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O planejamento sucessório e a proteção de herdeiros menores ou com deficiência pelo testamento
Ana Luiza Maia Nevares
18/08/2020
Como já se afirmou em outra sede, o planejamento sucessório consiste num conjunto de medidas empreendidas para organizar a sucessão hereditária de bens e direitos previamente ao falecimento de seu titular. Com o planejamento sucessório, objetiva-se evitar conflitos, assegurar que aspirações fundamentais da vida da pessoa sejam executadas após o seu falecimento, garantir a continuidade de empresas e negócios, permitir uma melhor distribuição da herança entre os sucessores, bem como buscar formas de gestão e de transmissão do patrimônio que tenham a menor carga tributária possível[1].
Uma constante preocupação nos planejamentos sucessórios é a proteção de herdeiros menores ou com deficiência. De fato, não raro, pessoas vivenciam mais de um relacionamento ao longo de suas vidas têm filhos de diferentes idades, havendo, em diversos casos, pessoas que, ao lado de filhos adultos e “criados”, têm aqueles menores, ainda em idade escolar. Além disso, a angústia com o futuro de descendentes portadores de deficiência é recorrente, considerando a necessidade de zelo constante, bem como de recursos financeiros por vezes expressivos, em virtude de tratamentos e terapias que proporcionam melhores condições de vida e desenvolvimento para os portadores de deficiência.
Diante de um planejamento sucessório, dita proteção encontra sede profícua no testamento.
Inicialmente, pode-se mencionar a diversidade de opções de disposições a serem imputadas na cota disponível do testador. Como é sabido, dita cota disponível ou parte dela pode ser destinada para os herdeiros menores ou portadores de deficiência na direção da necessidade de sua proteção. No entanto, também é possível algumas gradações, em especial quando o testador, apesar da preocupação aqui em foco, sente um desconforto em estabelecer diferenças entre os filhos. Realmente, apesar da igualdade material preconizar que os iguais sejam tratados igualmente e os desiguais de forma desigual na medida de sua desigualdade, nem sempre para os genitores essa máxima se aplica pragmaticamente. Nessa direção, é possível estabelecer sobre a cota disponível direitos reais, como o usufruto ou o direito real de habitação sobre determinados bens, garantindo a transmissão do referido patrimônio para os demais filhos ou para os netos do testador uma vez findos os gravames.
Ainda sobre a cota disponível, em relação a esta, pode ser determinada uma verba periódica para o filho menor, até que complete determinada idade que seja na visão do testador aquela na qual já estará devidamente formado, somando-se, por ocasião do falecimento, o número de anos do sucessor faltantes para completar a idade mencionada, multiplicando-se dito número pelo período ajustado. Assim, sendo uma verba anual e fixando o testador a idade de 25 anos para o recebimento de dita quantia, falecendo o autor da herança quando faltem 10 anos para o sucessor alcançar 25 anos, multiplicar-se-ia os 10 anos pelo valor da verba anual, de forma a encontrar o valor do legado deixado. Esta disposição pode ser acompanhada da devida justificativa do testador para o seu estabelecimento, como uma verba fixada para fins de formação do herdeiro menor. Sem dúvida, cláusulas narrativas no testamento, através das quais o testador esclarece os seus objetivos, são muito bem-vindas, são de grande auxílio na interpretação do ato de última vontade.
Outra importante disposição testamentária na linha do ora exposto é aquela que nomeia o tutor do filho menor. Com efeito, os filhos menores são postos sob o regime de tutela uma vez falecidos os pais (CC, art. 1.728, I), sendo certo que a nomeação de tutor compete aos pais, podendo ser estabelecida pela via do testamento ou por qualquer outro ato autêntico (CC, art. 1.729, parágrafo único). Vale registrar que os pais podem, por força do testamento, não só nomear o tutor para seus filhos menores, como fixar os valores destinados ao atendimento das necessidades do pupilo, por força do disposto no art. 1.746 do Código Civil.
Havendo herdeiros maiores portadores de deficiência, sendo os genitores os testadores, diante do que dispõe o art. 1.774 do Código Civil, que determina a aplicação à curatela das disposições pertinentes à tutela com as devidas adequações da lei, o testador poderá designar a quem caberá o exercício da curatela, se ao tempo da abertura da sucessão exerciam os testadores o referido múnus, aplicando-se ao caso o mesmo do que foi dito em relação à tutela.
Ainda sobre a nomeação de tutor ou curador para filhos, vale registrar a possibilidade de nomeação de tutores ou curadores compartilhados ou conjuntos, na forma do previsto no art. 1.775-A do Código Civil. Na primeira hipótese, ou seja, havendo tutela ou curatela compartilhada, aqueles nomeados exercerão simultaneamente o múnus. Já na hipótese de tutela ou curatela conjunta, fraciona-se o exercício do ofício, podendo um dos designados exercer a tutela ou curatela pessoal e o outro a tutela ou curatela patrimonial do menor ou do maior portador de deficiência.
Ainda ponderando sobre herdeiros menores, nas hipóteses de serem beneficiários em ato de última vontade, cabe ao testador nomear curador para a administração de bens que lhes sejam deixados no testamento, não obstante o poder familiar dos pais e os poderes inerentes ao exercício da tutela na gestão do patrimônio do menor. Assim dispõe o inciso III do art. 1.693 do Código Civil, determinando que se excluem do usufruto e da administração dos pais os bens deixados ou doados ao filho, sob a condição de não serem usufruídos, ou administrados, pelos pais, bem como o art. 1.733, § 2º, do Código Civil, que autoriza àquele que institui um menor herdeiro ou legatário nomear-lhe curador para os bens deixados, ainda que o beneficiário se encontre sob o poder familiar ou tutela.
A partir dos dispositivos mencionados, nomeia-se um curador específico para os bens do menor, afastando aquele que teria a gestão de seu patrimônio, para confiá-la à pessoa especialmente designada para tanto no ato de disposição de última vontade. Dessa forma, quando um menor é nomeado herdeiro ou legatário, apesar de estar sob o poder familiar ou sob regime de tutela, poderá ter os bens que lhe sejam destinados através de testamento submetidos à administração de um curador especial. Uma mãe, por exemplo, que tenha restrições fundadas à gestão paterna, poderá designar um curador especial para administrar os bens que venha a deixar para seu filho, o mesmo podendo ocorrer em caso de designação de tutor, quando o genitor entenda que, apesar da nomeação daquele que desempenhará a tutela, a administração de determinados bens caberia melhor à pessoa designada especialmente para tanto.
Segundo abalizada doutrina, o disposto no parágrafo único do art. 1.733 não excepciona o princípio da unidade da tutela, previsto no caput e no § 1º do referido dispositivo, tolerando-se o cumprimento da vontade do testador, porque do contrário importaria em prejuízo para o menor, quando a tutela, assim como o poder familiar, têm por objetivo beneficiar o menor[2].
Neste caso, é preciso ponderar que ao curador especial será devida uma remuneração pelo exercício do seu ofício, bem como deverá ele prestar contas de sua gestão, tal como ocorre com o tutor e o curador.
Sobre a possibilidade de se nomear curador especial para a gestão do patrimônio do herdeiro menor nomeado, na forma do disposto nos citados artigos 1.693, III, e 1.733, parágrafo único, ambos do Código Civil, algumas questões são postas à luz dos dispositivos mencionados.
A primeiras delas é sobre a possibilidade de estender-se ditas previsões para os herdeiros que sejam maiores, portadores de deficiência que os tornem incapazes. Isso porque os dispositivos mencionados referem-se aos menores. No entanto, nos casos em que a situação de ditos herdeiros maiores seja similar àquela dos menores, a extensão é necessária por força da analogia. Realmente, tendo o testador um filho maior, portador de deficiência que o torna incapaz, sob os seus cuidados, a similitude da hipótese é latente, atraindo a aplicação das normativas referidas.
Outra questão diz respeito à pessoa do curador especial. Poderia ser ele uma pessoa jurídica? Apesar de se poder extrair dos citados dispositivos, bem como dos comentários lançados a eles pela doutrina, de que se referem a pessoas físicas, não há nada na lei que proíba que se nomeie uma pessoa jurídica como curador especial. Pode-se colher, neste caso, a vantagem de tornar as decisões sobre a administração dos bens sempre coletiva, tomadas em ambiente profissional e especializado.
Por fim, indaga-se quanto à extensão da atuação do curador especial. Estariam as previsões dos artigos mencionados limitadas à cota disponível do testador, considerando o princípio da intangibilidade da legítima, que proíbe que esta seja diminuída em seu valor e substância? Em outras palavras, tendo em vista que a legítima pertence ex lege aos herdeiros necessários, poderia o testador afetá-la em sua substância, afastando-a da gestão daqueles que são responsáveis pelo herdeiro menor ou maior incapaz? A indagação é tormentosa e a redação dos dispositivos referidos demonstram que a intenção do legislador foi limitar a previsão à cota disponível. Realmente, o art. 1.693 do Código Civil refere-se aos bens deixados ou doados ao filho, sob a condição de não serem usufruídos, ou administrados, pelos pais. A legítima não é deixada ao filho, uma vez que pertence a ele de pleno direito e, além disso, em relação a dita cota, não pode ser aposta qualquer condição, em virtude de seu caráter intangível. Por conseguinte, parece que dito dispositivo coaduna-se com a cota disponível. O mesmo pode ser dito em relação ao parágrafo único do art. 1.733 do Código Civil, uma vez que o genitor só institui um filho como seu herdeiro em relação à cota disponível, uma vez que, repita-se, a legítima pertence a ele de pleno direito.
Em que pese esta constatação, oriunda da lógica do sistema e da literalidade da lei, não é incomum o desejo de que a administração por um terceiro alcance também a legítima do herdeiro necessário. Nessa direção e para que esta questão possa ter uma resposta interpretativa coerente, deve-se analisar o caso concreto e as motivações do testador.
Já Carvalho Santos mencionava doutrina sobre o tema que sustentava a tese de que, “se a condição imposta a essa liberalidade, em lugar de ser inspirada no interesse do filho, não é ditada senão por um sentimento de inimizade e de vingança contra o pai, não deve ser executada”, sendo certo que o Autor citado, que escreveu à luz do Código Civil de 1916, já ponderava que esta doutrina era duvidosa em face daquele diploma legal, que não distinguia a hipótese, nem a excetuava, na mesma linha do que ocorre com o Código Civil atual[3].
Sem dúvida, afastar o responsável legal por um menor ou maior incapaz da gestão de seus bens pode ser elemento de discórdia e conflitos, revertendo-se contra o herdeiro. Deve, então, ser bem sopesada no caso concreto. Por conseguinte, via de regra, os dispositivos em análise deverão estar atrelados à cota disponível, seguindo a legítima seu caminho previsto na lei: pertencer de pleno direito ao herdeiro necessário, sendo intangível, não podendo ser reduzida ou modificada em seu valor ou substância. No entanto, motivações relevantes do autor da herança podem justificar a extensão da administração do curador especial aos bens integrantes da reserva. Nessa linha, a extensão da curadoria especial à legítima do herdeiro necessário deve ser excepcional, devendo estar justificada por razões que sejam merecedoras de tutela quanto ao afastamento dos genitores, do tutor ou do curador da gestão dos bens daquele que se encontra sob os seus cuidados e responsabilidade. Nessa direção, mais uma vez, assume relevância cláusulas testamentárias narrativas do testador, que explicitem seus objetivos, sendo um norte interpretativo do ato de última vontade.
Nesse momento em que o planejamento sucessório está na ordem do dia, havendo muitas informações difundidas sobre a matéria, levando muitas vezes à errônea percepção de que apenas caminhos mais complexos constituirão soluções para tanto, é necessário descortinar as virtudes do testamento, que se constitui em instituto de fácil elaboração, que não enseja despojamento de patrimônio pelo titular, podendo, ainda, ser mudado a qualquer tempo.
Registre-se que, como se tem comumente afirmado, o planejamento sucessório é específico para o caso concreto em análise, sendo necessário revê-lo sempre que as condições que o ensejaram se modifiquem. Em muitos casos, será preciso conjugar institutos de outros ramos do Direito, como o Direito Societário e o Tributário. No entanto, raras vezes será despiciendo o testamento, ora sendo este a ferramenta única da qual se vale o titular do patrimônio para prever sua sucessão, ora sendo instrumento utilizado em conjunto com outros, para o alcance dos objetivos do titular do patrimônio.
O que se espera é que o planejamento sucessório prime pela harmonia entre aqueles que ficam, auxiliando uma rápida e eficaz transmissão do acervo hereditário, com a conclusão da sucessão causa mortis.
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[1] Seja consentido remeter o leitor ao meu artigo “Perspectivas para o Planejamento Sucessório”, in Arquitetura do Planejamento Sucessório. Belo Horizonte: Fórum, 2020, 2ª edição, pp. 385/401.
[2] J. M. Carvalho Santos. Código Civil Brasileiro Interpretado, Volume VI, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, 7ª edição, p. 235.
[3] J. M. Carvalho Santos. Código Civil Brasileiro Interpretado, Volume VI, cit., p. 234.