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O Paradoxo da União Estável: um casamento forçado

CASAMENTO

CASAMENTO FORÇADO

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SOLUÇÕES EXTRAJUDICIAIS PRIVADAS

TERTIUM GENUS

UNIÃO ESTÁVEL

Mário Luiz Delgado

Mário Luiz Delgado

25/01/2018

« Le mariage forcé concerne des enfants, des femmes, des hommes promis ou donnés en mariage contre leur gré, à une personne connue ou inconnue, sans qu’ils aient eu le droit de refuser. Il est considéré comme une atteinte à la liberté individuelle. Il renvoie à l’idée que l’un des deux partenaires ou les deux n’ont pu consentir à leur mariage. Il est considéré comme un acte contraire aux droits fondamentaux de la personne et reconnu como une violence » (RUDE-ANTOINE, Edwige. Mariage libre mariage forcé ? Paris : Presses universitaires de France – PUF, 2011, p. 5)

A citação que emoldura este artigo traduz o cerne das nossas reflexões: até que ponto a atribuição de direitos e deveres às uniões de fato, cuja constituição teria sido supostamente presidida pelo desejo de não submissão às formalidades  sacramentais do casamento, não estaria descaracterizando-as no seu prisma fundamental de união livre ou união informal, para transformá-las, na prática, em um tertium genus de casamento. Um casamento com menos formalidades, mas com os mesmos direitos e os mesmos deveres recíprocos. Um casamento imposto pelo Estado contra a vontade dos nubentes.

O Código Civil brasileiro de 2002 disciplinou os direitos e deveres dos que convivem em união estável,  assegurando aos companheiros um estatuto legal em muitos aspectos semelhante, mas jamais idêntico, ao dos cônjuges. A união estável, aos olhos do legislador de 2002, é uma situação de fato, consagrada pela realidade social, em tudo semelhante ao casamento, mas que não obedeceu a determinadas formalidades exigidas em lei. Por isso, a mens legislatoris na ocasião foi guindar a união estável quase ao patamar do casamento civil, com largueza de espírito, mas sem incorrer no equívoco da equiparação plena, sob pena de diluir por completo as diferenças existentes entre as duas entidades familiares, posição esta que há muito sustentamos inquinada de inconstitucional populismo doutrinário.

Da experiência verificada no direito comparado não localizamos exemplos abundantes de equiparação entre casamento e estável. Antes pelo contrário, a posição predominante talvez ainda possa ser traduzida pela máxima de Napoleão: “le concubins se passent de la loi, la loi se desinteresse d’eux”.  Em grande parte dos países, o casamento é a instituição regra e ainda que se reconheçam efeitos jurídicos às uniões de fato,

mesmo porque viver informalmente é bem diferente do que viver fora das leis1, não se cogita equiparar as duas figuras jurídicas.

Entretanto, o Brasil caminha na direção oposta, a ponto de a posição a favor do tratamento diferenciado entre união estável e casamento estar sendo contestada, tanto na doutrina, como na jurisprudência. Alguns tribunais, por exemplo, chegam a afastam a aplicação do art. 1.790 do CCB/2002, que regula a sucessão entre os companheiros, por reputá-lo inconstitucional, uma vez a Constituição, segundo essa corrente, não permitiria a diferenciação entre famílias assentadas no casamento e na união estável.

Com o devido respeito aos partidários do pleno igualitarismo entre união estável e casamento, consideramos equivocada tal posição.

A orientação jurisprudencial e doutrinária pelo igualitarismo das entidades familiares está se sobrepondo à própria liberdade daqueles que optaram pela relação informal, exatamente por não desejarem se submeter ao regime formal do casamento, o que resulta, em última análise, tornar ineficaz a parte final do §3º do artigo 226 da CF/88, que impôs ao legislador infraconstitucional facilitar a conversão da união estável em casamento.

Não compete ao legislador, nem muito menos à jurisprudência, regulamentar a união estável a ponto de atribuir-lhe direta e autoritariamente os efeitos da sociedade conjugal, o que implica, na prática, transformar a união estável em casamento contra a vontade dos conviventes, aos quais estar-se-ia impondo um verdadeiro “casamento forçado”.

Sabemos encontrar-se há muito superada a concepção monopolista do casamento como formatação legal da família, desde que se conseguiu distinguir o direito de constituir família e o direito de contrair casamento. O elenco das entidades familiares posto no art. 226 do pergaminho constitucional é reconhecido, de forma quase consensual, como meramente exemplificativo. Rol aberto a comportar indefinidas formas de constituição de família, todas elas igualmente protegidas pelo Estado. O ponto em comum a todas, a justificar o reconhecimento e o incentivo estatal é a afetividade, pois se muitas são as famílias em seus diversos arranjos familiares próprios, inegável que todas elas terão a sua formação pressuposta pelo afeto, como elo que as une e reúne.

O conceito legal de família que melhor traduz essa  diversidade nos foi legado  pela Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria  da Penha), que define a família como sendo a comunidade formada, em face da parentalidade legal ou admitida, por afinidade, ou por vontade expressa (art. 5º, II).

A tutela estatal abrangente das entidades familiares típicas e atípicas não implica equiparação da respectiva moldura normativa, posto que em sendo diversas as suas características, imperioso reconhecer a diversidade de regimes legais, sem que se incorra no equívoco da hierarquização. Não existem famílias mais ou menos importantes, mais ou menos reconhecidas, mas, simplesmente, famílias diferentes, cada qual a seu modo, e, por isso mesmo, mais ou menos reguladas.

Casamento e união estável são duas entidades familiares típicas, mas com enorme diferenciação fática e normativa.

O ponto distintivo fundamental reside no seu modo de constituição e desconstituição.

O casamento pressupõe um ato formal e solene, precedido de um processo destinado a apurar a capacidade matrimonial dos nubentes. A prova de sua existência é exclusivamente documental, através de certidão extraída do assento público competente. A dissolução também exige um procedimento próprio e deliberação estatal. A prova de que o matrimônio se dissolveu também se faz por certidão, pouco importando a realidade dos fatos. Se os ex-cônjuges, depois de divorciados, retomam a convivência como se ainda casados fossem, tal fato jamais terá o condão de restaurar o casamento.

A união estável, por sua vez, não exige formalidade, nem solenidade, mas pressupõe o fato da convivência pública e duradoura. A prova de sua existência é preponderantemente testemunhal, não obstante seja comumente corroborada por documentos, dentre os quais, e certamente o mais relevante, o contrato de convivência. Mas jamais o instrumento contratual poderá constituir a união estável, especialmente quando celebrado  no  início  da  convivência.  O  contrato  prévio  de união estável não tem eficácia enquanto as partes contratantes não concretizarem o efetivo convívio. No máximo exterioriza tratativas preliminares de um convívio futuro, que poderá se materializar ou não, assemelhando-se , nesse ponto, ao pacto antenupcial, que somente adquire eficácia após o casamento. Sua eficácia é condicionada, dependendo do implemento ulterior dos seus elementos caracterizadores.

Uma união de fato, iniciada com ou sem contrato, tem o seu potencial de transformar-se ou não em uma união estável, a depender da presença dos demais elementos característicos. Essa aferição se fará sempre a posteriori, ao contrário do casamento, sempre a priori.

A dissolução da união estável, tanto quanto a sua constituição, também decorre de um fato da vida, o fato da cessação da convivência, não exigindo qualquer procedimento ou formalidade. A separação de fato com animus de definitividade é quanto basta para dissolver a união, sem necessidade de interveniência do Estado. A prova da dissolução é também predominantemente testemunhal, podendo ser corroborada por outros elementos, como comprovante de residência em localidade diversa ou mesmo uma simples declaração de um dos conviventes de que cessou a convivência more uxorio. Todavia, nem mesmo o distrato formalizado de um contrato de união estável produzirá qualquer efeito desconstituidor se os distratantes continuarem a conviver de forma pública, contínua e duradoura, com o objetivo de constituição de família.

Assim, nos elementos gênese, êxodo e prova reside a grande distinção, a justificar, também por isso, a desigualdade de regramentos legais.

O novo Código Civil albergou a união estável em  posição de destaque, ao ensejo de regulamentar o art. 226, § 3º da Carta Magna, além de substituir a regulação anterior trazida pelas leis n. 8.971, de 29 de dezembro de 1994 e 9.278, de 10 de maio de 1996.

Constituição e Código Civil atual repetem que a união estável é caracterizada pela convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituir família.

No Código Civil de 1916, não se reconheciam direitos  às famílias de fato, ou “não-casamentárias”, constituídas fora  do casamento civil ou religioso com efeitos civis. As poucas referências do texto codificado anterior tinham sempre o cunho repressor, procurando deixar o então chamado concubinato à margem de qualquer proteção jurídica. Não havia distinção, na esfera legislativa, entre o concubinato ostensivo e o clandestino, nem tão pouco entre o concubinato puro e o impuro.

Aos poucos a legislação foi assegurando certos direitos às uniões fáticas, seguindo as orientações que já estavam sendo firmadas pelos tribunais. Diversas leis ordinárias passaram a conferir direitos às companheiras, sobretudo direitos previdenciários.

A Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973, por exemplo, anterior à atual Constituição, assegurou o direito da mulher ao nome do companheiro (art. 57, §§ 2º a 6º). A Lei n. 6.858, de 24 de novembro de 1980 tratou da dependência do companheiro para levantamento de certos valores do autor da herança (art. 1.037 do CPC).

Com o advento da Constituição Federal de 1988, a união estável foi alçada à categoria de entidade familiar. Ressalte-se que o legislador constituinte substituiu intencionalmente a palavra concubinato pela expressão união estável, tentando espancar toda a carga de preconceitos que jazia sobre a velha expressão, numa prova de aceitação , compreensão e respeito aos  direitos daqueles que viviam em uniões informais.

Em face do mandamento constitucional de proteção à união estável como entidade familiar (art. 226, § 3º), foram editadas, em curto espaço de tempo, diversas leis extravagantes, que asseguraram, dentre outros direitos: adoção de filho por “concubinos” (Lei n. 8.069/90, art. 42, § 2º); dependência do companheiro para fins previdenciários (Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991); impenhorabilidade do bem de família(Lei n. 8.009, de 29 de março de 1990); sub-rogação do companheiro na locação de imóveis urbanos, em caso de dissolução da vida em  comum  com  o  locatário  ou  de  seu  falecimento  (Lei  n. 8.245, de 18 de outubro de 1991, arts. 11 e 12).

E finalmente as duas leis especiais que regulamentaram a união estável na seara infraconstitucional até o advento do CC/2002: Lei n. 8.971/1994, dispondo sobre os direitos de companheiros a alimentos, sucessão (herança e usufruto) e meação em caso de morte e Lei n. 9.278/96, que deu nova definição à união estável, estabelecendo os direitos e deveres dos conviventes, tratando da assistência material (alimentos) em caso de rescisão da união estável, garantindo o condomínio (meação) dos bens adquiridos na constância da união e a título oneroso (salvo estipulação contratual em contrário), acrescentando o direito de habitação no plano da sucessão hereditária, permitindo a conversão da união estável em casamento por requerimento ao Oficial do Registro Civil.

O Código Civil de 2002, por sua vez, reconhece a união estável como entidade familiar, reproduzindo o art. 1º da Lei n. 9.278/96, sem mencionar prazo mínimo para a sua caracterização, exigindo apenas que a união seja pública, contínua e duradoura, com o objetivo de constituição de família. Também dispôs, seguindo o estabelecido no art. 226, § 3º da CF/88, que a união estável poderá ser convertida em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz competente e assento no Registro Civil.

Além dos dispositivos constantes do título específico   “Da União Estável” (Arts. 1.723/1.727) , o CC/2002 também tratou da matéria em vários artigos, tais como:

 – 793: institui o companheiro como beneficiário de seguro, se ao tempo do contrato o segurado estivesse separado de fato ou judicialmente.

 – 1.562: possibilita a propositura da medida judicial de separação de corpos por um dos conviventes.

 – 1.595: institui o parentesco por afinidade na união estável.

 – 1.694: estabelece o dever de alimentos entre companheiros.

 – 1.711: possibilita a instituição de bem de família, mediante escritura pública, testamento ou doação pelos cônjuges ou conviventes.

 – 1.775: prevê a curatela do cônjuge ou do companheiro

 – 1.790 : estabelece os direitos sucessórios do companheiro sobrevivente.

 – 1.797: equipara o companheiro ao cônjuge na preferência pela administração da herança.

Na maioria dos países inexiste estatuto específico para as uniões fáticas, que discipline, de forma sistematizada, as  suas relações patrimoniais. E muito menos que as equipare totalmente ao casamento.

No direito francês, por exemplo, vislumbram-se duas formas de uniões livres, o concubinato (concubinage) e o pacto civil de solidariedade (PACS), sendo que nenhuma das duas se equipara ao casamento (mariage).

Os conviventes ou pacsés se diferenciam dos concubinos, pois os primeiros possuem o registro documental da convivência fornecido pelo Estado através de um certificado. Os casais franceses, que possuem união de fato e que queiram assegurar alguns direitos (seguro social, benefícios alimentares, pensões, etc) se dirigem à Prefeitura (Mairie) do local de sua residência, apresentando testemunhas e prova de domicílio ou residência, e pedem certificados de que são companheiros. A partir daí deixam de ser concubinos e se tornam pacsés. No direito sucessório gaulês, os componentes quer do PACS, quer do concubinato,  não herdam um do outro.

Na Alemanha a regra continua sendo o casamento civil, muito embora a lei busque facilitar os trâmites administrativos e baratear os custos das uniões matrimoniais.

Na Espanha existe o casamento civil e o casamento religioso, ambos reconhecidos pelo Estado. As referências à união de fato são esparsas. Não são aplicáveis direitos e deveres dos cônjuges, não há obrigação alimentar, deveres de assistência e fidelidade, direitos sucessórios. Os efeitos são exclusivamente patrimoniais e pressupõem dois requisitos essenciais: a exigência de um certo tempo de convivência para derivar determinados feitos jurídicos, e a existência de um contrato formal de convivência, que represente a base geradora dos mencionados efeitos de direito. Registra LUIZ PAULO CONTRIM que “a jurisprudência do Supremo Tribunal espanhol, hodiernamente, vem decidindo que a existência de uma sociedade universal entre os conviventes (CC, art. 1.674) – sociedade universal de ganâncias – depende, de um lado, do nítido consentimento entre eles, traduzido pela affectio societatis, e de outro, da prova do acordo de que     as  aquisições  patrimoniais foram realizadas por ambos os conviventes”2.

No direito norte-americano existe o casamento e o chamado common law marriage ou casamento de fato, mas a tendência legislativa é orientada à tutela do matrimônio institucional. Inclusive na grande maioria dos estados americanos, apegados ao conceito de casamento tradicional, sequer é   reconhecido o common law marriage e simplesmente se negam quaisquer direitos aos conviventes3. Existem também os contratos de vida em comum (“living together contracts“), celebrados por “pares solteiros” para assegurar certos direitos em caso de rompimento futuro.

O Código Civil Mexicano inclui a companheira na ordem da vocação hereditária, se conviveu por cinco anos ininterruptos com o autor da herança ou que teve filhos. Se o de cujus deixar várias concubinas nenhuma delas terá direito sucessório (art. 1.645, caput), preservando-se a moralidade e o dever de fidelidade da união concubinária. Devendo o testador prestar alimentos à companheira, se com ela conviveu mais de cinco anos, ou se da união resultou prole (art. 1.368, V).

Em outros países, é a lei que determinará os casos em que, por razão de equidade, a união entre pessoas com capacidade legal para contrair matrimônio, deva ser equiparada, por sua estabilidade e singularidade ao matrimônio civil.

Desde o advento das primeiras leis promulgadas após a CF/88, que pretenderam regulamentar a união estável no Brasil, alguns autores já criticavam o conteúdo dessa regulamentação.

Na opinião de Maria Helena Diniz, por exemplo, as  Leis n. 8.971/94 e 9.278/96 e o novo Código Civil, em algumas normas referentes ao Direito de Família eram “inconstitucionais por estimularem o concubinato puro em alguns de seus artigos, mas é inegável que os direitos e deveres outorgados aos conviventes por     essas normas encontram respaldo na jurisprudência e na doutrina, fazendo com que tenham eficácia social. Resta-nos aceitar os seus efeitos jurídicos, ante a teoria da incidência normativa, que privilegia o fenômeno eficacial e não o da validade. O rigor científico requer que se estabeleça um entrelaçamento entre tais normas, para que haja unidade de coerência lógica do sistema normativo. Como há divórcio entre o art. 226, § 3º, da CF/88, o Código Civil e as Leis ns. 8.971 e 9.278, será preciso por um fim ao conflito, sem contudo, eliminá-lo.” 4

Com efeito, o texto constitucional, ao reconhecer a união estável como entidade familiar deixou claro que o fez apenas para fins de proteção do Estado (artigo 226, §3º, CF/88), não significando isto equiparação com o casamento, tanto que  o constituinte manifestou, expressamente, o desejo que a lei facilite a sua conversão em matrimônio. Por óbvio não se converte o que já é igual e a Constituição não contém termos ou expressões inúteis, máxima exegética que convém relembrar.

Ademais, não haveria qualquer interesse em se converter a união estável em casamento se àquela fossem conferidos todos os efeitos próprios do matrimônio, devendo o legislador atentar para este fato, sob pena de, ao aproximar em demasia os dois institutos, desestimular a conversão de um em outro, esvaziando o sentido da norma constitucional e incorrendo em velada inconstitucionalidade.

Sobre o desinteresse na conversão, gerado pela exagerada interferência estatal nas uniões de fato, pertinente a seguinte advertência de Lourival Silva Cavalcanti:

“Ora, se a lei ordinária, em vez de cuidar do mister que lhe foi determinado pela Constituição, diretamente atribui qualquer parcela do efeito civil à união estável, sem que para tanto se deva proceder à conversão, torna esta desnecessária. E o faz na razão inversa dos efeitos que assim oferece, ou  seja, faz tanto menor o interesse na conversão, quanto maior o número de efeitos conjugais que confere à união não convertida.Portanto, qualquer forma de legislação que subtraia aos integrantes da união estável seu eventual interesse pela conversão dela em casamento, ainda que em parte, contraria a Constituição. E isso evidentemente ocorrerá se lhe forem diretamente conferidos os efeitos do matrimônio civil, principalmente os mais relevantes sob o aspecto prático, como a participação no patrimônio, os alimentos e os direitos sucessórios. Se tais questões encontram disciplina fora do casamento, haver-se-ia de cogitar da conversão para quê?”5

A disciplina constitucional, ao cogitar da conversão da união estável em casamento, deixou ao legislador ordinário não a sua regulamentação para atribuir-lhe alguns ou todos os efeitos do matrimônio, mas tão somente a disciplina dos problemas que costumam acontecer ao término da união familiar não estruturada nos moldes do casamento civil.

A orientação infraconstitucional não pode anular a liberdade daqueles que não desejam se submeter ao regime típico de casamento, sob pena de tornar ineficaz a parte final do 3º do artigo 226 da Carta Magna. Não compete ao legislador regulamentar a própria relação informal, atribuindo-lhe direta e autoritariamente os efeitos da sociedade conjugal.

Não há, portanto, que se falar em isonomia entre casamento e união estável. O princípio da isonomia, diz Celso Antônio Bandeira de Mello, “preceitua que sejam tratadas igualmente as situações iguais e desigualmente as desiguais. Donde não há como desequiparar pessoas e situações quando nelas não se encontram fatores desiguais”6. Da mesma forma, como não há como equiparar situações quando nelas se  encontram claros fatores de  desigualação, como é o caso.

Ambos (casamento e união estável) são entidades  familiares, porém com características fundamentalmente distintas.

A equiparação total, em direitos e obrigações, da união estável e do casamento, por outro lado, desestimularia a conversão de um em outro, esvaziando o sentido da norma constitucional.

Se a moldura normativa das uniões de fato,  construída  a partir da necessidade de regulamentação infraconstitucional do art. 226, § 3º, da CF/88 já atraía críticas, a situação atual suscita perplexidades.

Jurisprudentes se mostram perplexos diante da multiplicidade de interpretações dadas pelos tribunais aos dispositivos legais que versam sobre a matéria. Ora se ampliam, ora se restringem direitos dos companheiros quando comparados aos dos cônjuges. Em outras situações, se estendem aos cônjuges situações antes previstas apenas aos companheiros.

Em situações em que o companheiro se viu em posição mais vantajosa que a do cônjuge, o Superior Tribunal de Justiça optou pela aplicação do estatuto da união estável ao casamento. Nesse sentido foi o julgamento do RESP n. 821.660 – DF. Confira-se a ementa:

DIREITO CIVIL. SUCESSÕES. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO DO CÔNJUGE SUPÉRSTITE. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA. SITUAÇÃO JURÍDICA MAIS VANTAJOSA PARA  O COMPANHEIRO QUE PARA O CÔNJUGE. EQUIPARAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL.

1.- O Código Civil de 1916, com a redação que lhe foi dada pelo Estatuto da Mulher Casada, conferia ao cônjuge sobrevivente direito real de habitação sobre o imóvel destinado à residência da família, desde que casado sob o regime da comunhão universal de bens.

2.- A Lei nº 9.278/96 conferiu direito equivalente aos companheiros e o Código Civil de 2002 abandonou a postura restritiva do anterior, estendendo o benefício a todos os cônjuges sobreviventes, independentemente do regime de bens    do casamento.

3.- A Constituição Federal (artigo 226, § 3º) ao incumbir o legislador de criar uma moldura normativa isonômica entre a união estável e o casamento, conduz também o intérprete da norma a concluir pela derrogação parcial do § 2º do artigo 1.611 do Código Civil de 1916, de modo a equiparar a situação do cônjuge e do companheiro no que respeita ao direito real de habitação, em antecipação ao que foi finalmente re- conhecido pelo Código Civil de 2002.

4.- Recurso Especial improvido.

Os trechos do voto proferido pelo eminente Ministro Sidnei Beneti esclarecem a moldura fática da demanda:

19.- Instaurou-se, assim, um certa perplexidade, pois, entre a edição dessa lei e o início da vigência do Código Civil de 2002, uma interpretação literal das normas de regência então vigentes,    autorizavam    concluir    que     o     companheiro sobrevivente estava em situação mais vantajosa do que o cônjuge sobrevivente (que não fosse casado pelo regime da comunhão universal de bens).

Perceba-se que o direito real de habitação, até então exclusivo do cônjuge supérstite, havia sido estendido ao companheiro sobrevivente por força do parágrafo único do artigo 7º, da lei 9.278/96, de maneira mais abrangente, conferindo ao companheiro sobrevivente um direito subjetivo que não socorria à maioria dos cônjuges em idêntica situação.

Examinando-se as consequências dessa exegese tem-se o seguinte: Se duas pessoas vivessem em união estável e uma delas falecesse a outra teria a segurança de continuar vivendo no imóvel em que residiam. Se porém, essas mesmas pessoas resolvessem se casar, o que provavelmente ocorreria sob o regime da comunhão parcial, já que esse era o regime legal a partir de 1977, o cônjuge sobrevivente não teria mais assegurado o direito de continuar habitando o imóvel da família.

20.- O casamento, a partir do que se extrai inclusive da Constituição Federal, conserva posição juridicamente mais forte que a da união estável. Não se pode, portanto, emprestar às normas destacadas uma interpretação dissonante dessa orientação constitucional.

(…)

21.- Considerando, pois, que a interpretação literal das normas postas levaria à conclusão de que o companheiro  estaria em situação privilegiada em relação ao cônjuge e, bem assim, que essa exegese, propõem uma situação de todo indesejada no ordenamento jurídico brasileiro, é de se rechaçar a adoção dessa interpretação literal da norma.

22.- Uma interpretação que melhor ampara os valores espelhados na Constituição Federal é aquela segundo a qual o artigo 7º da Lei nº 9.287/96 teria derrogado, a partir da sua entrada em vigor, o  §  2º  do  artigo  1.611  do  Código  Civil  de 1916, de modo a neutralizar o posicionamento restritivo contido na expressão “casados sob o regime da comunhão universal de bens”.

23.- Em outras palavras é de se admitir que a Constituição Federal (artigo 226, § 3º) ao exortar o legislador a criar de uma moldura normativa pautada pela isonomia entre a união estável e o casamento, exortou também o intérprete da norma e o juiz a concluírem pela derrogação parcial do § 2º do artigo 1.611 do Código Civil de 1916, de modo a equiparar a situação do cônjuge e do companheiro no que respeita ao direito real de habitação.

24.- Perceba-se que, dessa maneira, tanto o companheiro, como o cônjuge, qualquer que seja o regime do casamento, estarão em situação equiparada, adiantando-se, de tal maneira, o quadro  normativo  que  só  veio  a  se  concretizar  de maneira explícita, com a edição do novo Código Civil.

O mesmo Superior Tribunal de Justiça também tem feito a interpretação extensiva inversa, ou seja, atribuindo à união estável restrições expressamente previstas para o casamento (e somente para o casamento) como é o caso da obrigatoriedade de adoção do regime de separação de bens para os nubentes maiores de 70 anos. Confira-se  o julgado abaixo:

DIREITO DE FAMÍLIA. UNIÃO ESTÁVEL. COMPANHEIRO SEXAGENÁRIO. SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE  BENS. ART. 258, § ÚNICO, INCISO II, DO CÓDIGO  CIVIL DE 1916.1. Por força do art. 258, § único, inciso II, do Código Civil de 1916 (equivalente, em parte, ao art. 1.641, inciso II, do Código Civil de 2002), ao casamento de sexagenário,  se homem, ou cinquentenária, se mulher, é imposto o regime de separação obrigatória de bens. Por esse motivo, às uniões estáveis é aplicável a mesma regra, impondo-se seja observado o regime de separação obrigatória, sendo o homem   maior de sessenta anos ou mulher maior de cinquenta.2. Nesse passo, apenas os bens adquiridos na constância da união estável, e desde que comprovado o esforço comum, devem ser amealhados pela companheira, nos termos da Súmula n.º 377 do STF.3. Recurso especial provido.(REsp 646.259/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 22/06/2010, DJe 24/08/2010)

Mas sem sombra de dúvidas, a situação que mais suscita perplexidade é a concernente ao estatuto sucessório da união estável (CC, art. 1.790), solenemente desconsiderado por respeitáveis julgados, que com bastante ênfase defendem a aplicação aos companheiros do mesmo estatuto sucessório dos cônjuges. Os argumentos podem ser resumidos nas palavras de Caetano Lagrasta proferidas no julgamento do Agravo de Instrumento n. 0151749-50.2012, pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: “A diferenciação de regimes entre a união estável e o casamento é incompatível com o art. 226 da CF (…), pois inegável que o tratamento sucessório diferenciado dado ao companheiro sobrevivente em comparação com o cônjuge sobrevivente é discriminatório e não deve prevalecer diante da isonomia entre união estável e o casamento, assegurada pelo citado art. 226, § 3º, da CF, devendo, a sucessão do companheiro observar a mesma disciplina da sucessão legítima do cônjuge, conforme constou do Agravo de Instrumento n. 609.024-4/4, em que fui Relator”.

A posição acima tem grande aderência nos meios doutrinários e é seguida por diversos tribunais. No próprio Superior Tribunal de Justiça, a corrente é defendida por Luis Felipe Salomão , para quem “o estabelecimento, pelo art. 1.790, incisos III e IV, do Código Civil de 2002, de uma ordem de vocação hereditária para a união estável diferenciada daquela prevista para o casamento (art. 1.829) atenta contra a Constituição Federal de 88, especialmente contra o art. 226 – que concedeu a mesma especial proteção estatal a todas as famílias lá previstas –, e o «caput» do art. 5º -, porquanto concede tratamento desigual à união estável exatamente onde esta se  iguala ao casamento, que é nos vínculos afetivos decorrentes das relações familiares7.

Entretanto a matéria está longe de ser pacificada, pois a última palavra só será dada pela corte constitucional, sem qualquer previsão de análise. Enquanto isso grassa a insegurança entre os operadores jurídicos e jurisdicionados, pois ora se mantém o estatuto convivencial hígido, ora se afasta completamente, ora se afasta por partes. Muitos dos partidários da equiparação limitam-se a estender à união estável os mesmos direitos do casamento, omitindo deveres e restrições do âmbito de abrangência da pretendida isonomia.

Todos os direitos do casamento valem para os pares convivenciais,  mas  as  restrições  a  eles  não se aplicam, até mesmo em razão da máxima hermenêutica que reza não ser possível interpretar ampliativamente regra restritiva de direitos. Veja-se o caso da regra que exige vênia conjugal para prestação de fiança e aval e que o STJ entendeu inaplicável à união estável. No julgamento do REsp 1.299.894 decidiu o Superior Tribunal de Justiça ser válida fiança prestada durante união estável sem anuência do companheiro. Segundo o relator do caso, Ministro Luis Felipe Salomão, “é por intermédio do ato jurídico cartorário e solene do casamento que se presume a publicidade do estado civil dos contratantes, de modo que, em sendo eles conviventes em união estável, hão de ser dispensadas as vênias conjugais para a concessão de fiança”. Para o relator, a matéria se situa exatamente no campo em que se justifica o tratamento diferenciado entre casamento e união    estável.

Parece contraditório que o mesmo tribunal ora aplique à união estável regra restritiva própria do casamento, como o fez em relação ao regime legal de separação bens para os conviventes maiores de sessenta anos (REsp 646.259/RS) e, ao  mesmo tempo, deixe de aplicar a regra restritiva que exige a outorga do cônjuge para prestação de fiança ou aval. Aliás, sobre o tema, parte relevante da doutrina entende imprescindível a autorização do companheiro para que o outro preste fiança ou aval, sobretudo em havendo a averbação do pacto.

Outra situação que nos causa perplexidade é aquela propiciada pela posição dos que defendem a criação do “estado civil” do companheiro. Rodrigo da Cunha Pereira e Ana Carolina B. Teixeira sustentam que “o estado civil reflete a posição da pessoa, com a gama de relações jurídicas da qual faz parte, perante a sociedade. Se a finalidade precípua do estado é esta, não há razões para negar a atribuição de um estado familiar para a união estável. Não há dúvidas de que seria aguçar, ainda mais, o paradoxo já existente quanto à positivação da união estável, mas também refletiria a situação jurídica vivida   pelos sujeitos da relação8. Acrescentam que ser de todo “conveniente a atribuição de um estado civil à união estável, com a finalidade de conferir maior segurança às relações jurídicas estabelecidas, tendo como sujeitos desta relação pessoas    que vivem em união estável. Embora saibamos que tal fato se consubstancia em um paradoxo, ele tem um escopo protetivo e garantidor, de modo a validar o exercício da liberdade dos sujeitos9.

Com todo respeito, a criação de um estado civil para a união estável só confirmaria o paradoxo sobre o qual estamos refletindo, pois estar-se-ia formalizando e solenizando uma relação de fato, buscada por aqueles que, a priori, não desejavam se submeter aos laços oficiais do casamento.

Essas situações que adjetivamos de perplexas constituem importante fonte geradora de insegurança jurídica. As interpretações díspares e, muitas vezes contra legem, produzem julgamentos desconexos e confusos que não garantem a mínima estabilidade das relações jurídicas.

Quem convive em união estável hoje, no Brasil, não possui informações claras a respeito das conseqüências do seu relacionamento afetivo. Não sabe com precisão quais os seus deveres jurídicos, se terá ou não direito à sucessão em relação aos bens anteriores ao relacionamento, se poderá alienar um bem imóvel sem a autorização do outro.

Rude-Antoine, em monografia específica sobre o tema citada no início deste artigo, identifica, na atualidade, duas espécies de casamento forçado: a) aquele casamento imposto a uma pessoa jovem, cuja imaturidade a torna incapaz de compreender o significado do engajamento conjugal; b) o casamento extorquido por coação, violência, temor reverencial ou ameaça por parte do futuro cônjuge ou da família10.

O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da Assembleia Geral das Nações Unidas de 16 de Dezembro de 1966, em seu artigo 23, proclama o princípio da liberdade do casamento, consubstanciado no direito fundamental do homem e da mulher livremente contraírem matrimônio, e dispõe expressamente que “o casamento não pode celebrar-se sem o livre e pleno consentimento dos futuros cônjuges”.

O princípio da liberdade do casamento, diz Rude-Antoine11, se manifesta, inicialmente, na fase antecedente à celebração, quando se afasta qualquer força obrigatória ou vinculatória às convenções pré-nupciais e às promessas de casamento.  Nenhum  compromisso  assumido anteriormente ao casamento poderá ser executado contra a vontade de um dos nubentes. A doutrina denomina de esponsais o compromisso matrimonial contraído por alguém. Na linguagem comum, chama-se noivado. Como categoria jurídica, é uma promessa de contratar. O rompimento dessa promessa jamais pode dar ensejo à execução forçada, não obstante possa constituir fato gerador da obrigação e indenizar12.

A segunda manifestação do princípio ocorre no momento da celebração e se exterioriza pelo consentimento livre e informado dos nubentes. E finalmente o princípio da liberdade do casamento é confirmado pela faculdade de dissolver o elo matrimonial pelo divórcio.

Estabelecidos os contornos do casamento forçado, como sendo aquele em que violado o princípio da liberdade do casamento, poderíamos afirmar que o tratamento dado à união estável pela ordem jurídica brasileira, especialmente na leitura feita por muitos tribunais e por importantes doutrinadores, implica transformar a união de fato em um casamento forçado.

À medida em que se regulamenta um relacionamento que foi constituído para ser uma união livre e sem nenhuma oficialidade, não se estaria alterando a sua natureza jurídica, para transformá-lo em outro tipo de relacionamento que não foi querido pelas partes?

Já dissemos que o direito de viver informalmente não significa viver à margem da lei. Por isso, a lei reconhece alguns efeitos jurídicos á união estável. Porém uma postura intervencionista do Estado brasileiro carece de legitimidade, como bem adverte Maria Berenice Dias:

A exaustiva regulamentação da união estável a faz objeto de um dirigismo estatal não querido pelos conviventes. Tratando-se de relações de caráter privado, cabe questionar a  legitimidade de sua publicização.Assim, passou o Estado a regular não só os vínculos que buscam o respaldo legal para se constituírem, mas também os relacionamentos que escolhem seus próprios caminhos e que não desejam qualquer interferência.13

Desde a secularização do matrimônio, quando o Estado passou a titularizar o monopólio do antigo sacramento canônico, que se nota uma dificuldade desse mesmo Estado abrir em mão de chancelar as uniões civis e, com isso, dizer quais delas estariam sob a sua tutela. Entender as uniões de fato como elas realmente são, essencialmente uniões livres, significa abrir mão dessa potestade. E o Estado tem notória dificuldade em renunciar a qualquer parcela de poder. Veja-se o caso das diversas tentativas legislativas de se ampliar as soluções extrajudiciais privadas, sempre esbarrando no Estado e no seu monopólio da Justiça.

O casamento é o elo social que une o cidadão à pátria e a pátria ao cidadão, diziam os revolucionários de 1.789. Por isso a formação desse elo tem que ser chancelado pelo Estado. Exige-se, assim, que a celebração do casamento só possa ser feita por autoridade pública, investida de poder estatal.

Com o surgimento das uniões de fato, multiplicadas como reflexo da liberdade de escolha que cresceu a partir da secularização, passou o Estado a preocupar-se, em um primeiro momento, em manter o casamento como a forma única de constituição de família (constituir família dependia, portanto, da aquiescência do Estado), surgindo, em conseqüência, as diversas normas punitivas das uniões fáticas, abundantes no CC/16.

Em um segundo momento, mais liberalizante, especialmente sob os influxos do neo-constitucionalismo dos anos  90, Leviatã se deu conta de que não adiantava proibir, perseguir, criminalizar, pois a realidade dos fatos se sobrepunha à realidade normativa. Proibido o concubinato, doutrina e jurisprudência passaram a distinguir concubinato puro e impuro, de modo a que as restrições legais somente atingissem o concubinado dito impuro. No lugar de proibir ou sancionar, o Estado adota outra estratégia: “regulamentar” extensivamente, atribuindo direitos e deveres, e estabelecendo requisitos e formalidades para as outrora “uniões livres”.

As uniões de fato passam a gozar de tabula legislativa similar à do casamento, com exceção dos procedimentos de habilitação e formalidades da celebração. A união de fato, que era livre, passa para a tutela estatal, pagando o preço de sua regulamentação. Nada é mais livre. A união de fato também vai demandar agora o reconhecimento do Estado.

Como agravante dessa situação, de invasão do Poder Público nas esferas privadas mais íntimas das pessoas, doutrina e jurisprudência estendem às uniões de fato todos os demais direitos e deveres do casamento que não tenham sido expressamente mencionados. Quem não se casou para fugir dos efeitos do casamento, agora se submeterá aos mesmos limites e restrições, inclusive no que tange aos impedimentos matrimoniais e aos direitos sucessórios, para, com isso, gozar dos mesmos benefícios.

Na sociedade atual existe uma tendência de se recusar qualquer tipo de interferência externa nas uniões conjugais, já que o principio maior deve ser o da liberdade dos cônjuges. Daí a liberdade de casar, de não casar e de dissolver o casamento.

Claro que a própria noção filosófica de liberdade pressupõe a sua limitação. E nesse sentido a liberdade de se casar está limitada por diversos fatores previstos em lei, como a idade dos nubentes, os laços de parentesco, a preexistência de  outro vínculo conjugal etc. Tais restrições, por óbvio, não comprometem a liberdade do casamento. O importante é que quaisquer restrições a um direito fundamental de liberdade estejam expressamente previstas em lei.

O que nos parece absurdo, e certamente violador desse direito fundamental de liberdade, é se estender para as uniões de fato restrições antes previstas apenas para o casamento. Fazer isso equivale a forçar o casamento de quem não quis se casar. Obrigar um par convivencial a se submeter a todo o quadro normativo dos pares casamentários implica violar o seu direito fundamental de liberdade.

Esse é o paradoxo da união estável: uma união querida livre pela vontade das partes, transformada em um “casamento de fato” pela vontade exclusiva do Estado, pouco importando a vontade dos nubentes.

E nesse particular concluímos que a união estável no Brasil pouco a pouco se converte em um “casamento forçado”.


1 PITÃO, José Antônio de França. Uniões de facto e economia comum. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2011, p. 46.
2 Ob. cit.
3 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato: de acordo com o novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 99.
4 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, v.5:direito de família. 19.ed. ver.,aum. e atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406,de 10-1-2002) e o projeto de lei n. 6.960/2002. São Paulo ,Saraiva,2004, pp. 371-373.
5 CAVALCANTI,Lourival Silva.União estável – a inconstitucionalidade de sua regulamentação.São Paulo: Saraiva, 2003, pp.64/65.
6 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 3. ed., São Paulo: Malheiros, 2001, p. 35.
7 Ai no Rec. Esp. 1.135.354 – PB (2009/0160051-5) – Rel.: Min. Luis Felipe Salomão – R.P/Acórdão: Min. Teori Albino Zavascki.
8 “A criação de um novo estado civil no direito brasileiro para a união estável”. In: Questões controvertidas no direito de família e sucessões. Série grandes temas de direito privado – Vol. 3. Coord. Mário Luiz Delgado e Jones Figueiredo Alves. São Paulo: Método, 2005, p. 267-268.
9 Idem.
10 RUDE-ANTOINE, Edwige.Mariage libre mariage forcé ?Paris : Presses universitaires de France – PUF, 20011, p. 28.
11 Op. cit., p. 69 e segs.
12 A quebra da promessa de casamento por decisão unilateral de um dos compromissados, quando o outro realizou preparativos para o ato, com investimento financeiro, gera obrigação de indenizar os danos materiais, com base nos princípios gerais da responsabilidade civil subjetiva, traduzida na regra geral do art. 186.
13 DIAS, Maria Berenice. A estatização das relações afetivas e a imposição de direitos e deveres. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.) Família e cidadania: o novo CCB e a vacatio legis. Belo Horizonte: IBDFAM, Del Rey, 2002, p. 307.

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