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Uma indevida interferência no testamento
Ana Luiza Maia Nevares
23/04/2020
Há aproximadamente um ano e meio atrás, em 2018, na Comarca de Guaxupé, Minas Gerais, foi proferida sentença através da qual o juiz de primeira instância acolheu pretensão de duas netas da testadora no sentido de restarem beneficiadas com parte da cota disponível da herança, que havia sido destinada em ato de última vontade para os outros cinco netos da falecida. Da leitura da sentença, depreende-se que a testadora possuía 07 (sete) netos e beneficiou 05 (cinco) deles em seu testamento, destinando-lhes sua cota disponível. Apesar do tempo decorrido, a questão é trazida pela reflexão sobre os limites do testador na elaboração de seu ato de última vontade.
O cerne da discussão foi o direito da testadora de dispor livre e incondicionalmente de sua parte disponível. Segundo a sentença, chamou “atenção o fato de a disposição testamentária contemplar exatamente os cinco netos (que são filhos das filhas havidos da relação de casamento) e, ao mesmo tempo, de forma indisfarçavelmente discriminatória, não contemplar as outras duas netas (que são filhas do filho, não havidas da relação de casamento)”, concluindo que não poderia ser considerada válida disposição testamentária eivada dessa discriminação “sabendo-se que a única distinção entre todos eles repousa no fato de que, aqueles, são fruto do casamento das filhas-mulheres da testadora, enquanto estas, são fruto de relação não matrimonial havida, pelo único filho-homem da testadora, com duas distintas pessoas”. De fato, embora não tenha sido encontrado o testamento para consulta, por trechos da sentença, é possível perceber que a testadora reprovava a conduta social do filho.
Nessa direção, fundamentando-se principalmente no princípio constitucional da igualdade entre os filhos e da proibição de sua discriminação insculpido no § 6º do art. 227 da Constituição da República e invocando uma análise do ato testamentário à luz do referido princípio constitucional, a sentença concluiu que a disposição testamentária era discriminatória e não poderia prevalecer tal como lançada, devendo todos os netos ser aquinhoados com a cota disponível da herança, uma vez que, de outra forma, o instituto do testamento seria desvirtuado, dando vazão aos chamados “planejamentos sucessórios, que, em verdade, são instrumentos de perseguição e de discriminação que a ordem jurídica não mais tolera, contrariando os bons costumes e, de resto, aniquilando a harmonia familiar”.
Em primeiro lugar, é preciso ponderar que o planejamento sucessório em si não é um instrumento de perseguição e de discriminação. Evitar conflitos, permitir que desejos sobre aspectos fundamentais da vida da pessoa sejam manifestados e executados, garantir a continuidade de empresas e negócios, bem como fomentar uma melhor distribuição da herança, conforme as pessoas dos herdeiros e os bens integrantes do monte são alguns dos objetivos do planejamento sucessório, que sem dúvida encontram respaldo em nosso ordenamento jurídico. Dessa forma, diante da maior longevidade da população brasileira e da crescente recomposição das famílias, tem sido cada vez mais acentuada a preocupação com o planejamento sucessório, que uma vez realizado amparado na lei deve ser respeitado.
Quanto à decisão em comento, por trechos da sentença, não se vislumbra que a testadora tenha motivado a disposição testamentária com qualquer previsão discriminatória. Com efeito, os motivos que levam uma pessoa a praticar determinado negócio jurídico são, em regra, irrelevantes, salvo quando elevados à razão determinante do ato. Sem dúvida, sempre há um motivo para as nossas ações, mas quando estes não estão explicitados não cabe ao Direito perquiri-los e julgá-los.
A toda evidência, o testamento, como ato de autonomia privada, não pode prescindir de um exame de merecimento de tutela à luz da normativa constitucional. No entanto, tal análise deve ser fundamentada pela ponderação entre os princípios da liberdade e da solidariedade, bem como pelo exame da esfera na qual se insere a disposição testamentária, a saber, se aquela patrimonial ou existencial do testador, sob pena de uma interferência indevida no ato de autonomia privada. No caso em questão, ainda que se esteja em sede de disposições patrimoniais, na qual o dever de solidariedade tende a preponderar sobre a liberdade em situações de conflito de difícil solução entre a vontade do testador e os legítimos interesses dos herdeiros, não se verifica violação à Constituição da República.
Se a testadora tivesse justificado a escolha dos contemplados, ou seja, tivesse apresentado os seus motivos expressamente no ato de última vontade, sendo estes pautados por uma discriminação peremptoriamente vedada pela Constituição da República, ter-se-ia, então, uma deixa testamentária eivada por motivo ilícito e, assim, a solução do caso poderia se aproximar daquela alcançada pela sentença de Guaxupé, a depender da interpretação do testamento e de outros fatores que faltam numa mera análise da sentença.
Toda essa questão leva, ainda, a ponderar que o enunciado 268 da III Jornada de Direito Civil merecia ser revisto, in verbis: “268 – Art. 1.799: Nos termos do inc. I do art. 1.799, pode o testador beneficiar filhos de determinada origem, não devendo ser interpretada extensivamente a cláusula testamentária respectiva”. Sem dúvida, a escolha do beneficiado do testamento é livre. No entanto, como ponderado, não deve ser lícito ao testador submeter sua deixa à condição dessa prole que seja vedada pela normativa constitucional.
De volta ao caso de Guaxupé, lendo apenas a sentença, parece não assistir razão à decisão de primeiro grau, justamente porque se a testadora não contemplou as duas netas por razões discriminatórias, assim o fez, segundo o que consta da sentença, sem explicitar os seus motivos no testamento, razão pela qual resta indevida a interferência judicial no ato de última vontade. Lembrando Andrea Pachá, “a vida não é justa”.
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