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Partilha de bens digitais

Rodrigo da Cunha Pereira
06/06/2025
O Direito ainda precisa acertar o passo com a sociedade digital. É necessário para incorporar, definitivamente, os instrumentos tecnológicos existentes para facilitar o convívio de pais separados, e que vivem em locais distantes. Além disso, facilitar a citação, fazendo-a de forma eletrônica, bem como compreender que há uma nova categoria de bens jurídicos, que estão sujeitos à sucessão hereditária e partilha, e que obedecem uma lógica diferente da tradicional concepção jurídica.
No mundo globalizado e virtualizado, em que as pessoas têm cada vez mais hábitos digitais, essa nova categoria de bens tem se mostrado mais presente na vida contemporânea. A alta demanda das ferramentas digitais e do mundo virtual, de forma indissociável, faz surgir uma nova gama de ativos jurídicos: avatares, perfis, criptomoedas, arte digital, créditos e ativos em games e plataformas virtuais, que são bens incorpóreos de caráter patrimonial1. Há também os direitos de natureza existencial, como direitos de imagem, que podem se transformar em direitos patrimoniais quando se atribui conteúdo econômico a eles, como já se fazia no mundo não virtual com os direitos do autor.
Bens digitais é o gênero de várias espécies de conteúdos postados ou compartilhados no ambiente virtual. São também denominados de ativos digitais (digital assets ou digital property). Um dos primeiros autores a escrever sobre o assunto, o professor mineiro Bruno Zampier, traz um conceito que nos ajuda a entender melhor essa nova concepção patrimonial, sujeita à partilha:
Bens digitais seriam aqueles bens incorpóreos, os quais são progressivamente inseridos na internet, por um usuário, consistindo em informações de caráter pessoal que trazem alguma utilidade àquele, tenha ou não conteúdo econômico2.
Rafael Calmon, em capítulo publicado no livro coordenado por Patrícia Sanches Corrêa, complementa esse raciocínio: “Ao analisar mais de perto os bens digitais a gente chega a uma interessante conclusão: existem bens digitais em que predomina o viés estritamente patrimonial, como as criptomoedas e as milhas aéreas; existem bens digitais em que prevalece o caráter existencial, como contas de e-mails e perfis em redes sociais utilizados unicamente para diversão e sem qualquer pretensão de monetização, e; existem bens digitais em que acontece uma espécie de mistura entre interesses puramente existenciais e patrimoniais”3
Não há legislação brasileira sobre esses bens. Assim, devemos nos valer, além da principiologia do Direito de Família, do direito comparado, que é também importante fonte do Direito. O marco civil da internet (Lei nº 12.695/2014), talvez por ser de 2014, mas gerado bem antes disso, não acrescenta nada no que se poderia chamar de propriedade digital. A Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/1998) e a Lei de Software (Lei nº 9.609/1998), mesmo tendo sido feitas em um período em que essas novas concepções ainda não existiam, podem trazer alguma luz. Por analogia4, às obras intelectuais protegidas poderíamos invocar um amparo legal, como se vê no art. 7º da Lei nº 9.610/1998:
“Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como: I – os textos de obras literárias, artísticas ou científicas; II – as conferências, alocuções, sermões e outras obras da mesma natureza; III – as obras dramáticas e dramático-musicais; IV – as obras coreográficas e pantomímicas, cuja execução cênica se fixe por escrito ou por outra qualquer forma; V – as composições musicais, tenham ou não letra; VI – as obras audiovisuais, sonorizadas ou não, inclusive as cinematográficas; VII – as obras fotográficas e as produzidas por qualquer processo análogo ao da fotografia; VIII – as obras de desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética; IX – as ilustrações, cartas geográficas e outras obras da mesma natureza; X – os projetos, esboços e obras plásticas concernentes à geografia, engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia e ciência; XI – as adaptações, traduções e outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual nova; XII – os programas de computador; XIII – as coletâneas ou compilações, antologias, enciclopédias, dicionários, bases de dados e outras obras, que, por sua seleção, organização ou disposição de seu conteúdo, constituam uma criação intelectual.”
Um dos desafios da partilha dos bens digitais é atribuir a eles um conteúdo econômico. O Instagram monetizado, biticoins, digital influencer, em geral não são declarados no imposto de renda, que dificulta mais sua aferição. Por exemplo, se o casal tem um Instagram que é monetizado, qual dos dois ficaria com aquela conta?
Embora ainda não se tenha regras aplicáveis para a partilha dos bens digitais, não significa que eles não possam, ou não devam, entrar na partilha de bens do ex-casal. De qualquer forma, a base de sua compreensão estará sempre na escolha do regime de bens do casal. As dúvidas e polêmicas em torno do assunto são semelhantes às questões definidoras no regime da comunhão parcial de bens, como acontece com a eterna polêmica sobre os frutos civis do trabalho. Até que se tenha uma regulamentação específica, teremos que nos socorrer de outras fontes do Direito, para além das regras jurídicas5.
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NOTAS
1 SANCHES, Patrícia Corrêa. Direito das famílias e sucessões na era digital. In: SANCHES, Patrícia Corrêa (coord.); PEREIRA, Rodrigo da Cunha; DIAS, Maria Berenice (orgs.). A tecnologia no direito das famílias e no direito sucessório. Belo Horizonte: Editora IBDFAM, 2021, p. 6.
2 ZAMPIER, Bruno. Bens digitais. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 63.
3 CALMON, Rafael. Direito das famílias e sucessões na era digital. In: SANCHES, Patrícia Corrêa (coord.); PEREIRA, Rodrigo da Cunha; DIAS, Maria Berenice (orgs.). Partilha e sucessão hereditária de bens digitais: muito mais perguntas que respostas. Belo Horizonte: Editora IBDFAM, 2021, p. 583.
4 ZAMPIER, Bruno. Bens digitais. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 64.
5 A série de Black Mirror retrata bem essa realidade e pode ajudar a entender melhor essa necessária realidade jurídica.