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CIVIL
PUBLIEDITORIAL
O caos da atual pluralidade da filiação nos vínculos de padrastio ou madrastio
Rolf Madaleno
03/01/2024
O fundamento da pluriparentalidade da filiação termina por considerar o arbítrio de cada julgador em cada momento histórico, dependendo daquilo que for levado em linha mestra de importância, ponderando valores como a verdade biológica, a vontade dos interessados e as relações sociais desenvolvidas, com ou sem a preexistência de algum vínculo registral, e principalmente considerando as precedentes e claras relações de madrasta e padrasto porventura existentes. Crianças podem ter sido criadas em ambiente poliafetivo, por exemplo, de um homem e duas mulheres, e criando com o tempo laços idênticos aos de uma filiação com os três mínimos personagens, que configuram a multiparentalidade sempre presente quando existem mais de duas pessoas, sendo aceito pela jurisprudência brasileira a filiação multiparental, que contraria em termos comparativos a sólida legislação argentina, que, embora suporte todas formas de filiação, seja ela natural, oriunda de técnicas de reprodução humana assistida ou por adoção, mas, em qualquer delas impõe que nenhuma pessoa pode ter mais de dois vínculos filiais (Código Civil y Comercial, art. 558), e se for reclamada uma filiação que importa em deixar sem efeito uma outra filiação anteriormente estabelecida, deve ser prévia ou simultaneamente exercida a correspondente ação de impugnação (Código Civil y Comercial, art. 578).
Sucede de modo diferente no Direito brasileiro, que admite a multiparentalidade constituída por vários pais, destacando Rodrigo da Cunha Pereira, como sendo os mais comuns, os casos de padrastos e de madrastas que também se tornam pais e mães pelo exercício das funções paternas e maternas, ou em substituição aos progenitores,1 embora admita existir uma tênue linha de distinção entre as figuras dos pais em comparação aos padrastos e às madrastas.2 Neste mar de famílias mosaicas ou recompostas, seria caótico se os tribunais passassem a viabilizar o reconhecimento investigatório, unilateral e resistente de uma filiação socioafetiva proveniente da convivência de um padrasto ou de uma madrasta com os filhos da atual esposa ou companheira, marido ou companheiro, pois que, induvidosamente, geraria uma completa pandemia sociofamiliar, porque casais passariam a temer sua convivência com os filhos de seu novo parceiro, eis que a simples coabitação sob o mesmo teto seria o ponto de partida da exigência ou o requisito para reivindicar em juízo, via investigatória de filiação socioafetiva, os vínculos parentais que, em regra, são reservados somente aos pais, apenas surgindo outros progenitores quando os precedentes são destituídos do poder familiar, ou, se não são destituídos, no sistema jurídico brasileiro eles acumulam suas funções parentais com os denominados vínculos pluriparentais.
A larga aceitação da pluriparentalidade levaria à situações esdrúxulas e absurdas diante da possibilidade unilateral de ser judicialmente reivindicado um vínculo socioafetivo litigioso e sobremodo resistido, pois um padrasto poderia conviver alguns anos com dois ou três filhos de sua atual esposa ou companheira, tratá-los todos de forma equânime, ser gentil, carinhoso, atencioso e afetivo com todos seus enteados e de todos ter sido provedor, mas teria a faculdade de ajuizar vínculos de paternidade socioafetiva escolhendo somente um deles e não todos os filhos da sua ex-companheira, sendo que de todos ele foi o padrasto e não o verdadeiro pai.
Padrastos precisam continuar sendo considerados como parentes afins e disto não passam, e nem há porque ser diferente o comportamento de um padrasto ou de uma madrasta, salvo que se sintam ameaçados pela viabilidade de processos judiciais investigatórios de vínculos multiparentais, com altíssima probabilidade de provimento e em completa inversão dos papéis tradicionalmente desempenhados. Ao invés de pai ou de padrasto o investigado socioafetivo poderia ter sido um amigo, como talvez possa ser considerada como uma relação de cuidado e de amizade a instituição do apadrinhamento, onde ninguém ousa atribuir uma filiação socioafetiva a quem dá amor e abrigo aos órfãos de pai e de mãe, e estas são, sim, novas formas de parentalidade que não destroem e nem desfiguram as configurações de parentesco consagradas pelo Código Civil, como sucede com o parentesco por afinidade de quem não é pai e nem mãe, mas que unicamente toma a si os cuidados para com os filhos alheios, pela convivência e pela proximidade, por vezes até com um necessário poder de mando quando o pai é ausente, mas se trata de um padrasto ou de uma madrasta que exerce uma mera função parental e não uma relação de filiação de bipaternidade ou de bimaternidade.
É clássica a diferença crucial entre parentesco e parentalidade, em que o parentesco inscreve o indivíduo em uma genealogia; o une a uma família utilizando a filiação como vetor e nele resulta fundamental o papel dos sexos, ao contrário da parentalidade, que é uma função que cumprem algumas pessoas adultas aportando à criança e ao adolescente meios materiais, educativos e afetivos, mas esta relação não passa por uma filiação e tampouco vem obrigatoriamente marcada pela união de um dos progenitores com o padrasto ou com a madrasta de famílias recompostas, na qual os padrastos são legal e juridicamente estranhos em relação à criança ou ao adolescente, pois ocupam funções de parentalidade, dissociados dos vínculos de um pai ou de uma mãe biológicos,3 e até mesmo dos pais socioafetivos de uma adoção à brasileira. Sendo os pais os cotitulares e titulares da função paterna, tampouco os demais parentes e membros da família possuem direitos de autoridade parental, existindo outras configurações familiares que não devem e nem precisam ser readequadas, pois funcionam como são e como são reconhecidas pela lei, como ocorre com as figuras jurídicas dos padrastos e das madrastas, dos enteados e das enteadas, e esta deve ser a maneira legal e fática de enfocar a conformação familiar vivenciada pelos padrastos, madrastas, enteados e enteadas, pois que a presença cotidiana de um padrasto ou de uma madrasta na vida de uma criança ou de um adolescente permite desfrutar na prática de uma situação privilegiada e, em certas ocasiões, eles desempenham um importante papel na educação dos enteados, mas enteados e padrastos e enteadas e madrastas carecem de um vínculo legal de parentalidade com efeitos de poder familiar, dado que a lei não lhes outorga nenhum direito específico, lembrando que até para um padrasto adotar um enteado precisa da autorização do genitor biológico.
A família reconstituída é uma unidade que realiza igualmente as funções atribuídas ao grupo familiar, e muitas das atribuições que dela derivam se assemelham aos que produzem o conjunto familiar biológico, mas isto não atribui um lugar especial e particular aos adultos que se ocupam da parentalidade dos filhos de seus parceiros, e desta realidade se ocupa o legislador brasileiro em todas as edições do Código Civil, ao regular os vínculos de parentesco por afinidade, que eram em menor número quando só as viúvas casavam novamente, mas que cresceram com a implementação do divórcio, de modo que as obrigações do primeiro matrimônio não se estendem à família recomposta do segundo casamento ou de uma união estável, onde cada membro destas famílias recompostas tem suas funções claramente delimitadas, inclusive pela legislação em vigor, em que tanto o padrasto como a madrasta tem cada um deles um dever constitucional de proteção da sua própria e nova família que foi constituída, como em relação à família e aos filhos dos outros com os quais agora convive exercendo um parentesco de afinidade e que tem seus próprios e definidos papéis, e cujos vínculos não podem ser usurpados com a banalização das relações de parentesco biológico, socioafetivo e oriundos da simples, mas importante, relação de afinidade.
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NOTAS
1 “Apelação Cível. Ação de reconhecimento de maternidade post mortem. Multiparentalidade. Sentença de improcedência. Insurgência. Preliminar de cerceamento de defesa afastada. Inteligência do art. 357, § 6º e § 7º do CPC. Mérito. Acolhimento. Filiação socioafetiva que constitui modalidade de parentesco civil. Inteligência do art. 1.593 do CC. Princípio da afetividade jurídica que permite, conforme o entendimento do STJ, a coexistência de relações filiais ou a denominada multiplicidade parental. Reconhecimento que exige a necessidade de tratamento como se filho fosse e o conhecimento público dessa condição. Precedentes da Corte Superior. Hipótese dos autos em que a filiação socioafetiva está comprovada. Partes que tiveram relação materno-filial por 36 anos, após o falecimento da mãe biológica do autor e em decorrência da união estável mantida com seu pai. Elementos dos autos, tais como testemunhas, fotos e documentos, uníssonos no sentido de que as partes sempre se trataram como mãe e filho, de forma pública e notória, nutrindo afeto mútuo. Sentença reformada para reconhecer o vínculo de filiação socioafetiva entre as partes, determinando-se, em consequência, a inclusão do vínculo de filiação materna junto ao assento de nascimento do autor, sem prejuízo daqueles já registrados, bem assim as demais averbações pertinentes a este parentesco. Retificação do polo passivo para constar o espólio da falecida M.P. Recurso Provido, com observação” (TJSP. Apelação Cível 1006090 70.2019.8.26.0477. Terceira Câmara de Direito Privado. Relatora Desembargadora Viviani
Nicolau. Julgado em 02.02.2021).
2 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das famílias. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 377.
3 HAYA, Silvia Tamayo. El estatuto de los padrastros. Nuevas perspectivas jurídicas. Madrid: Sciencia Iuridica, 2009. p. 23.