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Guarda de PETS? A família multiespécie
Rolf Madaleno
29/07/2024
A família multiespécie encontra apropriada definição no Recurso Especial 1.713.167/ SP, na Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em voto da relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, datado de 19 de junho de 2018, ao externar que “os animais de companhia possuem valor subjetivo único e peculiar, aflorando sentimentos bastante íntimos em seus donos, totalmente diversos de qualquer outro tipo de propriedade privada”, não podendo ser considerados em sua natureza jurídica como meros objetos de propriedade, não sendo dotados de personalidade jurídica e tampouco podendo ser considerados sujeitos de direito. Segundo o voto do Ministro Luis Felipe Salomão “os animais de companhia são seres que, inevitavelmente, possuem natureza especial e, como ser senciente – dotados de sensibilidade, sentindo as mesmas dores e necessidades biopsicológicas dos animais racionais –, também devem ter o seu bem-estar considerado”. E arremata sua decisão ordenando que “na dissolução da entidade familiar em que haja conflito em relação ao animal de estimação, independentemente da qualificação jurídica a ser adotada, a resolução deverá buscar atender, sempre a depender do caso em concreto, aos fins sociais, atentando para a própria evolução da sociedade, com a proteção do ser humano e do seu vínculo afetivo com o animal”. Destarte, o Superior Tribunal de Justiça manteve o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo de que os animais de estimação foram um terceiro gênero e que não se está diante de uma “coisa inanimada”, não chegando à condição de sujeito de direito, mas que é destinatário das relações de afeto no âmbito de sua convivência doméstica1.
Lívia Borges Zwetsch faz menção à doutrina utilitarista da proteção animal desenvolvida por Peter Singer, por meio da qual a consideração de interesses de um ser vivo não exige que ele pertença a determinada espécie, que seja membro de uma comunidade ou que possua senso de justiça. E prossegue, a doutrina ética de Singer refuta o especismo (a tradição moral na qual vive a sociedade, que condena os animais não humanos a viverem para atender aos desejos, satisfazer os caprichos e suprir as necessidades dos humanos), defendendo que a característica vital que confere a um ser o direito a igual consideração é sua capacidade de sofrer ou de sentir prazer ou felicidade.21
Os animais domésticos em particular, consoante entendimento do Superior Tribunal de Justiça, deixam de ser considerados semoventes (CC, art. 82), passando as decisões judiciais a considerá-los não mais pela posse e propriedade (CC, art. 1.232), mas como seres sencientes, ou seja, seres passíveis de sentir dor ou sofrimento emocional aos quais, segundo Amanda Souza Linhares, são transmitidas relações de afeto, elevando-os ao status de membro da família, gerando a mitigação do conceito de propriedade, o que faz gerar direito à composse para satisfação não somente do bem-estar do animal, como também no socorro à preservação da dignidade da pessoa humana.3
O próprio IBDFAM aprovou, no X Congresso Brasileiro de Direito de Família, o Enunciado 11, nos seguintes termos: “Na ação destinada a dissolver o casamento ou a união estável, pode o juiz disciplinar a custódia compartilhada do animal de estimação do casal”.
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NOTAS
1 “Recurso especial. Direito Civil. Dissolução de união estável. Animal de estimação. Aquisição na constância do relacionamento. Intenso afeto dos companheiros pelo animal. Direito de visitas. Possibilidade, a depender do caso concreto. 1. Inicialmente, deve ser afastada qualquer alegação de que a discussão envolvendo a entidade familiar e o seu animal de estimação é menor, ou se trata de mera futilidade a ocupar o tempo desta Corte. Ao contrário, é cada vez mais recorrente no mundo da pós-modernidade e envolve questão bastante delicada, examinada tanto pelo ângulo da afetividade em relação ao animal, como também pela necessidade de sua preservação como mandamento constitucional (art. 225, § 1º, inciso VII – ‘proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade’). 2. O Código Civil, ao definir a natureza jurídica dos animais, tipificou-os como coisas e, por conseguinte, objetos de propriedade, não lhes atribuindo a qualidade de pessoas, não sendo dotados de personalidade jurídica nem podendo ser considerados sujeitos de direitos. Na forma da lei civil, o só fato de o animal ser tido como de estimação, recebendo o afeto da entidade familiar, não pode vir a alterar sua substância, a ponto de converter a sua natureza jurídica. 3. No entanto, os animais de companhia possuem valor subjetivo único e peculiar, aflorando sentimentos bastante íntimos em seus donos, totalmente diversos de qualquer outro tipo de propriedade privada. Dessarte, o regramento jurídico dos bens não se vem mostrando suficiente para resolver, de forma satisfatória, a disputa familiar envolvendo os pets, visto que não se trata de simples discussão atinente à posse e à propriedade. 4. Por sua vez, a guarda propriamente dita − inerente ao poder familiar − instituto, por essência, de direito de família, não pode ser simples e fielmente subvertida para definir o direito dos consortes, por meio do enquadramento de seus animais de estimação, notadamente porque é um múnus exercido no interesse tanto dos pais quanto do filho. Não se trata de uma faculdade, e sim de um direito, em que se impõe aos pais a Documento: 1717000 − Inteiro Teor do Acórdão − Site certificado − DJe: 09/10/2018 Página 1 de 9 Superior Tribunal de Justiça observância dos deveres inerentes ao poder familiar. 5. A ordem jurídica não pode, simplesmente, desprezar o relevo da relação do homem com seu animal de estimação, sobretudo nos tempos atuais. Deve-se ter como norte o fato, cultural e da pós-modernidade, de que há uma disputa dentro da entidade familiar em que prepondera o afeto de ambos os cônjuges pelo animal. Portanto, a solução deve perpassar pela preservação e garantia dos direitos à pessoa humana, mais precisamente, o âmago de sua dignidade. 6. Os animais de companhia são seres que, inevitavelmente, possuem natureza especial e, como ser senciente − dotados de sensibilidade, sentindo as mesmas dores e necessidades biopsicológicas dos animais racionais −, também devem ter o seu bem-estar considerado. 7. Assim, na dissolução da entidade familiar em que haja algum conflito em relação ao animal de estimação, independentemente da qualificação jurídica a ser adotada, a resolução deverá buscar atender, sempre a depender do caso em concreto, aos fins sociais, atentando para a própria evolução da sociedade, com a proteção do ser humano e do seu vínculo afetivo com o animal. 8. Na hipótese, o Tribunal de origem reconheceu que a cadela fora adquirida na constância da união estável e que estaria demonstrada a relação de afeto entre o recorrente e o animal de estimação, reconhecendo o seu direito de visitas ao animal, o que deve ser mantido. 9. Recurso especial não provido.”
2 ZWETSCH, Lívia Borges. Guarda de animais de estimação nos casos de dissolução litigiosa da conjugalidade. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p. 24-26.
3 LINHARES, Amanda Souza. Família multiespécie: uma análise da natureza jurídica do direito à visitação. Artigo científico apresentado no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/trabalhos_conclusao/2semestre2019/pdf/AmandaSouzaLinhares.pdf. Acesso em 08.12.2021.