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Jogo, rifa, sorteio: o que é ilegal?

Caio Mário da Silva Pereira
Caio Mário da Silva Pereira

06/03/2024

Os jogos não são nem podem ser tratados com igualdade pela ordem jurídica. Ao revés, atendendo à finalidade ética em que se inspiram, ora recebem a condenação franca, e, como contravenções penais, não somente deixam de produzir efeitos, como ainda sujeitam o infrator às sanções, ora remanescem numa zona grísea, que não é atingida pelo rigor da punição, mas que não é alcançada pelo poder criador do negócio jurídico; ora lhes toma conhecimento a ordem jurídica, e atribui-lhes consequências favoráveis. São estas as três espécies de jogos: proibidos, tolerados, autorizados.

Proibidos são os jogos de azar, aqueles em que o fator sorte tem caráter absoluto ou predominante, como a roleta, o bacará, a campista, o bicho, o sete e meio, o pif-paf, e, além desses, a aposta sobre corrida de cavalo fora de hipódromos, a extração de loteria sem autorização etc. (Lei das Contravenções Penais, arts. 50 e segs.). Como ilícitos que são, não geram direitos, mas sujeitam o infrator a punição. Quem perde não tem o dever de pagar, e se paga não pode repetir o indébito, por se não imiscuir a ordem nas relações oriundas da contravenção aos seus preceitos.

Tolerados são os que não transpõem o limiar da iliceidade, mas nem por isto conquistam os favores da lei (Código Civil, § 2º do art. 814). São aqueles em que o resultado não depende exclusivamente ou preponderantemente da sorte, como o bridge, a canastra, o truco etc. Não constituindo contravenções penais, deveriam em princípio gerar direitos e obrigações, e, por via de consequência, o ganhador haveria de ter ação para exigir o crédito.1 Mas, não passando de divertimento sem utilidade, ou constituindo vícios que merecem repressão, a ordem legal não penetra na sua órbita, e não lhes regula os efeitos.2 A mesma carência de interesse social, que recusa exigibilidade à obrigação, nega a repetitio ao perdedor que paga.

Autorizados são aqueles socialmente úteis, pelo benefício que trazem a quem os pratica (competições esportivas, tiro ao pombo, corridas automobilísticas, de bicicletas ou a pé etc.), ou porque estimulam atividades econômicas de interesse geral (turfe, trote), ou pelo proveito que deles aufere o Estado, empregado no sentido de realizar obras sociais relevantes (loterias).3 Regularmente autorizados, dão nascimento a negócios jurídicos, cujos efeitos são legalmente previstos, e, conseguintemente, quem ganha tem ação para receber o crédito, revestido que fica de todas as características de obrigação exigível (Código Civil, 2ª parte do § 2º e § 3º do art. 814).4

Na vigência da legislação que admitia jogo de azar nas localidades de interesse turístico, estâncias hidrominerais etc. assumiram a categoria de jogos tolerados. Mas nunca chegariam à qualidade de autorizados, hábeis a gerar obrigações civis e exigíveis, embora não se sujeitassem os apontadores às sanções penais.

As loterias, tomada a expressão em sentido genérico, somente no caso de serem autorizadas perdem o conteúdo ilícito, e dão causa à exigibilidade da prestação, que pode ser dinheiro (loteria propriamente dita) ou pode ser mercadoria ou um bem em espécie, quando se denomina rifa.5 Autorizada pelo diretor das Rendas Internas do Ministério da Fazenda, têm de submeter-se às prescrições legais, dentre as quais a emissão de bilhetes ao portador, extração do sorteio em data certa e insuscetível de adiamento, a não ser por deliberação daquela autoridade. Se a loteria, rifa inclusive, não é autorizada, é jogo de azar, e o adquirente do bilhete não tem ação para reclamar o prêmio, como para pedir a restituição do seu custo (Enneccerus).6

Os sorteios puramente gratuitos não são proibidos, mas dependem de autorização do Ministério da Fazenda (art. 1º da Lei nº 5.768, de 20.12.1971). Outros tipos de sorteios em que haja algum tipo de contraprestação ao promotor também podem ser autorizados, desde que exista prévia consulta e autorização do Ministério da Fazenda.

Os sorteios que podem ser autorizados: a) as operações conhecidas como Consórcio e Fundos Mútuos;719 b) a venda ou promessa de venda de mercadorias a varejo, mediante oferta pública e com recebimento antecipado, parcial ou total, do respectivo preço; c) a venda ou promessa de venda de direitos, inclusive cotas de propriedade de entidades civis, tais como hospital, motel, clube, hotel, centro de recreação ou alojamento e organização de serviços de qualquer natureza com ou sem rateio de despesas de manutenção, mediante oferta pública e com pagamento antecipado do preço; d) a venda ou promessa de venda de terrenos loteados a prestações

mediante sorteio e e) qualquer outra modalidade de captação antecipada de poupança popular, mediante promessa de contraprestação em bens, direitos ou serviços de qualquer natureza (art. 7º da Lei nº 5.768, de 20.12.1971), especialmente a lei que dispõe sobre o Sistema de Consórcios (Lei nº 11.795, de 8 de outubro de 2008), que se destina a propiciar o acesso ao consumo de bens e serviços, constituído por administradoras de consórcio e grupos de consórcio. A característica principal que aproxima essas explorações mediante sorteio não é o jogo em si, daí a possibilidade de sua exploração mediante autorização prévia e, atualmente, como meio benfazejo de aquisição de bens por interessados que não têm a possibilidade de dispor de todos os valores para compra de bens com preços significativamente elevados. No caso especial do Sistema de Consórcios, a lei estabelece critérios fixos acerca da possibilidade de criação de grupos de consórcios ou administradoras desses grupos, seu modo de operação, a adesão de interessados, descumprimento contratual, inadimplência, resgate dos bens, sorteios, lances e devolução de valores no caso de desistência.

Autores: Caio Mário da Silva Pereira e Caitlin Mulholland

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NOTAS

1 Orlando Gomes, Contratos, nº 310.

2 Clóvis Beviláqua, Comentários ao art. 1.477 do Código de 1916.

3 A Medida Provisória nº 1.182, de 24 de julho de 2023, disciplina a exploração da loteria de apostas de quota fixa pela União, como as apostas esportivas (bets), estabelecendo limitações a elas.

4 Ruggiero e Maroi, Istituzioni, ao art. 1.477.

5 O Decreto-Lei nº 6.259, de 10 de fevereiro de 1944, dispõe sobre o funcionamento das Loterias Federais e Estaduais. Apenas o Poder Público, mediante concessão, pode autorizar que agentes privados explorem a atividade lotérica. No país, a maior parte das loterias onde o brasileiro faz aposta, atualmente, é explorada por meio de Concessão a empresas públicas ou sociedades de economia mista, onde o Poder Público tem a maioria do capital, como ocorre com a Caixa Econômica Federal. O sistema de “rifas” deve ser autorizado pela Receita Federal do Brasil. Caso não haja a autorização, a sua exploração é ilegal e constitui contravenção penal (arts. 45 a 60 do Decreto-Lei nº 6.259, de 10 de fevereiro de 1944).

6 Enneccerus, Kipp y Wolff, loc. cit.

7 A modalidade de consórcio de bens atualmente é regrada pela Lei nº 11.795, de 8 de outubro de 2008. A lei normatiza pormenorizadamente acerca da criação de consórcios e de sua administração. O advento da lei não prejudicou a prática do sorteio que ainda continua contemplada nos termos de seu art. 22.

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