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Família multiespécie e guarda compartilhada de animais domésticos
William Paiva Marques Júnior
27/05/2024
No Direito Civil tradicional, os animais são classificados como “res”, “coisas” submetidas a um regime de propriedade disciplinado pelo Direito das Coisas, sujeitando-se aos desígnios de seu proprietário, conforme consta do artigo 82 do Código Civil: “Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.”
Essa concepção decorre em grande parte do antropocentrismo que informou o Direito Brasileiro, incluindo o Texto Constitucional de 1988 especialmente a proteção ambiental disposta no art. 225.
Com o advento do Decreto nº. 24.645/34, os animais passaram a ser tutelados pelo Estado e representados em juízo pelo Ministério Público, conforme dispõe seu art. 2º, § 3º, tema que foi posteriormente incluído no art. 225, inciso VII, da atual Constituição Federal, bem como no art. 32 da Lei de Crimes Ambientais (Lei nº. 9.605/98). Além disso, o Brasil é signatário da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, que apregoa: “(…) todos os animais possuem direitos” (UNESCO, 1978).
O vínculo criado entre o ser humano e animal não pode se reduzir à posse e à propriedade. Na hora de se decidir o seu destino, é preciso considerar que não se trata de um bem qualquer, mas de um ser vivo e senciente, cujo bem-estar deve ser promovido e garantido institucionalmente. Os casos que chegam ao Judiciário visando obter a guarda do animal não visam interesse econômico, mas se pautam unicamente no afeto existente entre ele e seus donos, restando claro o seu valor subjetivo único, que o diferencia de qualquer outra propriedade privada.
Como entidade dotada de historicidade, a família passa por diversas transformações aos reclamos da contemporaneidade, como, por exemplo, a preocupação acerca do destino do animal de estimação que, para muitos, são considerados como membros daquela família, hoje considerada multiespécie. Por essa razão, alguns casais têm elaborado acordo pré-nupcial, com a inclusão de cláusula relativa à guarda do animal e até mesmo auxílio financeiro para os cuidados do dia a dia (ração, vacinação, veterinário, banho, tosa etc). Contudo, se o divórcio desemboca em litígio, o que se observa são brigas pela custódia do animal.
Animal no Direito Civil
Ocorre que o Direito Civil ainda classifica o animal como um objeto a ser partilhado pelo casal. Na maioria dos casos, no entanto, o que se verifica é que o conflito entre os ex-cônjuges/companheiros pela guarda do animal se assemelha muito mais a disputa pela guarda de um ente querido do que a disputa pela partilha de um objeto. Desse modo, o instituto da guarda compartilhada prevista no Código Civil para regular a relação dos pais e filhos humanos acaba se aproximando mais da realidade desses casos, porém não traz a devida segurança jurídica para as partes. Pelo contrário, elas terão que esperar do magistrado que este com racionalidade e sensibilidade além da usual entenda a demanda nesses novos moldes.
Ao propugnar pela superação dessa visão tradicional do animal como coisa, submetida ao regime de posse/propriedade, o Superior Tribunal de Justiça (STJ- REsp n. 1.713.167/SP, Relator: Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgamento: 19/6/2018, DJe de 9/10/2018), decidiu que os animais de companhia são seres que, inevitavelmente, possuem natureza especial e, como ser senciente – dotados de sensibilidade, sentindo as mesmas dores e necessidades biopsicológicas dos animais racionais -, também devem ter o seu bem-estar considerado. Assim, na dissolução da entidade familiar em que haja algum conflito em relação ao animal de estimação, independentemente da qualificação jurídica a ser adotada, a resolução deverá buscar atender, sempre a depender do caso em concreto, aos fins sociais, atentando para a própria evolução da sociedade, com a proteção do ser humano e do seu vínculo afetivo com o animal.
Em outro julgado, o STJ (REsp n. 1.944.228/SP, Relator: Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Relator para acórdão: Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgamento: 18/10/2022, DJe de 7/11/2022) entendeu que a solução de questões que envolvem a ruptura da entidade familiar e o seu animal de estimação não pode, de modo algum, desconsiderar o ordenamento jurídico posto – o qual, sem prejuízo de vindouro e oportuno aperfeiçoamento legislativo, não apresenta lacuna e dá respostas aceitáveis a tais demandas -, devendo, todavia, o julgador, ao aplicá-lo, tomar como indispensável balizamento o aspecto afetivo que envolve a relação das pessoas com o seu animal de estimação, bem como a proteção à incolumidade física e à segurança do pet, concebido como ser dotado de sensibilidade e protegido de qualquer forma de crueldade. A relação entre o dono e o seu animal de estimação encontra-se inserida no direito de propriedade e no Direito das Coisas, com o correspondente reflexo nas normas que definem o regime de bens (no caso, o da união estável). A aplicação de aludidos regramentos, contudo, submete-se a um filtro de compatibilidade de seus termos com a natureza particular dos animais de estimação, seres que são dotados de sensibilidade, com ênfase na proteção do afeto humano para com os animais. As despesas com o custeio da subsistência dos animais são obrigações inerentes à condição de dono, como se dá, naturalmente com os bens em geral e, com maior relevância, em relação aos animais de estimação, já que a sua subsistência depende do cuidado de seus donos, de forma muito particularizada. Enquanto vigente a união estável, é indiscutível que estas despesas podem e devem ser partilhadas entre os companheiros (art. 1.315 do Código Civil). Após a dissolução da união estável, esta obrigação pode ou não subsistir, a depender do que as partes voluntariamente estipularem, não se exigindo, para tanto, nenhuma formalidade, ainda que idealmente possa vir a constar do formal de partilha dos bens hauridos durante a união estável. Se, em razão do fim da união, as partes, ainda que verbalmente ou até implicitamente, convencionarem, de comum acordo, que o animal de estimação ficará com um deles, este passará a ser seu único dono, que terá o bônus – e a alegria, digo eu – de desfrutar de sua companhia, arcando, por outro lado, sozinho, com as correlatas despesas. O fato de o animal de estimação ter sido adquirido na constância da união estável não pode representar a consolidação de um vínculo obrigacional indissolúvel entre os companheiros (com infindáveis litígios) ou entre um deles e o pet, sendo conferida às partes promoverem a acomodação da titularidade dos animais de estimação, da forma como melhor lhes for conveniente.
Jurisprudências sobre guarda de pets
Observa-se, portanto, que o Superior Tribunal de Justiça vem cada vez mais apreendendo que o fundamento de ações envolvendo o destino dos pets é o vínculo afetivo estabelecido entre o animal e seus donos. Não se trata meramente de partilhar um bem (como tradicionalmente os animais são enquadrados como bens pelo Direito das Coisas), mas de ex-casais lutando para ter a companhia de seu animal, pelo qual foram nutridos sentimentos profundos e complexos. Contudo, por mais que este já venha sendo o entendimento, a questão não está pacificada. No REsp n. 1.944.228/SP restou adotado o entendimento tradicional pelo regime da partilha de bens, de outra banda, o REsp n. 1.713.167/SP, ainda se vê a primazia do interesse humano, vez que o julgado deixa de abordar o interesse do próprio animal, sem qualquer análise de elementos que possam implicar no bem-estar deste, diante da imprevisibilidade do cenário a que será exposto em virtude do conflito do casal.
Em nível prospectivo existem alguns projetos de lei em trâmite no Poder Legislativo que visam a alterar a situação jurídica dos animais. Por exemplo: (1) o Projeto de Lei nº. 2070, DE 2023, proposto pelo Senador Styvenson Valentim (PODEMOS/RN), cria o “Estatuto do Animal Doméstico”; (2) o Projeto de Lei nº. 1.068, de 2021, proposto pelo Senador Fred Costa (PRD/MG), reconhece os cães e gatos como sujeitos de direito, com natureza jurídica própria ; (3) o Projeto de Lei da Câmara n° 27, de 2018, de autoria doDeputado Federal Ricardo Izar (PSD/SP), acrescenta dispositivo à Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, para dispor sobre a natureza jurídica dos animais não humanos; (4) dentre os pontos propostos pela comissão responsável pelas mudanças no Código Civil, tem-se o reconhecimento dos animais como seres sencientes de direito.
O Direito Civil há de evoluir de modo a abandonar o tradicional paradigma antropocêntrico e abraçar o paradigma socio-biocêntrico no tratamento dos animais de estimação. A jurisprudência há de evoluir de modo a garantir dignidade e direitos aos animais de estimação, especialmente pela possibilidade de aplicação do regime da guarda compartilhada na garantia de seu bem-estar. No futuro, provavelmente o Direito reconhecerá inclusive a possibilidade de pets como herdeiros.
O liame dos laços de socioafetividade justifica a existência de famílias multiespécies, nas quais os pets deixam de ser coisas e se transformam em sujeitos de direitos, dignos de proteção jurídica.
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