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O tratamento diferenciado da sucessão do cônjuge e do companheiro no Código Civil e seus graves problemas

Flávio Tartuce

Flávio Tartuce

11/12/2015

A necessidade imediata de uma reforma legislativa. 

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Com vigência desde janeiro de 2003, o Código Civil de 2002 completará em breve 13 anos de aplicação no País. Entre inovações, avanços e transformações, o livro mais criticado da nossa legislação geral privada é, sem dúvidas, o dedicado ao Direito das Sucessões.  Além da intrincada concorrência sucessória do cônjuge com os descendentes – claramente influenciada pelo Código Civil Italiano de 1942 e pelo Código Civil Português de 1966 –, muitos problemas surgem do tratamento sucessório diferenciado do cônjuge em relação ao companheiro.

De início, vale lembrar que o cônjuge foi elevado à condição de herdeiro necessário pelo art. 1.845 do Código Civil de 2002, ao lado dos descendentes e dos ascendentes, o que não constava do art. 1.721 da codificação de 1916, seu correspondente. O mesmo não ocorreu com o companheiro ou convivente, apesar da tentativa doutrinária de alguns juristas de enquadrá-lo como tal, caso de Maria Berenice Dias e Paulo Luiz Netto Lôbo.

Ademais, o cônjuge consta como sucessor legítimo no polêmico art. 1.829 do Código Civil em vigor, que tem a seguinte redação: “A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III – ao cônjuge sobrevivente; IV – aos colaterais”. Esse artigo consagra quatro classes de sucessores, como se constata. Na primeira classe, estão os descendentes – até o infinito – e o cônjuge. Na segunda classe, os ascendentes – também até o infinito – e o cônjuge. Na terceira classe, está o cônjuge, isoladamente. Por fim, a quarta classe é composta pelos colaterais, até o quarto grau. Vale lembrar que os herdeiros que estão até a terceira classe são herdeiros necessários, tendo a seu favor a proteção da legítima, correspondente a cinquenta por cento do patrimônio do falecido.

Nota-se, em complemento, que o cônjuge passa a concorrer com os descendentes, o que depende do regime de bens a ser adotado no casamento com o falecido; e com os ascendentes, o que independe do regime. Em suma, da terceira classe na ordem de vocação hereditária – como constava do art. 1.603, inciso III, do CC/1916 –, o cônjuge saltou para a primeira classe, ao lado dos descendentes, e para a segunda classe, ao lado dos ascendentes. Entretanto, isso ocorreu sem que o cônjuge deixasse também de fazer parte da terceira classe. A única concorrência inexistente a respeito do cônjuge concerne aos colaterais, até porque o cônjuge está na posição sucessória anterior. Por isso, pode-se dizer que, sem dúvidas, o cônjuge está em posição sucessória privilegiada na vigente codificação privada. Como corretamente afirma Luiz Paulo Vieira de Carvalho, o cônjuge é a estrela do direito sucessório brasileiro na atualidade.[1]

Em relação ao companheiro, não consta expressamente da ordem de sucessão legítima, merecendo um tratamento em separado, como um sucessor anômalo, no art. 1.790 do Código Civil, outro dos preceitos que figura entre os mais polêmicos da codificação material e que tem a seguinte redação: “A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente a à que por lei for atribuída ao filho; II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança”. Em um duplo sentido, constata-se que o convivente é um herdeiro sem classe, pois não se situa na divisão dos sucessores legítimos do art. 1.829 do Código Civil.

Diante desse tratamento diferenciado, dois dos maiores sucessionistas brasileiros têm sustentado a inconstitucionalidade desse art. 1.790 da codificação material.

Para Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, em sua tese de titularidade, defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, “o art. 1.790 do CC/2002 restringiu a possibilidade de incidência do direito sucessório do companheiro à parcela patrimonial do monte partível que houvesse sido adquirido na constância da união estável, não se estendendo, portanto, àquela outra quota patrimonial relativa aos bens particulares do falecido, amealhados antes da evolução da vida em comum. A nova lei limitou e restringiu, assim, a incidência do direito a suceder do companheiro apenas àquela parcela de bens que houvessem sido adquiridos na constância da união estável a título oneroso. Que discriminação flagrante perpetuou o legislador, diante da idêntica hipótese, se a relação entre o falecido e o sobrevivente fosse uma relação de casamento, e não de união estável!”.[2]

Igualmente, Zeno Veloso comenta que a restrição aos bens adquiridos onerosamente durante a união estável “não tem nenhuma razão, quebra todo o sistema, podendo gerar consequências extremamente injustas: a companheira de muitos anos de um homem rico, que possuía vários bens na época que iniciou o relacionamento afetivo, não herdará coisa alguma do companheiro, se este não adquiriu (onerosamente!) outros bens durante o tempo de convivência. Ficará essa mulher – se for pobre – literalmente desamparada, a não ser que o falecido, vencendo as superstições que rodeiam o assunto, tivesse feito um testamento que a beneficiasse”.[3]  Em outra obra de sua autoria, o jurista demonstra claramente seguir a tese da inconstitucionalidade do comando, aduzindo que: “ao longo desta exposição, e diversas vezes, mencionei que a sucessão dos companheiros foi regulada de maneira lastimável, incidindo na eiva da inconstitucionalidade, violando princípios fundamentais, especialmente o da dignidade da pessoa humana, o da igualdade, o da não discriminação”.[4]

No âmbito dos Tribunais Estaduais, há uma grande variedade de entendimentos, sendo imperioso alertar para a necessidade de que a questão seja decidida pelo Órgão Especial ou pelo Tribunal Pleno de cada Corte. Trata-se de decorrência natural da cláusula de reserva de plenário, retirada do art. 97 da Constituição Federal de 1988, in verbis: “somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”. O texto legal é completado pela Súmula Vinculante n. 10, do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual a vedação também atinge a declaração de inconstitucionalidade implícita: “viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte”. Em outras palavras, há vedação constitucional para que Câmaras ou Turmas isoladas dos Tribunais brasileiros reconheçam a inconstitucionalidade de leis, ainda que de forma não expressa.

Partindo para alguns exemplos concretos, vejamos cinco Tribunais locais que julgaram a questão da maneira como determina a Constituição Federal, mas em sentido oposto.

Inicialmente, a Corte Especial do Tribunal de Justiça do Paraná adotou a premissa da inconstitucionalidade do art. 1.790, mas apenas do seu inciso III, por colocar o convivente em posição de enorme desprestígio, em concorrência com os colaterais, o que é seguido por este autor (TJPR, Incidente de Declaração de Inconstitucionalidade 536.589-9/01, da 18ª Vara Cível do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba. Suscitante: 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Relator: Des. Sérgio Arenhart, j. 04.12.2009).

Fez o mesmo o Pleno do Tribunal de Justiça de Sergipe, ao julgar o Incidente de inconstitucionalidade 8/2010, em decisão de relatoria da Desa. Marilza Maynard Salgado de Carvalho, de 30 de março de 2011. O trecho final do acórdão demonstra que a conclusão atingiu todo o conteúdo do art. 1.790 da codificação privada: “Logo, merece ser reconhecida a inconstitucionalidade do disposto no art. 1.790 do CC, não só por afrontar o princípio da igualdade e o art. 226, § 3º, da Constituição Federal, mas também, ainda que de forma reflexa, o princípio da vedação do enriquecimento sem causa, o que ocorreria por parte dos herdeiros colaterais, em detrimento da companheira sobrevivente que com o falecido conviveu durante muitos anos. Diante de tais considerações, em que pese jamais ter sido declarada a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002 em sede de controle de constitucionalidade concentrado, nada impede que, neste momento, seja declarado referido vício no bojo da presente ação, por meio de controle difuso de constitucionalidade. Ante os argumentos expendidos e com base no farto entendimento jurisprudencial, voto pela declaração de inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002, posto que em desarmonia com o art. 226, § 3º, da Constituição Federal e com os princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana”.

Na mesma esteira o Pleno do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, com a seguinte ementa de conclusão final: “Arguição de inconstitucionalidade. Art. 1.790, inciso III, do Código Civil. Sucessão do companheiro. Concorrência com parentes sucessíveis. Violação à isonomia estabelecida pela Constituição Federal entre cônjuges e companheiros (art. 226, § 3º). Enunciado da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal. Incabível o retrocesso dos direitos reconhecidos à união estável. Inconstitucionalidade reconhecida. Procedência do incidente” (TJRJ, Arguição de Inconstitucionalidade 00326554020118190000, Rel. Des. Bernardo Moreira Garcez Neto, Secretaria do Tribunal Pleno e Órgão Especial, j. 11.06.2012). Como se nota, tais Cortes Estaduais seguiram os argumentos de Giselda Hironaka e Zeno Veloso, aqui antes expostos.

Por outra via, o Órgão Especial do Tribunal Gaúcho, por maioria e com grande divergência, acabou por concluir de forma contrária, ou seja, pela constitucionalidade do art. 1.790, diante da inexistência de igualdade plena entre a união estável e casamento. Conforme consta de sua ementa, “a Constituição da República não equiparou a união estável ao casamento. Atento à distinção constitucional, o Código Civil dispensou tratamento diverso ao casamento e à união estável. Segundo o Código Civil, o companheiro não é herdeiro necessário. Aliás, nem todo cônjuge sobrevivente é herdeiro. O direito sucessório do companheiro está disciplinado no art. 1.790 do CC, cujo inciso III não é inconstitucional. Trata-se de regra criada pelo legislador ordinário, no exercício do poder constitucional de disciplina das relações jurídicas patrimoniais decorrentes de união estável. Eventual antinomia com o art. 1.725 do Código Civil não leva a sua inconstitucionalidade, devendo ser solvida à luz dos critérios de interpretação do conjunto das normas que regulam a união estável” (TJRS, Incidente 70029390374, Porto Alegre, Órgão Especial, Rel. Originário Des. Leo Lima (vencido), Rel. para o Acórdão Des. Maria Isabel de Azevedo Souza, j. 09.11.2009).

Ao final do ano de 2011, o Órgão Especial do Tribunal Paulista acabou por concluir, igualmente, pela inexistência de qualquer inconstitucionalidade no comando em destaque, como já havia feito o Tribunal Gaúcho, adotando as mesmas premissas (TJSP, Processo 0434423-72.2010.8.26.0000 (990.10.434423-9), Órgão Especial, Rel. Corrêa Viana, j. 14.09.2011). Mais uma vez houve intensa discussão técnica, com votos vencidos, prevalecendo a visão que coloca o cônjuge em posição de superioridade perante o companheiro. De acordo com o trecho final do voto do relator, Des. Cauduro Padin, “assim, a questão da igualdade de tratamento não é tão simples, o que significa dizer que eventual equiparação deve ser total, e não apenas em alguns aspectos da vida civil. Portanto, não se vislumbra a alardeada violação ao Texto Constitucional e aos seus princípios”.

Em sede de Tribunais Superiores, a questão ainda pende de julgamento. De início, decisão do ano de 2011, do Superior Tribunal de Justiça, suscitou a inconstitucionalidade dos incisos III e IV do art. 1.790, remetendo a questão para julgamento pelo Órgão Especial da Corte (STJ, AI no REsp 1.135.354/PB, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 24.05.2011, DJe 02.06.2011). Entretanto, em outubro de 2012, o Órgão Especial da Corte Superior concluiu pela não apreciação dessa inconstitucionalidade suscitada pela Quarta Turma, eis que o recurso próprio para tanto deve ser o extraordinário, a ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal (publicado no Informativo n. 505 do STJ). Em suma, a questão da inconstitucionalidade não foi resolvida nesse primeiro momento em sede de Superior Tribunal de Justiça, aguardando-se eventual julgamento pelo STF. Com a decisão, o recurso especial em questão voltou à Quarta Turma para ser julgado apenas nos aspectos infraconstitucionais.

Todavia, sucessivamente no tempo, pode ser encontrado novo acórdão do Superior Tribunal de Justiça, que continua a remeter a questão para a sua Corte Especial, a demonstrar que aquele julgamento anterior não é definitivo na Corte (STJ, AI no REsp 1.291.636/DF, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 11.06.2013, DJe 21.11.2013). Diante dessas remessas sucessivas, o tema voltou à pauta de julgamento da Corte Especial do Tribunal da Cidadania em 2014, havendo divergência entre os Ministros sobre quem deve julgar o tema, se o STJ ou o STF. O julgamento encontra-se suspenso, no presente momento.

No plano do Supremo Tribunal Federal, além do julgamento de algumas reclamações pontuais – especialmente de desrespeito à cláusula de reserva de plenário -, em abril de 2015 foi levantada uma repercussão geral a respeito desse tratamento sucessório diferenciado pelo Ministro Luís Roberto Barroso, no Recurso Extraordinário n. 878.694. Assim, em breve, a mais alta Corte Brasileira deve – tentar, pelo menos –, colocar um fim a respeito da discussão sobre o citado tratamento sucessório diferenciado.

Toda essa variação de julgamentos demonstra como o tema é inseguro no País, no sentido de uma segurança jurídica material, e não formal. Não nos parece que as decisões superiores têm o condão de resolver totalmente o problema, pois ainda restarão debates a respeito da atribuição patrimonial de bens aos herdeiros em cada caso concreto.

Nessa triste realidade jurídica, pensamos que o melhor caminho é a imediata alteração legislativa, revogando-se o art. 1.790 do Código Civil e colocando-se o companheiro ao lado do cônjuge, nos arts. 1.829 e 1.845 do Código Civil. No último Congresso Brasileiro de Direito de Família do IBDFAM, realizado em Belo Horizonte, em outubro de 2015, conclamamos os vários sucessionistas presentes, em painel de debate sobre a matéria, para que comecem esse trabalho, seja por alteração do Código Civil, seja pela elaboração de um novo Estatuto das Sucessões.[5] Esperamos que essa jornada de reforma seja implementada nos próximos anos.


[1] VIEIRA DE CARVALHO, Luiz Paulo. Direito das sucessões. São Paulo: Atlas, 2014, p.  315.
[2] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Morrer e suceder. Passado e presente da transmissão sucessória concorrente. São Paulo: RT, 2011, p. 420.
[3] VELOSO, Zeno. Código Civil comentado. Coordenação de Ricardo Fiúza e Regina Beatriz Tavares da Silva. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 2.010.
[4] VELOSO, Zeno. Direito hereditário do cônjuge e do companheiro. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 185.
[5] Estavam presentes, no painel, entre outros: Giselda Hironaka, Zeno Veloso, José Fernando Simão, Luiz  Paulo Vieira de Carvalho, Ana Luiza Maia Nevares, Rolf Madaleno, Marcelo Truzzi Otero e João Ricardo Brandão Aguirre. O X Congresso de Direito de Família do IBDFAM também contou com a presença de outros destacados autores e professores de Direito das Sucessões, que também podem trazer luzes ao trabalho de reforma, caso de Gustavo Tepedino, Maria Berenice Dias, Maria Celina Bodin de Moraes, Silvio de Salvo Venosa, Rodrigo da Cunha Pereira, Rodrigo Toscano de Brito, Jones Figueirêdo Alves, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald.

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