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Repensando o Direito civil Brasileiro (21): Estados das pessoas, identidade de gênero, orientação sexual e o Direito Civil
Felipe Quintella
07/07/2017
A convite do amigo Alexandre de Melo Franco Bahia, também autor do GEN, participei esta semana do 3º Encontro sobre Identidade — Transgeneridade e Intersexualidade, promovido pelo Departamento de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto, e organizado pelos Profs. Alexandre Bahia e Tatiana Ribeiro de Souza.
O evento, de altíssimo nível, gerou diversos questionamentos, e mais do que nunca, desde então, tenho repensado o Direito Civil brasileiro do ponto de vista das questões de identidade de gênero e de orientação sexual.
O assunto sempre me faz lembrar Teixeira de Freitas e a formação do Direito Civil no Brasil.
Na Consolidação das Leis Civis, obra preparatória para o Código Civil, Teixeira de Freitas repeliu as diversas classificações das pessoas quanto aos seus estados, distinguindo apenas as capazesde exercer os atos da vida civil das incapazes.[1] Sobre as críticas que recebeu por essa opção metodológica, ponderou que “todas as outras divisões são ociosas, são distinções inúteis”; que, em seu trabalho, cortara “os fios desse Direito Civil míope, cioso, e armado com o seu cutelo de morte civil”; e concluiu comentando, sobre as críticas, que sua resposta “foi o silêncio, foi um sorriso de piedade”.[2]
Um ano mais tarde, ao publicar a primeira parte do seu Esboço do Código Civil, Freitas voltou ao assunto, e explicou, sobre as clássicas e variadas denominações das pessoas conforme seus estados:
Daí vem tantas classificações inúteis de pessoas nos livros de Direito Civil. Não aparecem outras neste Projeto senão as indispensáveis que são unicamente as determinadas pelas incapacidades (incapacidades notórias e de fato), e pelas relações de família. Fujo da palavra — estado — porque não careço dela, e para não cair na confusão em que laboram até hoje os Escritores de Direito Francês.[3]
Pois bem. Lembrar de pontos do pensamento de Teixeira de Freitas sempre me fascina, para além do conteúdo instigante, por comprovar a não-linearidade da História.
Eis que, 160 anos após a publicação da Consolidação das Leis Civis, somos levados novamente a pensar na relação entre os estados das pessoas e o Direito. Isso porque, a despeito do que pensava Freitas, outros estados, para além dos de família e dos relacionados com a teoria das capacidades — baseados no discernimento e na possibilidade de manifestação de vontade e de exercício de atos da vida civil por si só —, tornaram-se juridicamente relevantes. Aqui, eu arriscaria dizer: muito menos em razão do sistema jurídico que se consolidou a partir do século XIX, e muito mais em razão da inevitável interface entre o pensamento jurídico e as relações sociais, que explica o influxo, no Direito, de ideias naturalizadas no meio social, ainda que originalmente repelidas ou ausentes nas construções jurídicas.
Essa constatação me parece ainda mais verdadeira no contexto da nova ordem constitucional, fundada pela Constituição da República de 1988.
Daqueles outros estados, certamente que estão entre os que mais demandam atenção atualmente os referentes à identidade de gênero e à orientação sexual.
Isso porque a sociedade brasileira ainda tem muita dificuldade em lidar com as pessoas transgêneras — ou seja, pessoas cuja identidade de gênero é diversa do sexo biológico —, com as pessoas de gênero fluido ou sem identidade de gênero — respectivamente, as que ora se identificam com o gênero feminino, ora com o masculino, e as que não se identificam com gênero algum —, e com as pessoas de orientação sexual homoafetiva ou bissexual.
Tenho me preocupado muito com qual seria o papel do Direito — do Direito Civil, em especial — acerca dessas questões.
No evento em Ouro Preto a que me referi no início desse texto, discutimos se deveria ou não se pensar em um terceiro gênero, além do masculino e do feminino.
Pensando do ponto de vista preponderantemente jurídico, o que me parece é que ao menos no campo do Direito Civil devemos repelir qualquer interferência de gênero, haja dois, três ou mais, bem como de orientação sexual. Isso não significa negar que haja dois, três ou até mais gêneros, nem que há mais de uma manifestação da vontade sexual, que leva a diversas orientações sexuais. Significa que o Direito Civil deve ser indiferente a elas, não no sentido de discriminar, mas, ao contrário, de garantir a mais ampla liberdade da pessoa natural quanto a essas questões.
Quer dizer, para mim, as pessoas devem ter assegurados os seus direitos da personalidade, devem poder contrair obrigações em geral, celebrar contratos, possuir bens, adquirir propriedade, constituir família, ter filhos e elaborar testamento independentemente do gênero e da orientação sexual.
Voltando a Teixeira de Freitas, somente devem ser relevantes, na disciplina do Direito Civil, a capacidade das pessoas — relacionada ao seu discernimento e à sua possibilidade de manifestação de vontade e de exercício pessoal de atos — e os vínculos de parentesco.
A identidade de gênero e a orientação sexual somente devem ser suscitadas — e, aí sim, com toda razão — para conquista de reconhecimento e visibilidade, para que se vença qualquer obstáculo à vida civil.
Exemplos contundentes são a luta pelo reconhecimento da união estável e do casamento entre pessoas homoafetivas, e pela mudança de nome de pessoas transexuais independentemente de cirurgia de adequação sexual. Nesses casos, foi imprescindível a discussão desses estados da pessoa. Todavia, o resultado jurídico ideal, na minha opinião, é o que se viu quanto a esses dois temas: reconheceu-se a possibilidade da união estável e do casamento com a consequente aplicação da mesma disciplina tanto a pessoas heteroafetivas quanto a pessoas homoafetivas, bem como se reconheceu a possibilidade da alteração no assento do nascimento sem qualquer referência pública à causa, em especial à transexualidade.
Trata-se de matéria, no entanto, sobre a qual precisamos permanecer abertos para o diálogo; matéria que é imprescindível constantemente repensar.
[1] FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das Leis Civis. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1857.
[2] __________. Nova Apostila à Censura do Senhor Alberto de Moraes Carvalho sobre o Projeto do Código Civil português. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1859, p. 122-123.
[3] __________. Esboço do Código Civil. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1860, p. 24.
Veja também:
- Decodificando o Código Civil (26): A ordem de vocação hereditária e o inacreditável art. 1.829 (Parte II)
- Decodificando o Co?digo Civil (25) – A ordem de vocac?a?o heredita?ria e o inacredita?vel art. 1.829 (Parte I)
- Decodificando o Código Civil (24): A (polêmica) classificação das benfeitorias
- Repensando o Direito Civil Brasileiro (20): A pluralidade dos modelos de família e o legislador (parte 2)
- Decodificando o Código Civil (23): União estável e contrato de namoro
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