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O ‘direito ao esquecimento’ por ora não foi e nem deve ser olvidado
Ingo Wolfgang Sarlet
11/04/2024
O assim chamado “direito ao esquecimento” já de há muito (praticamente dez anos) tem ocupado o espaço de algumas das colunas do signatário veiculadas por esta ConJur, abordando desde aspectos históricos, terminológicos e conceituais, conteúdo e limites, assim como referências e comentários à jurisprudência brasileira, estrangeira e internacional [1], sem prejuízo de ponderações críticas endereçadas à decisão majoritária do STF em sede de Repercussão Geral (RE nº 1.010.606, Tema 786), da relatoria do ministro Dias Toffoli, proferida em 11/2/2021 [2], que, supostamente (dada a controvérsia acerca do julgado e importantes diferenças registradas pelos julgadores e seus votos) teria banido a possibilidade do reconhecimento de um “direito ao esquecimento” na ordem jurídico-constitucional brasileira.
Também noutra ocasião, neste mesmo espaço, lançamos a indagação sobre as possibilidades de um presente e um futuro para o “direito ao esquecimento” (terminologia propositalmente entre aspas, pois somos cientes das corretas críticas quanto à precisão/adequação da designação), de tal sorte que, tendo em conta a retomada da discussão sobre o tema (que, na esfera acadêmica, de todo modo, embora talvez com menos intensidade e ânimo, seguia acesa) em nível legislativo, dada a proposta de inserção de tal direito no Código Civil, no âmbito das discussões sobre sua atualização e reforma ora em curso.
De acordo com a proposta, que, aliás, foi objeto de matéria publicada nesta ConJur no dia 8/3 p.p., trata-se, em verdade, de mais de uma modificação/inserção que, embora diferenciadas, guardam direta relação com o que passou a ser conhecido, em sentido amplo, como um “direito ao esquecimento”.
De acordo com o relatório apresentado pelos relatores-gerais da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil em 26/2/2024 (sétima reunião) [3], no primeiro artigo do Capítulo II, que trata Da Pessoa no Ambiente Digital, foi prevista a possibilidade de os indivíduos requererem a exclusão de dados pessoais e de dados pessoais sensíveis expostos sem finalidade justificada, nos termos da lei, seguindo-se, nos §§ 1º e 2º, uma relação (não exauriente) de dados suscetíveis de exclusão e de uma lista de fatores impeditivos do exercício do referido direito à exclusão, que aqui não serão desenvolvidos.Playvolume00:00/00:00TruvidfullScreenhttps://csync-global.smartadserver.com/3356/CookieSync.htmlabout:blank
No artigo subsequente, que tem sido considerado como a expressão de um “direito ao esquecimento”, consta que “Art. X. A pessoa pode requerer a exclusão permanente de dados ou de informações a ela referentes, que representem lesão aos seus direitos fundamentais ou de personalidade, diretamente no site de origem em que foi publicado”.
Já no parágrafo único do citado artigo, consta uma série de requisitos para a concessão do pedido, designadamente,
“I- a demonstração de transcurso de lapso temporal razoável da publicação da informação verídica; II – a ausência de interesse público ou histórico relativo à pessoa ou aos fatos correlatos; III – a demonstração de que a manutenção da informação em sua fonte poderá gerar significativo potencial de dano à pessoa ou a seus representantes; IV – demonstração de que a manutenção da informação em sua fonte, poderá gerar significativo potencial de dano ao indivíduo ou a seus representantes legítimos e nenhum benefício para quem quer que seja; V- a presença de abuso de direito no exercício da liberdade de expressão e de informação; VI – a concessão de autorização judicial”.
Para além de outras disposições sobre a matéria, que, considerando o escopo do presente texto, não é o caso de colacionar, o que chama a atenção — novamente pela direta relação com o assim chamado “direito ao esquecimento” — é o fato de que nos termos de outro artigo,
“Ao indivíduo é possível requerer a aplicação do direito à desindexação, que consiste na remoção do link que direciona a busca para informações inadequadas, não mais relevantes, abusivas ou excessivamente prejudiciais ao requerente e que não possuem (utilidade?) ou finalidade para a exposição, de mecanismos de busca, websites ou plataformas digitais, permanecendo o conteúdo no site de origem.”
Já de acordo com o parágrafo único, “são hipóteses de remoção de conteúdo, entre outras, as que envolvem a exposição de: I – imagens pessoais explícitas ou íntimas; II – a pornografia falsa involuntária envolvendo o usuário; III – informações de identificação pessoal dos resultados da pesquisa; IV – conteúdo que envolva imagens de crianças e de adolescentes”.
Além disso – embora com isso não se esgotem as inovações propostas – há previsão de que “Art. Os mecanismos de busca deverão estabelecer procedimentos claros e acessíveis para que os usuários possam solicitar a exclusão de seus dados pessoais ou daqueles que estão sob sua autoridade parental, tutela ou curatela”.
Retomada do debate
Sendo aqui — considerado o espaço disponível — comentar, ainda que de modo muito superficial, todas as inserções propostas e acima (não exaurientemente) colacionadas, o que nos move nesse momento — sem prejuízo de posteriores desenvolvimentos — é algo muito singelo, mas que, também no nosso caso, parece oportuno revisitar e reenfatizar, é que, mesmo que, ao fim e ao cabo, nada do que acima foi reproduzido venha a ser incorporado ao Código Civil, a temática do direito ao esquecimento, com ou sem decisão do STF refutando a sua compatibilidade com a ordem constitucional brasileira, voltou a agitar a cena política, social, econômica e jurídica brasileira.urn:uuid:8fbb1cb8-5d05-437b-82e2-d0b7a946394f
Isso, por sua vez, mostra que tinham razão os que, quando do polêmico julgamento de fevereiro de 2021 da nossa Suprema Corte (e é também o nosso caso), vaticinaram que o tema ainda estava, na ocasião, longe de ser remetido e confinado ao “baú do esquecimento”, ainda seria objeto de retomada, podendo, inclusive, levar a novos desdobramentos até mesmo no âmbito da jurisprudência do STF, e não apenas em virtude da mudança de composição da corte desde então.
Por tal razão, é que nos permitimos transcrever aqui extratos da coluna publicada em 5/3/2021, que, no nosso sentir, seguem atuais, em especial aqui para o efeito de chamar a atenção para o fato de que o STF, nada obstante o enunciado vinculante resultante do julgamento, de fato não fechou as portas para o que se convencionou (bem ou mal) chamar de “direito ao esquecimento”.
“(…) Focando a questão da existência de um direito ao esquecimento na ordem jurídico-constitucional há que, de antemão, lembrar que uma série de possibilidades de efetivar o que apenas de uns tempos para cá passou a se designar como sendo um direito ao esquecimento já de há muito se faziam e seguem presentes, em pleno vigor, no ordenamento pátrio, de tal sorte que, usar ou não o novo rótulo não faz, de fato, ao menos para esses casos, efetiva diferença. Bastaria aqui, para dar conta disso, invocar alguns exemplos:urn:uuid:44898ecd-fcb2-498f-994d-9f7695ed7fca
O art. 748 do Código de Processo Penal, estabelece que ‘a condenação ou condenações anteriores não serão mencionadas na folha de antecedentes do reabilitado, nem em certidão extraída dos livros do juízo, salvo quando requisitadas por juiz criminal’, o que também está substancialmente previsto no artigo 202 da Lei de Execuções Penais.
No mesmo sentido – embora não apenas no que diz respeito a atos infracionais – o assim chamado Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069, de 13.07.1990) contempla regras que podem ser utilizadas no reconhecimento de um direito ao esquecimento, promovendo a proteção da dignidade e direitos de personalidade das crianças (até 12 anos incompletos de idade) e adolescentes (12-18 anos). Assim, além da previsão do artigo 18 no sentido de que crianças e adolescentes não podem ser submetidos a qualquer tipo de tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor, o artigo 143 veda ‘a divulgação de atos judiciais, policiais e administrativos que digam respeito a crianças e adolescentes a que se atribua autoria de ato infracional’. Soma-se a isso que de acordo com o parágrafo único do mesmo artigo que nenhuma notícia a respeito do fato poderá identificar a criança ou o adolescente, vedando-se fotografias, referências ao nome, apelido, filiação, parentesco, residência e, inclusive, iniciais do nome e sobrenome.
Outra manifestação específica que tem sido associada a um direito ao ‘esquecimento’ encontra suporte do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11.09.1990), mais precisamente no seu artigo 43, § 1º, prescreve que as informações cadastrais dos consumidores constantes das listas de inadimplência (cadastros negativos) somente poderão ser armazenadas e utilizadas pelo prazo de cinco anos, assegurado o direito de exigir o cancelamento (exclusão das informações), ademais da responsabilização das entidades responsáveis pela manutenção e uso dos dados em caso de violação da regra, nos termos de doutrina [4] e jurisprudência dominante.
Mais diretamente relacionada com o tema, assume particular relevo a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, mais conhecida como “Marco Civil da Internet”, que estabeleceu um conjunto de princípios, bem como previu garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Tal diploma legal, mesmo não prevendo expressamente o direito ao “esquecimento”, contém importantes diretrizes e regras concretas que podem ser reconstruídas para fins de se reconhecer a necessidade de acolhimento dessa pretensão jurídica individual em determinados casos. Nesse sentido, artigo 7º dispõe que o “acesso à Internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados, entre outros, os seguintes direitos, designadamente os previstos nos incisos: I – inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; VII – não fornecimento a terceiros de seus dados pessoais, inclusive registros de conexão, e de acesso a aplicações de internet, salvo mediante consentimento livre, expresso e informado ou nas hipóteses previstas em lei; X – exclusão definitiva dos dados pessoais que tiver fornecido a determinada aplicação de internet, a seu requerimento, ao término da relação entre as partes, ressalvadas as hipóteses de guarda obrigatória de registros previstas nesta Lei (…)”;
No mesmo sentido – o que agregamos agora —, pode ser citada a própria LGPD (Lei 13.709/2018), a começar pelo artigo 2º, de acordo com o qual, “A disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos, entre outros, I – o respeito à privacidade; II – a autodeterminação informativa; III – a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião; IV – a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem; VII – os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais”.
Já no que diz respeito ao rol de direitos do titular dos dados pessoais, que, de todo modo, mesmo que considerado na sua integralidade, não é taxativo, o artigo 18 da LGPD elenca, aqui igualmente em caráter ilustrativo, a “III – correção de dados incompletos, inexatos ou desatualizados; IV – anonimização, bloqueio ou eliminação de dados desnecessários, excessivos ou tratados em desconformidade com o disposto nesta Lei; VI – eliminação dos dados pessoais tratados com o consentimento do titular, exceto nas hipóteses previstas no art. 16 desta Lei”;
Retomando aqui a reprodução de trechos da nossa coluna acima referida, verifica-se que, sem prejuízo de outros exemplos que poderiam ser invocados, “a legislação brasileira prevê diversas hipóteses (todas por ora tidas como constitucionais) que asseguram que determinadas informações não podem ser divulgadas (salvo em caráter restrito), que a infração a tais regras aciona a possibilidade de responsabilização do respectivo agente e que até um direito à exclusão (apagamento) é garantida para diversas situações (…)”.
(…) “Além disso, os exemplos escolhidos também desnudam o fato de que, de acordo com alguma legislação – salvo mudança de orientação superveniente – mesmo informações verdadeiras podem (e tem sido) ser subtraídas, no todo ou em parte, por maior ou menor tempo, ao acesso de terceiros, inclusive vedada, em regra, a sua livre e ilimitada veiculação pelas mídias, incluindo os meios tradicionais de comunicação.
Quando voltamos o olhar para os acontecimentos mais recentes, relacionados com o crescente uso das mídias sociais e outros veículos para a disseminação do discurso do ódio e mesmo a polêmica que envolve eventuais limites às assim chamadas fake news, o mesmo STF que acabou de rechaçar um direito ao esquecimento, sem abrir mão da posição preferencial da liberdade de expressão, tem admitido certos limites, assim como, aliás, se dá na grande maioria dos Tribunais Constitucionais do Mundo afora e mesmo dos Tribunais Internacionais de Direitos Humanos (…)”.
“(…) Recordemos que a tese aprovada com repercussão geral pelo STF é a de que “É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais” e que “Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais — especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral — e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível.”
Dito de outro modo, o que para o STF é incompatível é um direito ao esquecimento entendido de determinado modo (quando se trata de impedir a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos), tendo ressaltado, ao mesmo tempo a possibilidade de se avaliar, caso a caso, se houve excesso e/ou abuso no manejo da liberdade de expressão, quando em causa a dignidade, honra, privacidade, entre outros. Note-se, ainda que também as expressas e específicas previsões legais foram ressalvadas, dentre as quais se encontram as acima citadas, assim como outros, como é o caso da configuração dos crimes de calúnia, injúria e difamação.
Liberdade de expressão e de informação deve ter posição preferencial
Do que se trata, em verdade, é de se estabelecer critérios para orientar decisões que envolvem a solução de tais conflitos entre princípios e direitos fundamentais, bem como avaliar quais meios são constitucionalmente legítimos para tal efeito, sempre priorizando – em se reconhecendo a necessidade da proteção dos direitos da personalidade e mesmo da dignidade humana – os meios menos restritivos das liberdades comunicativas, trate-se de fazê-lo mediante responsabilização civil e/ou penal, direito de resposta, correção e/ou apagamento de certos dados, desindexação dos mecanismos de busca na internet, manutenção na íntegra das informações, mas supressão da identidade dos envolvidos desproporcionalmente prejudicados, entre outras possibilidades (…)”.
Seja qual venha a ser o caminho trilhado, com ou sem a chancela, no todo ou em parte, das proposições sugeridas para serem inseridas no Código Civil (e reconhecemos que há muito o que refletir sobre as mesmas), o fato é que é preciso reenfatizar a premissa da qual também não abrimos mão, designadamente a de que a liberdade de expressão e de informação deve ter uma posição preferencial na arquitetura constitucional, e que eventuais e excepcionais restrições, ademais de não poderem configurar censura prévia, devem observar as exigências da proporcionalidade e preservar o núcleo essencial dos direitos fundamentais eventualmente em rota de colisão.
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[1] Destaquem-se as colunas publicadas em 05.06.2015, 26.01.2018, 25.05.2018, 07.12.2019,05.03.2021, 30.01.2022 e 27.01.2023.
[2] Aqui em especial a coluna veiculada pelo ConJur em 05.03.2021.
[3] BRASIL. Senado Federal. Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Relatório apresentado pelos relatores-gerais no dia 26/02/2024 (7ª reunião da CJCODCIVIL): Minuta de texto final ao anteprojeto, conforme art. 10, § 2º do regulamento da comissão. Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/comissoes/mnas?codcol=2630&tp=4>.
[4] EFING, Antônio Carlos. Bancos de Dados e cadastros de consumidores. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2002; BESSA, Leonardo Roscoe. O consumidor e os limites dos bancos de dados de proteção de crédito. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2003.