenas uma questão de bom senso, mas consiste em norma de conduta profissional expressamente prevista no Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, cujo artigo 14 afirma: “O jornalista deve: – Ouvir sempre, antes da divulgação dos fatos, todas as pessoas objeto de acusações não comprovadas, feitas por terceiros e não suficientemente demostradas ou verificadas”.[3]

Nem a busca do ineditismo, nem a pressão das redações servem de escusa ao dever de ouvir a outra parte. Tampouco o formato adotado pela notícia pode ser invocado para se eximir deste dever: não importa se o jornalista se comunica com seu público por meio de reportagens investigativas ou colunas de textos curtos, colunas de opinião, blogs, postagens em redes sociais, nada disso afasta o dever profissional de, ao noticiar um fato objetivo, dar voz a ambos os lados. A estrutura da mensagem jornalística, cada vez mais encapsulada em “notas”, não pode servir de carta branca para divulgar fatos sem a devida apuração e sem ouvir aqueles que podem ter suas vidas marcadas para sempre por uma notícia falsa ou retratada de modo meramente unilateral.

Outro aspecto para o qual o caso Escola Base deveria chamar a atenção é o tratamento jornalístico da opinião de autoridades públicas. Mais uma vez, o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros oferece um parâmetro claro, ao determinar em seu artigo 7º que “o compromisso fundamental do jornalista é com a verdade dos fatos, e seu trabalho se pauta pela precisa apuração dos acontecimentos e sua correta divulgação.” Ao jornalista não basta, portanto, um comportamento passivo, limitado a chancelar as versões oficiais. Bem ao contrário, cabe ao jornalista investigar a verdade dos fatos, fiscalizando e mesmo questionando as autoridades públicas sobre suas declarações.

Exemplo desta adequada conduta jornalística foi vista mais recentemente no caso Amarildo. O ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza havia desaparecido após ter sido levado até a sede da Unidade de Polícia Pacificadora instalada na Rocinha, no Rio de Janeiro. Em suas declarações, diversos policiais afirmaram que, após averiguações, Amarildo teria sido liberado pela polícia.[4] As câmeras de segurança, no entanto, não registraram o momento da saída. Por meio de escutas telefônicas, colaborações e reconstituições, descobriu-se que Amarildo foi torturado e morto por policiais militares. A descoberta deveu-se, em larga medida, à firme atuação de jornalistas que pressionaram as autoridades públicas a investigar o crime, ampliando, de modo marcante, o debate sobre a violência policial nas favelas do Rio de Janeiro.[5]

Escola Base – Um repórter enfrenta o passado

O documentário “Escola Base – Um repórter enfrenta o passado” tem muitos méritos. Não é fácil, naturalmente, revisitar os próprios erros, especialmente quando geram consequências tão desastrosas. Ao assistir ao documentário, o espectador compreende, com a dureza própria da realidade, o efeito catastrófico que a divulgação de um fato falso pode ter sobre a vida das pessoas – lição que se faz ainda mais relevante na realidade atual, marcada pelo uso irresponsável (quando não deliberadamente nocivo) do encaminhamento de informações por meio das redes sociais e aplicativos de mensagens. Em episódio recente, uma jovem teve seu nome associado a uma imagem de sexo ao ar livre em São Paulo e precisou usar suas próprias redes sociais para afirmar que não se tratava dela, chegando ao ponto de precisar explicar que era loira, enquanto a mulher no vídeo era morena.[6]

Por vezes, os efeitos são mais brutais. Basta lembrar o episódio, ocorrido em 2017, em que uma multidão em Araruama (RJ) tentou linchar um casal após a “viralização” de mensagens de WhatsAppque os apontavam como responsáveis pelo sequestro de uma criança. O casal sofreu ataques físicos, que somente não foram mais graves porque a Guarda Civil e a Polícia Militar atuaram em sua defesa.[7] Casos assim mostram a importância de se utilizar de modo responsável instrumentos de comunicação, que hoje não abrangem apenas a mídia tradicional, mas também mecanismos difusos como redes sociais e aplicativos de mensagens.

Embora tenha muitos méritos, o documentário “Escola Base – Um repórter enfrenta o passado” acaba por falhar clamorosamente bem naquilo que deveria ter sido aprendido com aquele trágico episódio. Em entrevista, o repórter (um gigante do jornalismo investigativo nacional, registre-se) foi franco e transparente ao tratar do objetivo do documentário: “tinha que falar sobre o meu erro na cobertura e da minha culpa”.[8] A declaração se repete, em diversos momentos, ao longo da obra. Todavia, o que o documentário acaba por sugerir é que o erro da imprensa foi dar voz às duas mães, responsáveis pela acusação, e especialmente ao delegado que se apressou em dar sua opinião ainda no início das investigações.

Ocorre que nem o delegado nem as duas mães foram ouvidas no documentário. A equipe tenta visivelmente entrevistar esses personagens, mas o máximo que se vê são negativas através de portas ou interfones. Se isso poderia ser suficiente para noticiar um fato atual, soa como muito pouco para um documentário que se propõe a revisitar, quase 30 anos depois, um caso que se tornou célebre justamente pela ausência de retratação do lado dos acusados.

O erro do caso Escola Base acaba, nesse sentido, por se repetir. Se a maior responsabilidade foi, de fato, do delegado ou das referidas mães ou dos médicos legistas, soa duvidosa a conveniência de veicular um documentário sobre o caso sem ouvi-los. Neste ponto, parece inevitável a sensação de que o documentário acabou por se concentrar mais em uma tentativa de isentar a imprensa do que em revisitar o caso em sua real dimensão e profundidade. O próprio encontro do repórter com algumas das pessoas falsamente acusadas acaba por ocorrer em área vazia do edifício que abrigava as produções jornalísticas da TV Globo em São Paulo à época dos fatos. O território nada neutro acaba provocando algum desconforto no espectador ao direcionar o foco da abordagem nitidamente sobre o jornalista e suas justificativas para o que ocorreu, em um momento que deveria servir para finalmente dar voz às vítimas.

Revisitar o caso Escola Base não significa tão-somente escrutinar erros de cobertura jornalística, mas também erros jurídicos. O documentário não menciona, mas, após o arquivamento do inquérito, o casal de proprietários da Escola Base e o responsável pelo transporte escolar ajuizaram ações indenizatórias em face de veículos de comunicação e do estado de São Paulo pleiteando reparação pelos danos colossais que haviam sofrido em suas vidas.

Indenizações

A TV Globo, o jornal Folha de S.Paulo, a revista IstoÉ e o Governo de São Paulo foram condenados a indenizar cada um dos autores em R$ 450 mil, R$ 250 mil, R$ 120 mil e R$ 250 mil, respectivamente.[9] O SBT chegou a ser condenado em uma indenização de R$ 300 mil pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), mas a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reduziu a indenização para R$ 100 mil, ao argumento de que a emissora não podia ser condenada em valor superior ao governo paulista, tendo em vista o erro do delegado na condução do inquérito[10] – argumento que é, no mínimo, controverso, na medida em que a amplificação acrítica da voz do agente público em cadeia nacional pode, frequentemente, gerar um efeito mais gravoso que sua falha no exercício da função.

O certo é que os valores indenizatórios, recebidos muitos e muitos anos depois, seguramente não se mostraram suficientes para compensar as vítimas que tiveram suas vidas devastadas pelo episódio e nunca mais foram as mesmas. A própria 3ª Turma do STJ chegou a destacar que “não há como negar que, muitas vezes, a condenação imposta pela mídia suplanta a condenação judicial, embora nossa Constituição Federal defenda a liberdade de imprensa tanto quanto defende o princípio da proteção da honra e da intimidade da pessoa. Desse modo, o espetáculo midiático deve ser coibido pela eficácia dessas garantias”.[11]

A liberdade de imprensa é amparada pela Constituição não apenas para que se possa informar a sociedade acerca dos fatos, mas também para que as autoridades públicas possam ser questionadas no exercício dos poderes constituídos. A imprensa é, em qualquer caso, um importante instrumento de fiscalização do Estado. O caráter oficial de um pronunciamento não retira a sua natureza unilateral. Ouvir o outro lado é um dever incontornável da imprensa e uma garantia indispensável contra as notícias equivocadas, objetivamente falsas ou deliberadamente deturpadas para atender interesses que não coincidem com a busca da verdade. É o que já devíamos todos ter aprendido com o caso Escola Base.

Fonte: Jota

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LEIA TAMBÉM


NOTAS

[1] “Documentário ‘Escola Base – Um repórter enfrenta o passado’, do Globoplay, ganha prêmio APCA” (G1, 6.2.2023).

[2] “Jornalista admite erro que não foi só seu em filme do caso Escola Base” (Folha de S. Paulo, 16.11.2022).

[3] “Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros”, disponível em abi.org.br.

[4] “‘Sou inocente’, diz PM acusado de comandar tortura contra Amarildo” (G1, 29.6.2015).

[5] Mais informações sobre o desfecho do caso Amarildo podem ser encontradas em: “Caso Amarildo: entenda o que cada PM condenado fez, segundo a Justiça” (G1, 2.2.2016). Desde o início, os telejornais locais deram amplo destaque ao caso, acompanhando as investigações. Apurações feitas pela imprensa divulgaram provas que contrariavam a versão dos policiais militares. Mais informações sobre a atuação da imprensa podem ser obtidas em: “Caso Amarildo” (Memória Globo, 28.10.2021).

[6] Conforme amplamente divulgado no tiktok da mulher falsamente acusada de participar da cena da sexo. Sobre o tema, ver: “Casal é flagrado fazendo sexo em terraço. Veja vídeo e entenda fetiche” (Metrópoles, 10.2.2023).

[7] “Multidão tenta linchar casal após boato de sequestro em WhatsApp” (G1, 5.4.2017).

[8] “Documentário ‘Escola Base – Um repórter enfrenta o passado’, do Globoplay, ganha prêmio APCA” (G1, 6.2.2023).

[9] Para mais detalhes, ver “Indenizações do caso Escola Base já superam os R$ 8 mi” (Folha de S.Paulo, 26.10.2006).

[10] STJ, 2ª T, REsp 351.779/SP, Rel. Min. Eliana Carmon, j. 19.11.2002.

[11] STJ, 3ª T, REsp 1.215.294/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 17.12.2013.

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