GENJURÍDICO
De Aranha a Vini Jr. quem responde pelo racismo nos estádios de futebol

32

Ínicio

>

Artigos

>

Civil

ARTIGOS

CIVIL

De Aranha a Vini Jr.: quem responde pelo racismo nos estádios de futebol?

FUTEBOL

RACISMO

Anderson Schreiber

Anderson Schreiber

03/07/2023

Uma onda mundial de solidariedade formou-se, há duas semanas, em torno de Vinícius Júnior depois que o atleta foi vítima de racismo em uma partida entre Real Madrid e Valencia, válida pela 35ª rodada do Campeonato Espanhol. Qualquer ato de racismo já merece punição, mas o caso de Vini Jr. envolve uma sequência de atos que desvela um racismo sistemático.

Racismo nos estádios de futebol

Em outubro de 2021, Vini Jr. denunciou pela primeira vez as ofensas raciais que sofreu de torcedores do Barcelona. A La Liga, organizadora do Campeonato Espanhol, levou a denúncia do jogador à Procuradoria de Barcelona, que terminou por arquivá-la sob o argumento de que não foi possível identificar os criminosos.[1] Em março de 2022, o jogador sofreu novo atentado à sua dignidade, com a gravação de insultos racistas proferidos por torcedores do Mallorca.[2]

Meses depois, Pedro Bravo, um influente agente de atletas, comentou, em um importante programa da TV espanhola, que a conduta do jogador era desrespeitosa, sugerindo que o brasileiro parasse de “dar uma de macaco”.[3] No mesmo mês, pouco antes do clássico entre Atlético de Madrid e Real Madrid,[4] nova denúncia foi apresentada à Procuradoria de Madri com o registro de 24 insultos raciais em cantos de torcedores. A denúncia foi, novamente, arquivada, sob a justificativa de que “uma vez contextualizados os insultos racistas, não constituiriam um crime contra a dignidade da pessoa”. [5]

Em janeiro de 2023, um grupo de criminosos simulou o enforcamento de Vini Jr. em uma ponte perto do Centro de Treinamento do Real Madrid, sob uma faixa em que se lia: “Madrid odeia o Real”.[6] A imagem tornou-se manchete nos principais jornais esportivos do mundo. No mês seguinte, novos insultos racistas foram proferidos contra o brasileiro em partida contra o Mallorca – desta vez com a identificação do agressor registrada em vídeo e um inquérito instaurado para apurar a ocorrência de crime de ódio. Em março deste ano, novos cânticos racistas no estádio e a notícia de que a Procuradoria do país não havia dado prosseguimento à investigação de denúncias anteriores sob o argumento de que os cânticos “desagradáveis e desrespeitosos” integram o contexto de uma “partida de futebol de máxima rivalidade” ou porque “duraram apenas alguns segundos”.[7]

A partida de duas semanas atrás, entre Real Madrid e Valencia, insere-se, como se vê, em uma longa sucessão de agressões racistas contra Vini Jr. sob a omissão conivente das autoridades públicas e das próprias entidades envolvidas no Campeonato Espanhol. Após ouvir os gritos que o chamavam, em coro, de “macaco” (“mono”), o jogador terminou por apontar um dos torcedores como o autor de insultos racistas. A partida foi interrompida por alguns minutos. Irritado com a paralisação do jogo, o goleiro do Valencia iniciou uma discussão com Vinícius Júnior, que resultou em uma confusão generalizada entre os jogadores dos dois times. Por orientação do árbitro de vídeo, o jogador brasileiro acabou por receber o cartão vermelho e ser expulso.[8]

O episódio revoltou torcedores em todo o mundo. O Real Madrid,[9] a Fifa[10] e os patrocinadores da própria competição espanhola[11] cobraram o cumprimento do protocolo de sanções por parte da La Liga. O presidente da La Liga, que vinha minimizando os casos de racismo contra Vini Jr., afirmou que não era essa sua intenção.[12] O árbitro de vídeo que levou à injusta expulsão foi demitido,[13] o cartão vermelho foi anulado e um setor do Estádio Mestella foi fechado pelo Comitê de Competição da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF).[14] O Valencia, em nota oficial, comprometeu-se a identificar e expulsar para sempre todos os torcedores que praticaram insultos racistas no estádio.[15]

As medidas não parecem suficientes para impedir novos ataques racistas. A experiência internacional revela que, no que tange a eventos desportivos, as punições individuais dos agressores devem ser acompanhadas da responsabilização dos próprios clubes e das entidades organizadores dos eventos.

Goleiro Aranha

No Brasil, foi emblemático o caso do goleiro Aranha, arqueiro do Santos Futebol Clube, que foi insultado com agressões racistas durante uma partida contra o Grêmio pela Copa do Brasil de 2014. O plenário do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) retirou pontos do Grêmio, eliminando o clube daquela edição da Copa do Brasil em virtude dos insultos racistas.[16]

O Código Brasileiro de Justiça Desportiva (Resolução CNE 1/2003) oferece base normativa para esta espécie de punição, determinando que times e torcidas que corroborem com a prática de racismo sujeitam-se, entre outras penas, à perda de pontos, interdição de praça de desportos, perda de mando de campo, indenização, eliminação, perda de renda e exclusão de campeonato ou torneio (artigos 170 c/c 258).

O Estatuto do Torcedor (Lei 16.671/2003) caminha na mesma direção, proibindo expressamente ao torcedor “portar ou ostentar cartazes, bandeiras, símbolos ou outros sinais com mensagens ofensivas, inclusive de caráter racista ou xenófobo” ou “entoar cânticos discriminatórios, racistas ou xenófobos” (artigo 13-A, IV e V). As sanções no Estatuto do Torcedor estendem-se às organizações desportivas e às entidades de prática desportiva, podendo atingir seus dirigentes.[17]

Trata-se, em última análise, de aplicar a Constituição brasileira, que elege como objetivo fundamental da República a promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV). A mesma Constituição afirma que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (art. 5º, XLI) e reprime o racismo como crime imprescritível e inafiançável (art. 5º, XLII).

Vinícius Júnior tem marcado bem mais que gols no futebol espanhol; tem marcado uma luta cotidiana contra o ódio racial que contamina multidões e que conta com a conivência também diária das autoridades públicas. Supor que um insulto racista pode passar impune porque integra um contexto de “rivalidade”, porque “durou apenas alguns segundos” ou porque “não se pode identificar os autores das agressões” significa fomentar o racismo e criar um vasto campo de irresponsabilidade onde o ódio é semeado.

Fonte: Jota

VEJA AQUI OS LIVROS DO AUTOR!


LEIA TAMBÉM


[1] Ver, para mais detalhes, a reportagem intitulada “La Liga denuncia o Barcelona ao Ministério Público por insultos racistas da torcida contra Vini Jr”, publicada pelo G1 em 27.10.2021 (ge.globo.com).

[2] A reportagem “TV flagra insultos racistas de torcida do Mallorca contra Vini Jr”, publicada pelo G1 em 15.3.2022 (ge.globo.com).

[3] “Empresário se explica após usar termo racista contra Vinicius Jr. e pede desculpas: ‘Minha intenção não foi ofender’” (ESPN, 16.9.2022)

[4] A reportagem “Vinicius Junior não marca, mas baila sobre o racismo em vitória do Real Madrid” foi publicada pela Folha de S. Paulo, em 18.9.2022 (www.folha.uol.com.br).

[5] Confira a reportagem intitulada “Justiça da Espanha arquiva processo sobre cantos racistas destinados a Vinicius Jr., diz imprensa local”, publicada pelo G1, em 2.12.2022 (www.g1.com.br).

[6] Ver, para mais detalhes, a reportagem publicada pelo jornal O Globo intitulada “Boneco com camisa de Vinícius Jr. aparece ‘enforcado’ em ponte em Madri; jogador espera punição contra crimes de ódio, diz representante”, em 26.1.2023 (www.g1.globo.com).

[7] Ver reportagem da CNN Brasil intitulada “Impunidade em ataques racistas contra Vini Jr gera discussão na Espanha: ‘estão lavando as mãos”, publicada em 15.3.2023.

[8] Vinícius Júnior publicou, em 21.5.2023, em seu perfil no Twitter: “Não foi a primeira vez, nem a segunda e nem a terceira. O racismo é o normal na La Liga. A competição acha normal, a Federação também e os adversários incentivam. Lamento muito. O campeonato que já foi de Ronaldinho, Ronaldo, Cristiano e Messi hoje é dos racistas. Uma nação linda, que me acolheu e que amo, mas que aceitou exportar a imagem para o mundo de um país racista. Lamento pelos espanhóis que não concordam, mas hoje, no Brasil, a Espanha é conhecida como um país de racistas. E, infelizmente, por tudo o que acontece a cada semana, não tenho como defender. Eu concordo. Mas eu sou forte e vou até o fim contra os racistas. Mesmo que longe daqui.

[9] Ver, para mais detalhes, a reportagem intitulada “Real Madrid cobra Federação Espanhola e detona dirigente, árbitros e VAR: ‘Nunca se pode responsabilizar a vítima’” publicada pela ESPN, em 22.5.2023 (www.espn.com.br).

[10] [10] Sobre a notícia, ver a reportagem “Racismo contra Vini Jr: Fifa vai notificar La Liga e cobrar protocolo por punições” publicada pela CNN Esportes, em 22.5.2023 (www.cnnbrasil.com.br).

[11] A reportagem intitulada “Patrocinadores de La Liga se solidarizam com Vinicius Junior” foi publicada pelo Globo Esporte, em 23.5.2023 (www.globoesporte.globo.com).

[12] Ver, para mais detalhes, a reportagem publicada pela UOL intitulada “Chefe de La Liga se desculpa por mensagens contra Vini: ‘não era intenção’”, publicada em 24.5.2023 (www.uol.com.br).

[13] A reportagem intitulada “Árbitro de vídeo de Real Madrid x Valencia é demitido pela La Liga após falha” foi publicada pela Terra, em 23.5.2023 (www.terra.com.br)

[14] A reportagem intitulada “Federação anula expulsão de Vinicius Junior e fecha setor de estádio do Valencia” foi publicada pelo Globo Esporte, em 23.5.2023 (www.ge.globo.com)

[15]Confira a reportagem intitulada “Valencia banirá para sempre os torcedores que cometeram atos racistas a Vini Jr”, publicada pelo jornal O Globo, em 22.5.2023 (www.oglobo.globo.com)

[16] Ver, para mais detalhes, a matéria intitulada “Pleno do STJD retira três pontos e elimina o Grêmio da Copa do Brasil”, publicada pelo Globo Esporte, em 26.9.2014 (www.globoesporte.globo.com)

[17] “Art. 37. Sem prejuízo das demais sanções cabíveis, a entidade de administração do desporto, a liga ou a entidade de prática desportiva que violar ou de qualquer forma concorrer para a violação do disposto nesta Lei, observado o devido processo legal, incidirá nas seguintes sanções: I – destituição de seus dirigentes, na hipótese de violação das regras de que tratam os Capítulos II, IV e V desta Lei (…)”.

Assine nossa Newsletter

Li e aceito a Política de privacidade

GENJURÍDICO

De maneira independente, os autores e colaboradores do GEN Jurídico, renomados juristas e doutrinadores nacionais, se posicionam diante de questões relevantes do cotidiano e universo jurídico.

Áreas de Interesse

ÁREAS DE INTERESSE

Administrativo

Agronegócio

Ambiental

Biodireito

Civil

Constitucional

Consumidor

Direito Comparado

Direito Digital

Direitos Humanos e Fundamentais

ECA

Eleitoral

Empreendedorismo Jurídico

Empresarial

Ética

Filosofia do Direito

Financeiro e Econômico

História do Direito

Imobiliário

Internacional

Mediação e Arbitragem

Notarial e Registral

Penal

Português Jurídico

Previdenciário

Processo Civil

Segurança e Saúde no Trabalho

Trabalho

Tributário

SAIBA MAIS

    SAIBA MAIS
  • Autores
  • Contato
  • Quem Somos
  • Regulamento Geral
    • SIGA