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Elis Regina e reconstrução digital póstuma
Anderson Schreiber
09/08/2023
A Volkswagen sacudiu o mercado publicitário ao lançar no mês passado uma peça comemorativa de seus 70 anos no Brasil estrelado pela cantora Elis Regina. A peculiaridade é que Elis faleceu em 1982. Sua imagem e voz foram recriadas digitalmente por meio de técnicas de Inteligência Artificial que têm sido denominadas de deepfake.[1] Revivida na tela, Elis aparece dirigindo uma Kombi antiga e cantando “Como nossos pais” (música de Belchior que se tornou famosa na voz da cantora) em um dueto com sua filha, Maria Rita, que dirige a versão atual do veículo.[2]
A peça publicitária dividiu opiniões. De um lado, muitos se emocionaram com o comercial e aplaudiram a iniciativa inovadora da fabricante. De outro lado, houve críticas à Volkswagen e à própria filha de Elis por utilizarem a imagem e voz de uma pessoa falecida há mais de 40 anos para fins publicitários, especialmente com uma música que contém versos como “quero lhe contar como eu vivi” e “viver é melhor que sonhar”.[3] Houve, ainda, aqueles que, embora não criticando o uso da IA para “reviver” os mortos, se insurgiram contra o contexto da publicidade em si: enquanto a Volkswagen já foi acusada de colaborar com o regime militar brasileiro,[4] Elis e Belchior foram opositores declarados da ditadura e a própria canção escolhida faz alusões ao “perigo na esquina” e ao fato de que “eles venceram e o sinal está fechado para nós que somos jovens”.[5]
Violação de preceitos éticos
Dias após a veiculação da campanha, o CONAR instaurou processo para aferir se a reconstrução digital póstuma de Elis Regina teria violado preceitos éticos e se a publicidade teria induzido os consumidores a erro, ao deixar de informar que a peça se valia de IA.[6] Em nota, a Volkswagen afirmou que “a utilização da imagem de Elis Regina na campanha foi acordada com a família da cantora”.[7] Eis aí a questão: os familiares de uma pessoa falecida podem autorizar a recriação de sua imagem e voz para fins comerciais? A dúvida tem sido suscitada em vários países e uma nova frente tem sido aberta nas disposições testamentárias de pessoas que desejam preservar sua imagem, sua voz ou seu nome.
O ator Robin Williams pode ser considerado um precursor neste campo. Falecido em 11 de agosto de 2014, Williams transmitiu para a instituição de caridade Windfall Foundation todos os direitos sobre a exploração de seu nome, sua assinatura e sua imagem em vídeo ou fotografias. O ator, contudo, impôs expressamente uma proibição do uso destes atributos em anúncios, filmes e quaisquer mídias produzidas com fins comerciais pelo prazo de 25 anos contados da sua morte.[8]
Mais recentemente, a imprensa divulgou que Madonna, após uma internação hospitalar, elaborou um testamento dividindo sua fortuna entre os filhos e estabelecendo também regras para o uso post mortem de sua voz e imagem. Por exemplo, Madonna proibiu expressamente a recriação de sua imagem por meio de hologramas.[9]
Disposições testamentárias que criam restrições à exploração da imagem, voz ou nome do testador são inteiramente válidas à luz do Direito brasileiro. Embora não sejam tão comuns hoje, tais disposições tendem a se tornar mais frequentes em um mundo em que todos podem ser “recriados” digitalmente. Com a IA modificando diferentes aspectos das nossas vidas, não há dúvida de que a autorização ou a proibição da reconstrução digital póstuma deve ser um ponto de atenção para aqueles que elaboram um testamento.
Os herdeiros podem autorizar qualquer uso ou exploração comercial de nome, voz e imagem de pessoas falecidas?
Todavia, é preciso saber o que ocorre se a pessoa falecida não houver deixado nenhuma orientação por escrito em relação ao uso de seu nome, imagem ou voz. Os herdeiros podem autorizar qualquer uso ou exploração comercial destes atributos?
A dúvida não diz respeito apenas a artistas ou celebridades; herdeiros de pessoas comuns podem ter interesse em promover a reconstrução digital póstuma por razões não só econômicas, mas também afetivas. Em um contexto em que a tecnologia permite a “lembrança de tudo”,[10] um número cada vez menor de pessoas parece disposto a viver na confiança de sua memória. Esquecer tornou-se exceção.[11] Nesse cenário, embora cause calafrios a alguns de nós, não se pode descartar que familiares queiram “recriar” uma pessoa já falecida por meio de IA, com o único fim de aplacar as saudades que sentem do ente querido. Não se trata mais de ficção científica, mas de um dado que integra nossa realidade – o que exige dos juristas uma tomada clara de posição.
O Direito brasileiro protege os direitos da personalidade com a máxima intensidade, como se vê da própria Constituição (arts. 1º, III, e 5º, X). Nossa ordem jurídica tutela a autodeterminação individual, como reiterado pela Emenda Constitucional 115/2022, que incluiu no rol de direitos fundamentais “o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais”.
Nosso Código Civil, por sua vez, declara tanto no artigo 12 quanto no artigo 20 que a proteção dos direitos da personalidade estende-se além da morte do seu titular. O problema está na definição de quem são os encarregados da proteção. O artigo 12 alude ao “cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau”. Já o artigo 20, tratando do direito de imagem, menciona o “cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.” Não figuram neste último dispositivo os colaterais. A incoerência é flagrante, mas há um problema menos explícito e mais grave: ao espelharem o rol dos herdeiros,[12] os artigos 12 e 20 do Código Civil acabam por transmitir a ideia de que a lógica hereditária se aplicaria aos atributos pessoais do morto.
Em outras palavras, se apenas os herdeiros podem requerer medidas para fazer cessar lesão ou ameaça aos direitos da personalidade do falecido, isso significa que os mesmos herdeiros podem eventualmente deixar de fazê-lo. E, se isso é verdade, seria o mesmo que dizer que tais herdeiros podem consentir com o uso ou exploração comercial destes atributos – o que assemelharia os direitos da personalidade aos bens do acervo hereditário.
A semelhança é falsa. Os atributos da personalidade, por sua própria natureza existencial, não são coisas que compõem a herança e exigem uma proteção que não deve ser meramente facultativa. O próprio artigo 11 do Código Civil afirma, nessa direção, que “os direitos da personalidade são intransmissíveis” e, portanto, não se tornam bens dos herdeiros. A proteção dos direitos da personalidade pode se fazer necessária, inclusive, contra iniciativas dos herdeiros.
Imagine-se, por exemplo, que os sucessores de um falecido influenciador digital, conhecido por difundir hábitos saudáveis, tenham interesse em autorizar, mediante remuneração, a sua reconstrução digital póstuma, por meio de IA, para que o falecido protagonize campanha publicitária de uma rede de fast food, deliciando-se com cheeseburguers e milk-shakes. Os herdeiros podem emitir esta autorização? Esse uso da voz e imagem do falecido não estaria contrariando tudo que ele defendeu em vida e, portanto, ferindo o seu próprio direito à identidade pessoal? E, neste caso, quem poderia requerer sua proteção se, de acordo com o Código Civil, somente os herdeiros podem fazê-lo?
Do hipotético exemplo pode-se extrair algumas conclusões. Primeiro, a exploração econômica dos direitos da personalidade do falecido deve encontrar limite no próprio desenvolvimento concreto daquela personalidade, assim entendido o conjunto de escolhas existenciais que a pessoa realizou em vida. Naturalmente, nem sempre é fácil identificar esse limite, mas o esforço interpretativo se faz imprescindível para que os direitos da personalidade não sejam tratados como coisas dos herdeiros.
Em segundo lugar, parece evidente que o rol de legitimados trazido pelos artigos 12 e 20 do Código Civil merece alteração, no mínimo, para deixar as portas abertas à iniciativa de outras pessoas que logrem demonstrar interesse legítimo em ver protegida, nas circunstâncias concretas, a personalidade do morto. O melhor amigo do falecido, o seu antigo pupilo, o seu fiel empregado de toda a vida são personagens que o Código Civil não deveria privar a priori da possibilidade de requerer a proteção da personalidade do morto. A atuação de entidades coletivas também não deveria ser descartada, já que o Direito brasileiro atribui legitimidade a associações ou entidades como o Ministério Público para a proteção de outros interesses que não encontram um titular específico (e.g., interesses difusos). Ao juiz seria sempre possível coibir eventuais abusos na análise do interesse legítimo que autorizaria a propositura de cada ação judicial em particular.[13]
Em um contexto em que somos soterrados por inovações tecnológicas que não compreendemos totalmente, restringir a iniciativa a herdeiros do falecido pode acabar induzindo um ambiente de baixa efetividade na proteção dos direitos da personalidade. Se a imagem, voz ou nome do morto só puderem ser protegidos por seus herdeiros, como quis o Código Civil, o que ocorrerá no caso de pessoas que, como Jô Soares, faleceram sem deixar herdeiros?[14] Sua voz e imagem não são, obviamente, de domínio público e alguém há de estar legitimado para pedir sua proteção.
A reconstrução digital póstuma de Elis Regina pode ter causado assombro no Brasil, mas não parece ser moda passageira. A “recriação” de pessoas, que passam a ser inseridas de forma cada vez mais crível em situações nas quais nunca estiveram, tende a se repetir. Ao contrário da música de Belchior (“as aparências não enganam não”),[15] as aparências nos enganam cada vez mais e isso exige abordagem séria e decidida do Direito. Mais importante que criar normas jurídicas novas disciplinando o uso da tecnologia, em um cenário que muitos consideram ainda não amadurecido, é fortalecer os instrumentos de proteção dos direitos da personalidade, ampliando a legitimação para agir e definindo, à luz dos casos concretos, parâmetros substanciais que pautam a nova realidade. É preciso reconhecer que “ainda somos os mesmos”, mas definitivamente já não “vivemos como os nossos pais”.[16]
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[1]Deepfake é, em suma, um conjunto de técnicas de síntese de imagens ou sons por meio de Inteligência Artificial. Para uma análise mais detida do tema, ver Anderson Schreiber, Felipe Ribas e Rafael Mansur, Deepfakes: Regulação e Responsabilidade Civil, in Gustavo Tepedino e Rodrigo da Guia Silva (coords.), O Direito Civil na Era da Inteligência Artificial, São Paulo: Thomson Reuters, 2020, pp. 611 e seguintes.
[2]Elis Regina aparece cantando ao lado da filha Maria Rita em campanha feita com inteligência artificial (G1, 4.7.2023).
[3]Como nossos pais, Belchior (1976).
[4]Volkswagen faz acordo com MPF para reparar violações dos direitos humanos durante a ditadura (G1, 23.9.2020).
[5]Como nossos pais, Belchior (1976).
[6]Conar abre processo para analisar propaganda da Volks com Elis Regina, recriada por inteligência artificial (O Globo, 10.7.2023).
[7]Conar abre processo para avaliar propaganda que recriou Elis Regina com inteligência artificial (G1, 10.7.2023).
[8]Testamento de Robin Williams restringiu uso de imagem por 25 anos após sua morte (O Globo, 31.3.2015). Ver ainda: “Robin Williams blindou o uso de sua imagem mesmo depois de morto (El País, 1.4.2015).
[9]Após internação, Madonna cria regras para uso de sua imagem e divisão de fortuna de R$ 4 bilhões (O Globo, 10.7.2023).
[10] André Brandão Nery Costa, Direito ao Esquecimento: a Scarlet Letter Digital, in Anderson Schreiber (coord.), Direito e Mídia, São Paulo: Atlas, 2013, p. 185.
[11] Viktor Mayer-Schönberger, Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age, New Jersey: Princeton, 2009, p. 196.
[12] “Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.”
[13] Anderson Schreiber, Direitos da Personalidade, São Paulo: Atlas, 2014, pp. 155-156.
[14]Sem herdeiros, Jô Soares deixou fortuna para funcionários que cuidaram dele até a morte e para a ex-mulher (Extra, 8.10.2022)
[15]Como nossos pais, Belchior (1976).
[16] Idemanterior.