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Game of Thrones e o Direito
Anderson Schreiber
13/05/2019
Enfim, the winter is here.[1] Após oito temporadas, a série mais premiada da história da televisão (47 Emmys) está chegando ao fim. A saga dos Starks, dos Lannisters, dos Targaryen e de outras famílias que disputam o trono dos Seven Kingdoms promete se encerrar nas próximas semanas. Nesses dias que antecedem o desfecho da trama, alunos do primeiro ano me confessam que estão com dificuldades de estudar Direito: sua atenção anda inteiramente concentrada em análises, especulações e até apostas (há um bolão em curso, ao que parece) sobre o destino final de Jon Snow, Samwell Tarly, Sansa Stark e tantos outros personagens da trama. Deveria, contudo, ocorrer justamente o oposto. Afinal, Game of Thrones é uma série que, embora possa ser vista por diferentes perspectivas, tem inegavelmente o Direito como seu tema central. A cada episódio, conceitos essenciais da ciência jurídica desfilam perante o espectador como dragões voando pela sala. E não é preciso ser um corvo de três olhos para enxergá-los.
O Direito de Família em Game of Thrones: da anulação do casamento de Rhaegar Targaryen à multiparentalidade de Jon Snow.
“Not your personal glory, not your honor, but family!”[2]
Tywin Lannister
Para muitos espectadores, a série consiste na história de Jon Snow e Daenerys Targaryen. O título da obra literária de George R. R. Martin em que a série declaradamente se inspira – A Song of Ice and Fire – representaria, assim, o encontro entre o filho bastardo de Ned Stark, guardião do Norte (gelo), e a última descendente da família Targaryen, conhecida pelo seu domínio sobre os dragões (fogo). A família Stark, que aparece numerosa e feliz no episódio inaugural da primeira temporada, sofre sucessivas tragédias que ainda assombram os fãs da série, como a decapitação do patriarca Ned – evento que lançou Game of Thrones no olimpo da crítica televisiva pela coragem dos roteiristas de assassinar brutalmente o aparente protagonista da trama – e a morte de sua mulher, Catelyn Stark, durante o casamento de seu primogênito, Robb Stark, igualmente assassinado naquela celebração. A causa de tanto sofrimento é, segundo a própria Catelyn, uma só: a violação da isonomia entre os filhos.
A maior parte dos sistemas jurídicos contemporâneos consagra a norma segundo a qual os filhos, independentemente da sua origem, têm iguais direitos. A Constituição brasileira afirma textualmente em seu art. 227, § 6o, que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”. Nem sempre foi assim entre nós, nem parece ser assim no universo de Game of Thrones, onde os filhos bastardos não ostentam os sobrenomes dos pais, mas sobrenomes que logo designam sua condição de descendentes gerados fora do matrimônio, por meio da indicação de elementos naturais típicos da região onde nasceram: (a) Stone na montanhosa região do Vale do Arryn (por vezes, referido na série apenas como “the Vale”); (b) Sand na desértica Dorne, como no nome de Ellaria Sand (que Cersei Lannister prontamente identifica como uma bastarda no intuito de humilhá-la, apenas para ouvir, em seguida, a bela afirmação do príncipe Oberyn segundo o qual “bastards are born of passion, aren’t they? We don’t despise them in Dorne”)[3]; e (c) Snow no Norte, como em Ramsay Snow e em Jon Snow. Os primeiros episódios da série revelam o desprezo cotidiano de Catelyn Stark pelo filho bastardo de seu marido, tratado de modo discriminatório em seu próprio lar. A própria Lady Stark, muitos episódios mais tarde, identificará no seu comportamento a origem de todos os males que se abateram sobre sua família:
Catelyn Stark: – And everything that’s happened since then, all this horror that’s come to my family… it’s all because I couldn’t love a motherless child.[4]
A ironia da trama reside no fato de que, como o espectador vem a descobrir muitas temporadas depois, Jon Snow não é filho bastardo de Ned Stark, mas sim filho de sua irmã, Lyanna Stark, que se casara em segredo com Rhaegar Targaryen. Rhaegar, contudo, já era casado com Elia Martell. E como resolver esse imbróglio? Mais uma vez, é o Direito de Família que vem em socorro dos fãs da série. O estudioso Samwell Tarly – para muitos, uma espécie de alter ego do autor George R. R. Martin – descobre, com a ajuda imprescindível de sua amada Gilly, um livro de registros em que consta a anotação da anulação do casamento entre Rhaegar e Elia, realizada pela autoridade religiosa da época, seguida da anotação de seu novo matrimônio. A revelação exprime, a um só tempo, a importância da dedicação aos estudos (personificada em Samwell Tarly) que alteram inteiramente o sentido da trama e a força do registro civil do status familiae, que converte Jon Snow, até então um bastardo do Norte, em legítimo herdeiro do Trono de Ferro. O Direito de Família revela aqui todo o seu fascínio, como elemento de transformação de nossas vidas. Sua influência na série não se detém, contudo, por aí.
É que, mesmo após saber da boa nova, Jon Snow parece hesitar: o conhecimento de sua origem biológica lhe traz a redenção de ter sempre pertencido, sanguineamente, àquela família em que, contra toda resistência de Lady Stark, o pequeno Jon havia buscado abrigo. Traz-lhe, por outro lado, angústia, pois não se sente filho de Rhaegar, um homem que jamais conheceu, mas sim de Ned Stark, o homem que o criou e em quem se espelha:“the most honorable man I ever knew.”[5]Jon Snow encontra-se, evidentemente, diante de uma situação de multiparentalidade, mais especificamente diante da existência de dois vínculos paternais: o primeiro de ordem biológica (Rhaegar) e o segundo de ordem sócio-afetiva (Ned). Jon parece dividido entre esses dois ramos familiares, mas não deveria. Como já decidiu o Supremo Tribunal Federal brasileiro, “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios” (Repercussão Geral 622). Jon é um Stark, mas é também um Targaryen. O próprio Jon chega, na sétima temporada, a explicar a essência da multiparentalidade a Theon Greyjoy, personagem sobre o qual também recai a paternidade socioafetiva de Ned: “You don’t have to choose. You’re a Greyjoy and you’re a Stark.”[6]Nas séries, como na vida, não é raro que expliquemos muito bem os conceitos que mais precisamos aprender.
Multiparentalidade, anulação de casamento, isonomia entre filhos, o Direito de Família está por toda parte em Game of Thrones, inclusive em suas questões mais atuais e polêmicas. Tome-se a vedação ao incesto, por exemplo, que encontra amparo no artigo 1.521 do Código Civil brasileiro, dispositivo que, ao disciplinar os impedimentos matrimoniais, proíbe o casamento entre “os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive”. Os irmãos Cersei e Jaime Lannister vivem, desde a primeira temporada, uma tórrida paixão que, por força da vedação ao incesto, precisam manter em segredo a qualquer custo – incluindo a tentativa de assassinar o jovem Bran Stark, evento que, ao fim e ao cabo, é a causa original da guerra que se instaura entre lobos e leões. “The things we do for love.”[7]
O tormento do casal Lannister não é compartilhado pelos Targaryen, cuja linhagem se abebera em uma longa tradição de uniões entre irmãos e primos. A própria Daenerys é fruto do incesto entre seu pai, o mad kingAerys Targaryen, e a irmã deste, Rhaella. O dado revela-se interessante não apenas para o desfecho da série – já que, ao descobrir sua origem biológica, Jon pode ter se surpreendido também com o fato de estar apaixonado pela própria tia, criando em sua tradição moralista um dilema que para Daenerys talvez nem sequer se coloque –, mas também por abrir, a título de comparação, um espaço para a reflexão acerca da realidade em que vivemos, onde a norma proibitiva do incesto talvez já não mais se justifique. Com efeito, o impedimento matrimonial entre irmãos, amparado em razões médicas que identificam riscos às crianças surgidas dessa união, pode se converter em limitação juridicamente desproporcional no caso de irmãos que, animados pela sua paixão, desejem se casar sem gerar filhos, seja por sua idade avançada, seja por força da livre escolha do uso de meios contraceptivos que afastem qualquer risco que pudesse servir, no plano teórico e abstrato, de causa à vedação.
Especificamente sobre a relação amorosa entre Jon e Daenerys – isto é, uma relação entre tia e sobrinho – vale acrescentar que, no Brasil, seria admitido o matrimônio desde que preenchidos certos requisitos. Isto porque, embora o Código Civil de 1916 já proibisse o casamento entre colaterais de terceiro grau (como é o caso de tias e sobrinhos) e o atual Código Civil tenha mantido a regra, o Decreto-lei 3.200, de 1941, permitiu o chamado casamento avuncularmediante prévio exame médico e chancela judicial. Há quem sustente que o atual Código Civil, por ser posterior àquele Decreto-lei, o teria revogado, sendo preferível, contudo, o entendimento segundo o qual o Decreto-lei 3.200/1941 consiste em norma especial, que permanece, portanto, em vigor (lex specialis derogat generali). Felicidades para o casal.
O Direito dos Contratos em Game of Thrones: “um Lannister sempre paga suas dívidas” ou o pacta sunt servanda em Westeros
“They’ve never broken a contract.”[8]
Sir Davos Seaworth
Em todas as temporadas da série, é forte a presença da força vinculante dos pactos ou pacta sunt servanda, noção fundamental do Direito dos Contratos. A confiança na palavra alheia constitui a base das relações contratuais que se estabelecem entre diversos personagens, dentre as quais a mais emblemática talvez seja aquela entre Bronn e Tyrion Lannister. Na esperança de ser recompensado, Bronn luta por Tyrion em um julgamento por combate no Ninho da Águia (the Eyrie), salvando o irmão caçula de Jaime e Cersei. Depois, Tyrion contrata Bronn para ser seu guarda-costas, prometendo-lhe uma tentadora remuneração:
Tyrion: – Scum you may be, but you’re undeniably useful, and with a sword in your hand you’re almost as good as my brother Jaime. What do you want, Bronn? Gold? Land? Women? Keep me alive, and you’ll have it.
Bronn: – And if you die?
Tyrion: – Why then, I’ll have one mourner whose grief is sincere. The gold ends when I do.[9]
De fato, a família Lannister é apresentada na série não apenas como uma das famílias mais ricas de Westeros, mas também como aquela que
honra seus débitos. Diferentes personagens repetem, em variadas cenas da trama, o ditado segundo o qual “a Lannister always pays his debts”. É certo que há uma forma um tanto sinistra de interpretar a frase, no sentido que os Lannisters sempre se vingam daqueles que lhes desafiam – como parece pretender a lenda retratada na canção Rains of Castamere, acerca do lorde que desafiou Tywin Lannister e acabou tendo sua linhagem inteiramente extinta –, mas há também o sentido mais literal: os Lannisters cumprem suas obrigações. Essa reputação de uma família adimplente garante aos Lannistersa confiança em pactos celebrados mesmo em condições difíceis. O pacta sunt servanda assume, assim, importância decisiva para os seus destinos.
Por exemplo, nesta oitava temporada, ainda em curso, Bronn acaba de ameaçar Jaime e Tyrion com a mesma besta que foi usada pelo anão para executar seu pai, Tywin. Bronn recebera de Qyburn, emissário de Cersei, a promessa de ouro e glória acaso assassinasse os seus irmãos, mas, como acredita na vitória final da rainha dos dragões, prefere buscar uma nova proposta de Tyrion, que lhe promete Highgarden (Jardim de Cima). O mercenário promove, então, uma espécie de efficient breach (quebra eficiente) do seu contrato anterior com Cersei para ingressar em um novo pacto com Tyrion. Antes, porém, lhe pede:
Bronn: – Give me your word.[10]
A fé na palavra, noção que se encontra na origem de todo o Direito dos Contratos, aparece nesta cena de modo muito evidente, demonstrando como, em um universo menos formal, a confiança na palavra empenhada afigura-se indispensável para assegurar alguma estabilidade nas relações entre particulares, prevenindo o uso da força bruta com suas irreversíveis consequências – no caso, a morte de Tyrion e Jaime. É a preocupação em honrar seus compromissos que fez também com que Jaime, na sétima temporada, enviasse à frente de seu exército carregamentos de ouro saqueado de Highgarden, para que sua irmã pudesse arcar com empréstimos tomados pela Coroa e contratar novos, junto ao chamado Iron Bank – instituição cujo bem estar, como nos lembra Tycho Nestoris, “é uma questão de aritmética, não de sentimento”.
É o pacta sunt servanda que promete, também, desequilibrar a batalha final pelo trono de ferro. Os combalidos exércitos de Kings Landing receberam, recentemente, o reforço da chamada Golden Company. Pouco explorada na série televisiva, mas bem desenvolvida nos livros de George R. R. Martin, a Golden Company é uma companhia de mercenários fundada por Aegon Rivers, filho bastardo de Aegon IV Targaryen, cerca de 100 anos antes dos eventos narrados em Game of Thrones. Seus integrantes originais escaparam de Westeros após uma rebelião frustrada contra a Coroa e se organizaram como uma companhia de mercenários para que continuassem lutando juntos e pudessem se sustentar. A primeira alusão à companhia na série televisiva acontece na quarta temporada, quando Davos Seaworth sugere a Stannis Baratheon que contrate a Golden Company para ajudá-lo a tomar o trono de ferro:
Davos: – Westeros is not the world, your grace. We need to look east for ships and men. Ten thousand skilled soldiers fight for the Golden Company.
Stannis: – The Golden Company?!
Davos: – They’ve never broken a contract.[11]
Apesar da insistência de seu conselheiro, Stannis acaba recusando a proposta, mas o diálogo revela a importância que o reiterado adimplemento de suas obrigações assume na reputação de uma companhia de mercenários, que seriam vistos, em outras circunstâncias, como um grupo inconfiável de pessoas. E é essa mesma reputação que leva Cersei Lannister a buscar seus serviços no afã de manter o trono. Assim, a Golden Company é trazida para Westeros pela frota naval de Euron Greyjoy e seu capitão, Harry Strickland, é recebido na sala do trono, protagonizando um dos diálogos mais inusitados da série:
Cersei Lannister: – Horses?
Harry Strickland: – Two thousand.
Cersei Lannister: – And elephants?
Harry Strickland: – Erm…no elephants, Your Grace.
Cersei Lannister: – That’s disappointing. I was told the Golden Company had elephants.
Harry Strickland: – They are excellent beasts, Your Grace. But not well-suited to long sea voyages.[12]
O desapontamento de Cersei com a ausência de elefantes rendeu numerosos memes e diferentes brincadeiras na internet, mas a presença da Golden Company na capital pode significar um sério desequilíbrio de forças no enfrentamento iminente com os exércitos da Daenerys – ou o que resta deles após a batalha de Winterfell, contra os white walkers. Muitos fãs da série estão convencidos, por outro lado, de que a Golden Company, em virtude de sua origem rebelde, acabará por trair Cersei. Ao fim e ao cabo, um contrato – ou seu descumprimento – pode ser a chave do desfecho de Game of Thrones.
Direitos da Personalidade e Game of Thrones: do direito ao esquecimento na Night’s Watch ao tratamento de dados pessoais pelos homens sem rosto.
“A man is not Jaqen H’ghar”
Jaqen H’ghar
Nem Stark, nem Lannister, nem Baratheon, nem Targaryen. O personagem mais fascinante da série é, indiscutivelmente, o Night King (O Rei da Noite). Criado há milênios pelos filhos da floresta, o Night King parecia tão enigmático quanto indestrutível em sua marcha rumo ao mundo dos vivos, até que, durante a batalha de Winterfell, Arya Stark cai literalmente dos céus para golpeá-lo, de modo fatal, desintegrando o rei dos white walkers e devastando o coração de milhares de fãs, que torciam por um final mais digno para um personagem tão austero e promissor. Em uma das cenas que antecede aquele momento trágico, Samwell Tarly e Bran Stark fornecem ao espectador uma pista da motivação que move o até então incansável Night King:
Bran: – He’ll come for me. He’s tried before. Many times, with many Three-Eyed Ravens.
Sam: – Why? What does he want?
Bran: – An endless night. He wants to erase this world, and I am its memory.
Sam: – That’s what death is, isn’t it? Forgetting … being forgotten.[13]
A alusão ao esquecimento como morte remete à história do Night King tal qual narrada não na série televisiva, mas nos livros de George R. R. Martin, onde o personagem nada mais é que um lendário ex-comandante da Night’s Watch, que se apaixona por uma mulher “com pele branca como a lua e olhos que se assemelham a estrelas azuis”. Os dois passam a viver como rei e rainha na fortaleza, valendo-se de magia para subjugar os membros da Night’s Watche iniciam a prática de sacrifícios em favor dos white walkers. Seu reinado se estende por treze anos até que os Starks se unem aos wildlings (ou Free Folk) para derrotá-lo. Como parte de sua pena, todo o registro de sua existência é apagado e se proíbe a menção ao seu nome.
Ao esquecimento como pena contrapõe-se o esquecimento como dádiva ou, quiçá, como direito. A primeira temporada da série nos mostra Jeor Mormont, Lord Commander da Night’s Watch, recebendo recrutas que chegam de todas as partes como “criminosos, estupradores, assassinos e ladrões”, “pobres ou ricos”, “com nomes de casas renomadas, com nomes bastardos ou sem nome algum”. Mormont lhes explica que “nada disso importa”, pois “tudo está no passado agora.” O ingresso na ordem militar que defende a muralha que separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos assegura ao seus integrantes uma espécie de perdão de todos os seus crimes e malfeitos pregressos. Trata-se de um fresh start, para tomar de empréstimo um termo que tem feito estrada no tratamento jurídico do superendividamento. Garante-se um novo começo, passando a ordem jurídica a observar a pessoa como o que ela realmente é naquele momento: um membro da irmandade militar da Night’s Watch, um guardião do mundo dos vivos, independentemente do que possa ter sido ou feito no seu passado.
Também a ordem jurídica atual assegura um direito de ser retratado de modo atual e de não ser eternamente perseguido pelos fatos pretéritos de sua existência. Trata-se do direito ao esquecimento consagrado na experiência jurídica europeia (diritto all’oblio, droit à l’oubli etc.) e acolhido em, ao menos, um precedente do nosso Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.334.097). O tema se encontra, atualmente, sob debate no Supremo Tribunal Federal, que julgará recurso interposto no famoso caso Aida Curi (RE 1.010.606), julgamento que promete estabelecer com maior precisão as bases desse “novo” direito entre nós.
O direito ao esquecimento consiste, para muitos autores, em um desdobramento do direito à privacidade, hoje compreendido de modo amplo não apenas como um direito a ser deixado só, em sua intimidade, mas também como o direito de controlar o tratamento reservado aos seus próprios dados pessoais. A recente Lei 13.709/2018 – chamada Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – veio incluir o Brasil entre os países do mundo que se filiam a uma perspectiva abrangente de tutela da privacidade, preservando o poder de autodeterminação da pessoa humana diante da frequente coleta e utilização de dados pessoais na sociedade contemporânea. Game of Thronesnos revela um exemplo fascinante de coleta e uso de dados pessoais alheios: o sombrio Hall of Faces, que integra o templo construído na cidade livre de Braavos em devoção ao Many-Faced God. Ali, centenas de faces de pessoas já falecidas repousam em pilares, à disposição dos chamados homens sem rosto, que os devem utilizar na sua missão de oferecer vidas ao Deus que veneram.
É essa habilidade de “vestir” rostos alheios que Arya Stark emprega durante a sexta temporada para assassinar a inteira linhagem dos Frey, vingando-se dos assassinatos de sua mãe e de seu irmão Robb que haviam ocorrido no já mencionado e inesquecível red wedding (casamento vermelho, em alusão ao banho de sangue que marcou aquela cerimônia). Antes disso, Arya já havia se servido de um dos rostos do Hall of Faces para se disfarçar como uma das vítimas menores de Meryn Trant e, em seguida, assassiná-lo em um bordel em Braavos. Aparentemente, as faces expostas naquele Hall são oriundas de homens, mulheres e crianças que bebem a água envenenada do poço ali situado. O uso de dados pessoais e, no caso, também da imagem alheia não se torna, contudo, livre após a morte do seu titular. Consta expressamente do Código Civil brasileiro previsão segundo a qual, “em se tratando de morto”, o cônjuge sobrevivente ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau, têm legitimação para requerer a proteção de direitos da personalidade que estejam sendo lesados ou ameaçados (art. 12, p.u.). Claro que nada disso parece importar muito em Game of Thrones: afinal, valar morghulis.[14]
A presença dos direitos da personalidade na famosa série de TV não se limita, contudo, às discussões instigantes sobre privacidade e imagem, mas alcança também outros desses direitos, como o direito à integridade psicofísica. Por exemplo, há todo o espanto causado por experimentos físicos conduzidos por Qyburn, em especial aqueles que convertem Sir Gregor Clegane (The Mountain)em uma espécie de Frankenstein de armadura, ou pelos Filhos da Floresta que criam a versão televisiva do Night King cravando dragon glassem seu coração – tudo em flagrante violação ao artigo 15 do Código Civil, que veda a submissão forçada a tratamentos médicos ou intervenções cirúrgicas.
Nem se fale em violações à dignidade humana que permeiam toda a série, como nos faz lembrar todo o tempo o mutilado Theon Greyjoy. E até o lançamento de anão – para mencionar o julgamento que se tornou célebre na França em 1995, envolvendo o cidadão de baixa estatura Monsieur Wackenheim – parece coisa pequena diante das provações impostas a Tyrion Lannister, preso injustamente, mutilado em batalha, preso novamente, condenado por um envenenamento que não cometeu (livrando-nos do chatíssimo Rei Joffrey Baratheon), humilhado por uma traição amorosa e, enfim, transportado para fora de Westeros em uma caixa, com a ajuda do seu “amigo” Varys. Haveria, ainda, que se falar da liberdade religiosa, tão ameaçada na série quer pelos sacrifícios impostos pelo Lord of Light – incluído a incineração da pequena e adorável Shireen Baratheon, por ordem e influência de Lady Melisandre –, quer pela inquisição torquemadiana conduzida pelo obtuso High Septon, que acaba explodindo pelos ares em um dos raros momentos da trama em que todos os fãs parecem estar torcendo por uma vitória de Cersei Lannister.
Há, ainda, como a menção a Cersei não nos deixa de recordar, as muitas ameaças dirigidas à igualdade de gênero. Quem é Cersei Lannister, afinal, senão uma mulher que logra se manter no trono enquanto homens pretendem, todo o tempo, destroná-la direta ou indiretamente, por meio de ataques francos, como aqueles dirigidos por Ned Stark e Stannis Baratheon, ou subterfúgios, como aqueles empregados por seu pai Tywin Lannister ou por seu mais recente namorado Euron Greyjoy? É bem verdade que a principal ameaça ao seu reinado também consiste em uma mulher: Daenerys Targaryen, tal como Cersei, uma líder constantemente ameaçada por homens ao seu redor, não apenas aqueles que a combatem frontalmente – como os Senhores de Yunkai, Astapor e Meereen –, mas também aqueles que conspiram contra sua vida e traem sua confiança nos bastidores do poder. Bem vistas as coisas, Cersei e Daenerystêm muito em comum e Game of Thrones pode estar, de um modo muito peculiar e polêmico, transmitindo uma mensagem igualitária, ao evidenciar os abusos cometidos contra mulheres em um mundo primitivo e brutal – como, talvez, ainda seja o nosso.
Muito mais haveria para dizer sobre os direitos da personalidade em Game of Thrones, mas é preciso concluir com a revelação da verdade inegável: a série trata, no fundo, de Direito das Sucessões.
Direitos das Sucessões em Game of Thrones
“You may not have my name, but you have my blood.”
Ned Stark
Visto com preconceito dentro do próprio ambiente jurídico, o Direito das Sucessões, esse campo árido do conhecimento humano, estava a merecer, há muito, uma homenagem que revelasse toda sua grandeza. É o que faz Game of Thrones, ao apresentar aos espectadores de todo o mundo uma guerra deflagrada pelo descumprimento de um testamento. De fato, se a última vontade do Rei Robert Baratheon tivesse sido cumprida, Ned Stark teria se tornado Protector of the Realm e reinado, até a maioridade do Príncipe Joffrey, com seu sólido senso de justiça. Entretanto, Cersei Lannister rasga o testamento real, dizendo:
Cersei Lannister: – Protector of the Realm. Is this meant to be your shield, Lord Stark? A piece of paper?
[Cersei tears the letter to pieces.]
Sir Barristan: – Those were the King’s words.
Cersei Lannister: – We have a new king now.[15]
Com seu ato de desrespeito a uma disposição testamentária, Cersei dá início a uma disputa sangrenta pelo iron throne que consiste no mote principal da série. E tal disputa o que é, a rigor, senão uma batalha entre herdeiros? Renly Baratheon e Stannis Baratheon, por exemplo, são colaterais que desejam receber o trono como uma espécie de herança de seu falecido irmão, Robert, já que aquele que aparentava ser seu filho, Joffrey, é, em realidade, filho de Jaime Lannister. A concorrência hereditária não cessa por aí, pois podem se habilitar, ainda, os filhos bastardos de Robert que venham a escapar do genocídio infantil promovido pela Coroa, em particular o jovem ferreiro Gendry. Todos os Baratheons, porém, são vistos como herdeiros ilegítimos por Daenerys Targaryen, que apresenta verdadeira petição de herança do iron throne, em virtude de sua descendência direta do Mad King. A situação já é suficientemente complexa, portanto, quando o Norte se rebela e elege seu próprio Rei – um King in the North – apartando-se do disputado acervo hereditário.
Um hipotético processo de inventário e partilha dos Seven Kingdons talvez fosse, de fato, a melhor solução, entregando-se a cada um dos litigantes seu quinhão de Westeros, mas, em Game of Thrones, como em grande parte dos conflitos sucessórios, há sempre um ou outro herdeiro que quer porção maior ou se sente titular de melhor direito. E, assim, o litígio se estende, não raro com a chegada de novos aspirantes à herança. Jon Snow, por exemplo, que, até outro dia, poderia apenas reinar sobre um Norte independente, descobre-se filho de Rhaegar Targaryen, como já vimos, passando, assim, a ter um “claim” (uma pretensão juridicamente reconhecida) ao trono de ferro, incendiando ainda mais o conflito.
Uma esperança de paz e prosperidade surge agora, durante a 8a e definitiva temporada, quando Sir Davos vislumbra na união de Jon Snow com Daenerys Targaryen um futuro reinado do casal sobre Westeros:
Davos Seaworth: – What if the Seven Kingdoms, for once in their whole shit history, were ruled by a just woman, and an honorable man?[16]
A solução, embora romântica, não parece destinada a durar, pois Daenerys não pode – ou, ao menos, acredita que não pode – ter filhos (além de seus dragões), de modo que sua ascensão ao poder não afastaria uma nova e iminente reabertura do problema da sucessão, comprometendo a paz e a estabilidade em Westeros. O astuto Tyrionchega a suscitar a questão, mas é prontamente repelido pela khaleesi:
Daenerys Targaryen: – We will discuss the succession after I wear the Crown.[17]
Desse modo, ainda que as forças de Daenerys e Jon se mostrem suficientemente fortes para enfrentar e derrotar os exércitos de King’s Landing, destronando Cersei Lannister, não demorará muito, em termos históricos, para que se estabeleça um novo embate entre aspirantes do trono – embate que, de resto, também ocorreria possivelmente se o casal lograsse ter filhos, não sendo raro que filhos disputem o trono entre si, como já nos mostrou a série ao colocar em campos opostos os irmãos Stannis e Renly Baratheon, que se tornaram inimigos a tal ponto que Stannis recorre à magia negra para dar fim à vida do caçula Renly. A bem da verdade, um reinado estável e pacífico em Westeros talvez somente pudesse ser alcançado por um rei eterno, que, imune à morte, não se tornasse jamais um de cujus, adiando por todo o sempre a abertura da sua sucessão. Entretanto, esse aspirante ideal ao trono, essa figura ímpar que salvaria o mundo de guerras e conflitos, esse rei perene, não existe mais em Game of Thrones, pois os roteiristas o deixaram morrer nas mãos de Arya Stark, em uma cena que, como já deve estar bem óbvio, jamais conseguirei superar.
Conclusão
“You know nothing, Jon Snow”
Ygritte
Há muito mais Direito em Game of Thrones do que se pode enxergar, a princípio. Suas temporadas trazem matéria-prima fabulosa para que professores mostrem aos seus alunos noções fundamentais não apenas dos ramos jurídicos contemplados nesse breve ensaio, mas também de Direito Constitucional – como no embate evidente entre o autoritarismo monárquico e a democracia nascente dos wildlings –, de Direito Tributário – como nos constantes aumentos de impostos para fazer frente aos gastos nababescos da Coroa –, de Direito Penal – como na pena de morte imposta a Ned Stark e aplicada por ele próprio no primeiro episódio da série – e até de Direito Processual, como revela o exemplo fascinante (e historicamente real) dos trials by combat, que geram algumas das melhores cenas da série. Todo esse arsenal, mais que combinar ensino e diversão, evidencia o imbricamento indissociável entre Direito e cultura, demonstrando que as normas jurídicas, mesmo quando não escritas e até quando não ditas, constituem a estrutura ética sobre a qual repousa a sociedade real e aquelas sociedades simuladas em nossos mundos de fantasia.
Aos fãs da série que estudam Direito, um convite: nos próximos episódios tentem enxergar as noções jurídicas por trás de Game of Thrones. A ciência jurídica não é um conjunto estéril de normas, mas um corpo substancial de conceitos ancorados sobre o ideal da justiça. Enxergá-los em algo tão cotidiano como um programa de televisão pode, quem sabe, despertar em seu espírito uma paixão incendiante. Dracarys.
[1] “O inverno está aqui.”
[2] Tywin Lannister: “Não sua glória pessoal ou sua honra, mas a família.” (diálogo entre Tywin Lannister e seu filho Jaime, no 7º episódio da 1ª temporada).
[3] Oberyn Martell: “Bastardos resultam da paixão. Eles são apreciados em Dorne.” (diálogo entre Oberyn Martell e Cersei Lannister, no 2º episódio da 4ª temporada).
[4] Catelyn Stark: “Tudo que ocorreu desde então, o horror que sobreveio à minha família deve-se à minha inaptidão em amar um filho sem mãe.” (diálogo entre Catelyn Stark e Talisa Maegyr no 2º episódio da 3ª temporada).
[5] Jon Snow: “Meu pai [Ned Stark] era o homem mais honrado que já conheci.” (diálogo entre Jon Snow e Samwell Tarly, no 1º episódio da 8ª temporada).
[6] Jon Snow: “Não precisa escolher. Você é um Greyjoy e é um Stark.” (diálogo entre Jon Snow e Theon Greyjoy, no 7º episódio da 7ª temporada).
[7] “As coisas que fazemos por amor” (frase proferida por Jaime, antes de empurrar Bran do alto de uma torre em que o menino havia flagrado a relação incestuosa dos irmãos Lannister).
[8] Davos Seaworth: “Eles nunca quebram contratos.” (Diálogo entre Davos Seaworth e Stannis Baratheon no 3º episódio da 4ª temporada).
[9] Tyrion Lannister: “Até pode ser escória, mas é inegável que é útil, e com uma espada na mão é quase tão bom quanto meu irmão Jaime. Que deseja, Bronn? Ouro? Terras? Mulheres? Mantenha-me vivo, e o terá.” Bronn: “E se você morrer?” Tyrion Lannister: “Ora, nesse caso terei um carpidor cuja dor é sincera. O ouro acaba quando eu acabar.” (trecho extraído do livro As Crônicas de Gelo e Fogo – A Guerra dos Tronos, de George R. R. Martin).
[10] Bronn: “Dê a sua palavra.” (diálogo entre Bronn, Tyrion e Jaime, no 4º episódio da 8ª temporada).
[11] Davos Seaworth: “Westeros não é o mundo. Nós precisamos tentar no Leste. Há dez mil soldados na Companhia dourada.” Stannis: “A Companhia Dourada?!” Davos: “Eles nunca quebram contratos.” (diálogo entre Davos Seaworth e Stannis Baratheon, no 3º episódio da 4ª temporada).
[12] Cersei Lannister: “Cavalos?” Harry Strickland: “Dois mil.” Cersei Lannister: “E elefantes?” Harry Strickland: “Nenhum elefante, Majestade.” Cersei Lannister: “Que decepção. Ouvi dizer que a Companhia Dourada tinha elefantes.” Harry Strickland: “São animais formidáveis, Majestade, mas inadequados para viagens marítimas longas.” (diálogo entre Cersei Lannister, Euron Greyjoy e Harry Strickland no 1º episódio da 8ª temporada).
[13] Bran: “Ele virá atrás de mim. Já tentou muitas vezes, com muitos Corvos de Três Olhos.” Sam: “Por quê? O que ele quer?” Bran: “Uma noite sem fim. Ele quer apagar este mundo, e eu sou a memória dele.” Sam: “A morte é isso, não é? Esquecer. Ser esquecido.” (diálogo entre Bran Stark e Samwell Tarly,no 2º episódio da 8ª temporada).
[14] “Todo homem tem que morrer” (no idioma Alto Valiriano).
[15] Cersei Lannister: “Protetor do Território. Essa deveria ser a sua defesa, Lorde Stark? Um pedaço de papel?” [Cersei rasga o papel] Sir Barristan:“Essas foram as palavras do Rei.” Cersei Lannister: “Nós temos um novo rei agora.” (diálogo entre Cersei Lannister, Sir Barristan e Ned Stark, no 7º episódio da 1ª temporada).
[16] Davos Seaworth: “E se os Sete Reinos, por pelo menos uma vez em toda sua história, fossem governados por uma mulher justa e um homem honrado?” (diálogo entre Davos Seaworth, Tyrion Lannister e Lord Varys,no 1º episódio da 8ª temporada).
[17] Daenerys Targaryen:“Nós discutiremos a sucessão após a minha coroação” (diálogo entre Daenerys Targaryen e Tyrion Lannister no 6º episódio da 7ª temporada).
Veja também:
- Alterações da MP 881 ao Código Civil – Parte I
- O Retorno de Crusoé
- O Caso da Criogenia: Direito ao Cadáver e Tutela Post Mortem da Autodeterminação Corporal
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