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CIVIL
CLÁSSICOS FORENSE
REVISTA FORENSE
Nacionalidade E Cidadania – Elegibilidade Dos Naturalizados, de João Mangabeira
Revista Forense
10/01/2024
– O pensamento liberal do constituinte, permanentemente definido no corpo da Constituição, não pode ser restringido ou deturpado pela interpretação xenófoba de uma disposição transitória.
– Interpretação do art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
PARECER
O art. 19 das Disposições Constitucionais Transitórias não pode ser interpretado ou aplicado tendo-se apenas em vista o período único que lhe constitui a totalidade do texto. Uma das regras básicas da interpretação da lei é a expressa por CELSO, como um dos princípios fundamentais do Direito Romano: “Incivile est nisi tota lege perspecta, una aliqua particula ejus proposita judicare vel respondere“. Isto é, não se deve julgar nem responder considerando apenas uma partícula da lei, senão examinando-a na sua totalidade. O brocardo imortal, formulado há tantos séculos, nada perdeu até hoje em sua eficácia, sempre a mesma na sua aplicação constante e na sua juridicidade incontestável. Mas é sobretudo de referência a um texto constitucional que a sabedoria do cânone milenar se nos apresenta na plenitude de sua aplicabilidade e do seu vigor. É que uma Constituição é antes de tudo um instrumento de govêrno e como tal deve ser sempre considerada no seu complexo, por mínima que seja a partícula do sistema especialmente examinada. Qualquer desajustamento de uma das peças, embora subalterna, repercute em tôda a entrosagem, perturbando a harmonia dos movimentos do conjunto. Uma Constituição não é para ser vista através do microscópio dos laboratórios de análise, mas em conjunto, como síntese do pensamento que a elaborou, como estrutura política, de linhas rígidas, para resistir aos impulsos do arbítrio individual, mas flexíveis, para adaptar-se às mutações permanentes do processo da história.
Julgando o caso Jouseglowone Sneet & Tube Co. versus Sawyer, dizia há dois anos FRANKFURTER na Côrte Suprema:
“A estrêla polar para um julgamento constitucional é a maior das advertências judiciais de JOHN MARSHALL quando, nos observava: “é uma Constituição que estamos interpretando”.
É que, julgando, há 135 anos, exatamente a 8 de março de 1819, o caso Mac-Culloch versus Maryland, o grande presidente advertia aos juízes da Côrte Suprema, de referência à interpretação da lei:
“Examinando esta questão, não nos devemos esquecer de que é uma Constituição que estamos interpretando”.
Assim, ao interpretar-se ou aplicar-se a disposição transitória que é objeto dá consulta, não devemos esquecer “que é uma Constituição que estamos interpretando”, e que por isso mesmo, no caso, o essencial é seu objetivo, seu pensamento político, de referência à participação de brasileiros natos e naturalizados no exercício do govêrno. O pensamento político da Constituição, o seu objetivo no assunto, foi o de igualdade entre brasileiros natos e naturalizados, como decorre do texto do art. 129. Aí a igualdade é absoluta, uma vez que nenhuma diferença o artigo estabelece entre brasileiros natos e naturalizados.
Restrições
Mas a esta igualdade a própria Constituição faz restrições nos arts. 38, parágrafo único, nº I, 90, nº I, 97 e 126.
Assim, apenas os brasileiros natos podem ser deputado, senador, presidente ou vice-presidente da República, ministro de Estado, ministro do Supremo Tribunal e procurador geral da República. Exige, além disto, a Constituição, nos arts. 155, parág. único, e 160, que sejam brasileiros natos os proprietários, armadores, comandantes de navios nacionais e os principais responsáveis e orientadores intelectuais e administradores de emprêsas jornalísticas.
Fora dêsses casos precisos, excepcionalmente fixados na Constituição, não admitiu o constituinte nenhuma diferença entre brasileiros de qualquer espécie. E para dar a êsse pensamento uma forma expressamente proibitiva, prescreveu no art. 31 e nº I:
“À União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, é vedado:
I, criar distinções entre brasileiros ou preferências em favor de uns contra outros Estados ou Municípios”.
Eis aí o pensamento do constituinte manifestado em têrmos inequívocos, nos vários artigos que acabamos de apontar. Seria possível que a êsse pensamento tantas vêzes reiterado, sob formas afirmativas ou negativas, mas sempre permanentemente repetido, fôsse o mesmo legislador opor nas Disposições Transitórias, e contra a própria natureza desta, um impedimento definitivo, que de fato desfaria o que na Constituição com caráter de perpetuidade se concedera, e em muitas prescrições se fixara?
Evidentemente não, a menos que a Constituição se compusesse de amnésicos, que se esquecessem do que haviam querido e escrito, apenas o houvessem formulado.
Mas, para interpretar ou aplicar constitucionalmente o art. 19, cumpre antes de tudo atentar na sua natureza. Uma disposição transitória é por sua natureza e seu fim destinada a uma vida efêmera, que se extingue com o fato transitório que ela tem por objetivo regular. Se assim não fôsse, estaríamos em face de uma disposição permanente, que é exatamente o seu oposto. Uma disposição constitucional transitória ou rege uma atuação jurídico-política especialíssima, excluída, por isso mesmo, do corpo permanente da Constituição, ou restringe efêmeramente uma prescrição definitiva para prover uma situação passageira:
Uma Constituição não pode ser e não ser ao mesmo tempo. O pensamento do constituinte, equiparando definitiva e permanentemente, em tudo, brasileiros natos e naturalizados, exceto nos casos especialíssimos que a Constituição especificou, não pode ser definitiva e permanentemente limitado pelas Disposições Transitórias, que em ato, separado êle mesmo, no mesmo dia promulgou. As duas disposições, de objetivos diferentes, – as permanentes e as transitórias, – têm de coexistir, ajustando segundo sua própria natureza. Assim, a disposição transitória não pode subsistir depois de desaparecida a situação passageira a que visou regular. Seria transformá-la de transitória em permanente; e de uma permanência privilegiada, pois sôbre tôdas as outras desta categoria teria proeminência e predomínio.
Não fôra assim, e o art. 19 teria sido incluído nas Disposições Gerais. O que não é possível, convém refrisar, é transmudar em permanente uma prescrição que o constituinte expressamente declarou provisória. Interpretar ou aplicar de outro modo o art. 19 não é ler, senão tresler a Constituição.
Nem se venha objetar que a letra do art. 19 impõe a interpretação que ora se combate, uma vez que declara:
“São elegíveis para cargos de representação popular, salvo os de presidente e vice-presidente da República e o de governador, os que, tendo adquirido a nacionalidade brasileira na vigência das Constituições anteriores, hajam exercido qualquer mandato eletivo”.
Direito comparado
Julgando o caso Giuseppi versus Walling, LEARNED HAND, considerado o maior dos juristas norte-americanos dos últimos tempos, com assento nos Tribunais, nesses têrmos se anunciava.
“Não há meio mais seguro de tresler “qualquer documento do que a sua leitura literal”.
E na Inglaterra LORD HALSBURY, julgando o caso Helder versus Dexter ao interpretar o Companies Act, que êle próprio elaborara, assim falava:
“Tenho dito mais de uma vez que o redator de um Estatuto é a pessoa menos apta para construí-lo, pois está sempre disposto a confundir o que pretendeu fazer com o efeito da expressão que empregou”.
Tomar um artigo isolado, máxime de uma Constituição, e considerar apenas a expressão material das palavra, que o compõe, será um dêsses casos de “interpretação mecânica” a que se refere GENY e que leva fatalmente à “ossificação do direito”, como fala BESOLZHEIMER.
Certas pessoas raciocinam, a contrario sensu, que são inelegíveis os “que não hajam exercido o mandato eletivo”. Nada mais errado. Como tôda disposição transitória, o art. 19 rege uma situação provisória que só existirá durante um certo tempo, isto é, que não permanece indefinidamente. Por isso mesmo, o dispositivo transitório não poderia jamais tornar inefetiva uma disposição permanente. Assim, temos de combinar o art. 19 com o sistema permanente da Constituição. Esta Constituição, no art. 129, nenhuma distinção faz entre brasileiros natos e naturalizados. Diz apenas “são brasileiros”; e, ato seguido, enumera os natos e os naturalizados. Da mesma forma, no art. 131, em que diz:
“São eleitores os brasileiros maiores de 18 anos que se alistarem na forma da lei”.
Do mesmo modo, não estabelece nenhuma diferença entre brasileiros natos e naturalizados nos casos de inelegibilidade. Mas, a Constituição, nos arts. 38, número I, e 80, nº I, prescreve que sòmente os brasileiros natos poderão concorrer aos cargos de deputado, senador, presidente e vice-presidente da República. Quanto à elegibilidade para cargos de representação popular, sòmente quanto àqueles faz a Constituição diferença entre brasileiros natos e naturalizados e confere um privilégio, aos primeiros. Quanto aos outros cargos de representação popular, para todos êles, pelo corpo permanente da Constituição, isto é, pelo nosso sistema político definitivo, podem ser indistintamente candidatos brasileiras natos ou naturalizados. Esta é a regra permanente da Constituição, êste o princípio constitucional definitivo, com o qual tem de harmonizar-se o art. 19 das Disposições Transitórias. Com aquela regra permanente harmoniza-se perfeitamente o artigo transitório, se devidamente interpretado. O art. 19, que a Constituição declara transitório, não pode transformar-se em permanente para permanentemente vedar aos naturalizados a eleição aos cargos às Assembléias Legislativas ou às Câmaras Municipais. Não! Mas o artigo conserva a sua natureza transitória e abre uma exceção à regra permanente, que veda aos brasileiros naturalizados a elegibilidade para os cargos de deputado e senador, à representação nacional, facultando que a êles sejam elegíveis, transitòriamente, os brasileiros naturalizados que hajam exercido mandato eletivo, situação de fato transitória, pois desaparece com o falecimento dos beneficiados.
Disposição Transitória
Assim, a Disposição Transitória não restringe, mas alarga transitòriamente a capacidade política de certos naturalizados.
Eis como a Disposição Transitória, assim interpretada ou aplicada, não colide com o pensamento generoso da Constituição, que em tudo o mais equipara os brasileiros natos ou naturalizados. É que, na própria restrição permanente que a Constituição estabelece, o constituinte, numa disposição transitória, abre margem que permite a certa espécie de naturalizado exercer o mandato de deputado federal ou senador.
O mesmo espírito liberal domina o art. 20, que dêste modo se enuncia:
“O preceito do parág. único do artigo 155 da Constituição não se aplica aos brasileiros naturalizados que, na data dêste Ato, estiverem exercendo as profissões a que o mesmo dispositivo se refere”.
Assim, as profissões de proprietários, armadores e capitães de navios nacionais, que nos têrmos do parág. único do art. 155 da Constituição constituem privilégios dos brasileiros natos, poderão ser exercidas pelos naturalizados, se as estiverem exercendo à data da promulgação das Disposições Transitórias.
Em ambos os casos – arts. 19 e 20 a Disposição Transitória não restringe, mas alarga, embora provisòriamente, a capacidade conferida pela Constituição aos brasileiros naturalizados.
Nem é raro que nas Constituições isso aconteça, em relação a certos naturalizados. Na Constituição dos Estados Unidos, seção I do art. II, nº 3, se declara que “ninguém será elegível a presidente se não fôr nascido nos Estados Unidos ou cidadão dos Estados Unidos adotado à época desta Constituição”.
A parte final foi sabidamente posta, devido à situação especial de WILSON e HAMILTON, o primeiro escocês e o segundo antilhano, ambos cidadãos dos Estados Unidos, o primeiro signatário da Declaração da Independência, o segundo membro da Convenção de Filadélfia. Aquêle, nomeado logo depois juiz da Côrte Suprema, êste, secretário da Fazenda de WASHINGTON.
Foi essa espécie de reconhecimento aos serviços de certos brasileiros naturalizados que determinou as disposições transitórias acima transcritas. O constituinte, depois de estabelecer a regra permanente, não quis arrancar certos naturalizados das profissões que estavam exercendo com capacidade e nelas servindo, com dedicação de brasileiros natos, aos interêsses do Brasil. A exceção transitória teria a transitoriedade da vida dos beneficiados. Não quis excluir do Congresso Nacional brasileiros naturalizados, que já haviam desempenhado, com patriotismo, mandatos “de representação popular”. Vista nestes têrmos, assim interpretada ou aplicada, a Disposição Transitória não colide, mas antes se ajusta com o pensamento político do constituinte, quando, no texto permanente da Constituição, igualou, quanto à “representação”, brasileiros natos e naturalizados, ressalvado, porém, exclusivamente àqueles o privilégio da elegibilidade aos cargos de deputado, senador, presidente e vice-presidente da República.
Assim, e depois de tudo quanto acima fica exposto, sou de parecer que o art. 19 não poderia ter outro efeito senão o de permitir que os “naturalizados que hajam exercido o mandato eletivo” sejam elegíveis para os cargos de senador e deputado, a que os outros naturalizados não poderiam candidatar-se.
O pensamento liberal do constituinte, permanentemente definido no corpo da Constituição, não pode ser restringido ou deturpado pela interpretação xenófoba de uma disposição transitória.
João Mangabeira, advogado no Distrito Federal.
LEIA TAMBÉM O PRIMEIRO VOLUME DA REVISTA FORENSE
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 1
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 2
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 3
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 4
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