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Quem é atingido pela coisa julgada no NCPC?
10/07/2018
Nas colunas anteriores, tratei do conceito de coisa julgada e de seus limites. Apontei que (i) o NCPC perdeu importante oportunidade de evoluir no conceito da coisa julgada[1] e (ii) que as mudanças nos limites objetivos da coisa julgada não foram boas[2] – isso, claro, sob a minha perspectiva, sendo certo que existem opiniões em sentido diverso.
E para encerrar esta trilogia, neste momento trato dos limites subjetivos da coisa julgada, ou seja, quem é atingido pela coisa julgada[3]. Houve relevante mudança no texto legal; mais precisamente, houve duas importantes supressões no atual dispositivo, considerando o anterior. E, infelizmente, uma vez mais, entendo que não andou bem o legislador na modificação trazida ao sistema.
A regra básica do Código anterior era que a coisa julgada não prejudicava nem beneficiava terceiros. Porém, o sistema anterior trazia uma exceção, constante da parte final do art. 472 do CPC/1973, no tocante às causas envolvendo o estado das pessoas (como, por exemplo, casamento).
A primeira supressão do NCPC foi exatamente a qualquer menção relativa às ações de estado. Portanto, no atual Código não há qualquer distinção entre a coisa julgada formada nessas ações e nas demais. No CPC/1973, o art. 472 apontava que haveria coisa julgada em relação a terceiros, nas ações de estado, desde que todos os interessados, em litisconsórcio necessário, fossem citados. O dispositivo era criticado pela doutrina, por ao menos duas razoes: (i) se a hipótese fosse de litisconsórcio necessário, os envolvidos seriam partes e, portanto, normalmente atingidos pela coisa julgada e (ii) havia confusão entre os conceitos de coisa julgada (imutabilidade e indiscutibilidade da decisão) e efeitos da sentença (alterações que a sentença acarreta fora dos autos). A finalidade do dispositivo era com que os efeitos da sentença pudessem atingir terceiros (e o CPC/1973 erroneamente falava em coisa julgada). O fato é que os efeitos da sentença são sempre erga omnes. Apesar de a coisa julgada atingir as partes que litigaram no processo (exatamente os limites subjetivos ora analisados), os efeitos da sentença a todos atingem, independentemente da participação no processo.
Para exemplificar, basta imaginar um caso de divórcio. Acaso ex-mulher e ex-marido somente serão divorciados perante eles próprios? Não. Mas então haverá coisa julgada perante todos? Também não. A decisão de divórcio surtirá o efeito de modificar o estado civil dos cônjuges, que poderão se casar com quem cada um quiser: está-se, aqui, diante de efeito da sentença e não coisa julgada[4]. E isso ocorre em qualquer situação, não só no divórcio ou em ações de estado. Assim, é de se elogiar a exclusão, no NCPC, dessa parte do artigo que existia no sistema anterior.
A segunda e mais relevante supressão se refere à expressão “não beneficiar terceiros”. Para a adequada compreensão do tema, vale comparar ambos os artigos (itálicos nossos):
– CPC/1973, art. 472. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros.
– NCPC, art. 506. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros.
Ou seja, pela simples comparação entre os artigos, seria de se concluir que o NCPC não restringe a coisa julgada às partes, apenas vedando que terceiros sejam prejudicados. Assim, a contrario senso, a coisa julgada poderia beneficiar terceiros.
Porém, qual o alcance dessa modificação? Há, efetivamente, mudança em relação ao sistema anterior? A questão ainda está em aberto na doutrina e jurisprudência – porém, é certo que suscita debates e traz insegurança aos jurisdicionados.
Há diversas possíveis interpretações para a mudança. Até o momento, cataloguei na doutrina cinco possíveis entendimentos. Vejamos quais são.
Processo coletivo
Para esta corrente, a afirmação de que a coisa julgada poderia beneficiar terceiros se justificaria considerando as sentenças genéricas coletivas (CDC, art. 95), que podem ser liquidadas por indivíduos, os beneficiários que se enquadram naquela situação.
A teoria de fato enfrenta uma situação de coisa julgada para além das partes. Porém, uma das críticas a esta corrente é que o NCPC não trata do processo coletivo, mas apenas do processo individual. Assim, defender que a nova legislação regula a coisa julgada no processo coletivo apenas no tocante à coisa julgada, em meu entender, não é algo que se mostre seria muito lógico.
Causas que envolvam terceiros ligados à lide/litisconsórcio unitário
Também é possível interpretar a modificação para situações em que terceiros ligados ao conflito de direito material. Como exemplo, condôminos ou sócios, em relação a algum conflito relativo ao condomínio ou sociedade. Assim, uma decisão judicial quanto a uma assembleia poderia também beneficiar os demais sócios ou condôminos que estivessem na mesma situação. Mas vale destacar que se o terceiro (sócio ou condômino) ingressar em juízo, será considerado litisconsorte unitário e, nesse caso, como parte, perde a relevância falar-se em extensão da coisa julgada a terceiros.
Contra esta corrente pode ser apontado o seguinte: (i) conforme lição de Botelho de Mesquita[5], nessa situação em que o colegitimado não ingressa em juízo (em litisconsórcio originário ou superveniente) não se está diante de coisa julgada perante terceiro, mas sim de efeito da sentença, que a todos atinge; (ii) antes da alteração legislativa, no Código anterior, é certo que já havia essa situação de legitimados concorrentes – e sem que houvesse a necessidade de se falar em coisa julgada beneficiando terceiros e (iii) pode ser que o terceiro não esteja de acordo com a decisão judicial, hipótese em que estaríamos diante de coisa julgada que o prejudicaria, o que é vedado expressamente pelo artigo – e isso reforça que a hipótese é de efeito da sentença e não de coisa julgada.
Obrigações solidárias
Para essa corrente, passaria o NCPC a prever, em linha com o direito material, que o terceiro pode se beneficiar de uma sentença proferida em processo do qual não foi parte, nas hipóteses de obrigações solidarias. O tema, no âmbito Código Civil, é tratado no art. 274 – que foi alterado pelo NCPC: “O julgamento contrário a um dos credores solidários não atinge os demais, mas o julgamento favorável aproveita-lhes, sem prejuízo de exceção pessoal que o devedor tenha direito de invocar em relação a qualquer deles”. Portanto, se a decisão do processo for favorável ao terceiro, ele poderá se aproveitar dessa decisão, desde que o conflito não tenha sido julgado com base em fundamento específico da parte.
Esta corrente em parte assemelha-se à segunda no sentido de que, existindo a solidariedade, está-se diante de situação de terceiros “ligados à lide”. Porém, é mais restrita, pois limita-se às situações de solidariedade. Sendo assim, as críticas (i) e (ii) acima expostas também se aplicam – mas não a (iii), considerando a previsão do art. 274 do CC.
Eficácia expandida da coisa julgada individual
Esta é a tese que mais alterações propõe em relação ao sistema anterior. Refere-se não ao mesmo conflito (como na corrente 2), mas a pessoas em situação análoga, quanto aos fatos e ao direito (ou seja, para situações massificadas[6]). Basta imaginar que, em uma demanda entre uma pessoa física e determinada empresa, a coisa julgada favorável à pessoa física poderá beneficiar terceiros Como exemplos: uma discussão de um cliente contra uma empresa de celular formaria coisa julgada em relação a todos os outros clientes no Brasil que estivessem na mesma situação fática, à luz do mesmo contrato. Ou um servidor público federal que obtenha uma decisão favorável quanto a seus vencimentos, cuja coisa julgada beneficiaria todos os outros servidores no país que estivessem na mesma situação fático-jurídica, sem a necessidade de processo de conhecimento para cada um dos demais servidores.
A crítica a essa corrente seria o fato de que qualquer processo individual poderia se transformar em um processo coletivo, com uma eficácia imensa, sendo que isso violaria princípios processuais como o juiz natural, devido processo legal, e contraditório e vedação de decisão surpresa. Além disso, houve veto ao art. 333 do CPC/2015, que previa a conversão da ação individual em coletiva. Ora, pensando de forma sistemática: se não é possível que uma ação individual se converta em coletiva, seria possível que uma ação individual (sem que haja a conversão, portanto), tenha a mesma eficácia e abrangência que uma ação coletiva?
Além disso, o que se busca com essa corrente na verdade seria algo mais próximo da vinculação do precedente do que da coisa julgada. E é de se lembrar que o sistema de precedentes ganhou considerável força no NCPC[7], mas isso não deve se confundir com os limites subjetivos da coisa julgada.
Nenhuma mudança em relação ao sistema anterior
Esta corrente aponta que a ausência de menção a “não beneficiará terceiros” não acarreta nenhuma modificação prática, considerando a interpretação do sistema processual. Seja porque (a) estaríamos diante de uma confusão entre efeitos da sentença e coisa julgada ou porque (b) se a coisa julgada beneficia alguém, do outro lado ela estará prejudicando alguém – o que seria vedado pelo art. 506. Ou seja, a mudança do texto legal na verdade em nada alteraria os limites da coisa julgada, ficando mantida a mesma lógica do sistema do CPC/1973[8].
Expostas as cinco correntes, é de se indagar: qual prevalece?
Das cinco teorias acima expostas, é possível que quatro venham a ser aceitas pela jurisprudência, sem maiores dificuldades. A meu ver, apenas a 4ª teoria (eficácia expandida da coisa julgada individual) parece a mais difícil de ser aceita pela jurisprudência.
Isso porque, além dos argumentos já acima expostos, a jurisprudência dos tribunais superiores costuma ser refratária à expansão da eficácia das decisões[9]. Além disso, essa corrente traria ainda mais insegurança jurídica às situações massificadas, sendo possível vislumbrar conflitos com outras ações individuais (mesmo procedentes, mas com comandos distintos), processos coletivos e IRDR.
A confirmar que se trata de corrente com maior resistência na doutrina, durante a I Jornada de Direito Processual Civil do CJF (Conselho da Justiça Federal), foi aprovado enunciado exatamente no sentido de afastar essa interpretação. Esse enunciado foi proposto por mim e indicou qual corrente não seria aceita exatamente pela dificuldade em se chegar a um consenso em relação a qual prevaleceria. Após os debates no referido encontro, o enunciado 36/CJF ficou com a seguinte redação: “O disposto no art. 506 do CPC não permite que se incluam, dentre os beneficiados pela coisa julgada, litigantes de outras demandas em que se discuta a mesma tese jurídica”.
Mas até que tenhamos uma definição dos exatos limites subjetivos da coisa julgada pela jurisprudência (mais precisamente pelo STJ), a dúvida e insegurança prosseguem. Mais uma divergência que antes não existia e que agora temos de enfrentar…
[3] A questão é tratada com mais vagar nos Comentários ao CPC/2015: Processo de conhecimento. 2ª ed. São Paulo, Método, 2018, nos comentários ao art. 506.
[4] Nesse sentido, BOTELHO DE MESQUITA, José Ignacio. A coisa julgada. Rio de Janeiro: Forense, 2005, passim.
[5] A coisa julgada. Rio de Janeiro: Forense, 2005, passim.
[6] A nomenclatura “eficácia expandida da coisa julgada individual” é de Marcos Destefenni (vide http://estadodedireito.com.br/eficacia/ e http://estadodedireito.com.br/a-eficacia-expandida-da-coisa-julgada-individual-parte2/).
[7] Conforme arts. 926 e 927 do NCPC, sendo certo que, para isso, conveniente o estudo dos precedentes e da coisa julgada no sistema do common law, para que se possa refletir mais a respeito dos limites subjetivos da coisa julgada (a respeito, destaco outro texto escrito aqui no Jota, de série que irá tratar a respeito do estudo do Direito no exterior: https://www.jota.info/carreira/vale-a-pena-estudar-direito-no-exterior-09072018).
[8] Essa a corrente a qual me filio, conforme exponho com vagar na obra indicada na nota 3.
[9] Como exemplo, o STF editou súmula vedando o que seria um dos efeitos práticos da aplicação dessa corrente (Súmula 339/STF: “Não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob fundamento de isonomia”).