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Decodificando o Código Civil (31): A forma excepcional de testamento do art. 1.879
Felipe Quintella
08/08/2017
O art. 1.879 do Código Civil prevê um caso excepcional de testamento particular que tem forma específica, daí porque bem se poderia argumentar que se trata, verdadeiramente, de uma forma excepcional de testamento. A meu ver, melhor seria se o legislador a tivesse destacado da disciplina do testamento particular, o qual é uma das formas ordinárias.
Pois bem. Cuida o art. 1.879 da hipótese em que, dadas as circunstâncias, não pode o testador contar com testemunhas para o ato. É de se aplaudir, aqui, o fato de ter o Código previsto tal situação excepcional, e procurado resguardar a possibilidade de manifestação de última vontade de quem nela se encontra.
Conforme o art. 1.879, em circunstâncias excepcionais, declaradas pelo testador no documento, o testador poderá elaborá-lo, de próprio punho, e assiná-lo, sem as testemunhas, caso em que o testamento poderá ser confirmado, a critério do juiz.
Cuida-se, justamente, do que a doutrina mais antiga denominava testamento hológrafo: o testamento escrito pelo testador de próprio punho, datado e assinado, sem a participação de testemunhas. Considerando-se as respectivas peculiaridades, o testamento de que trata o art. 1.879 também tem sido adequadamente denominado testamento excepcional ou emergencial.
Da minha parte, sempre gostei muito da expressão testamento hológrafo, que já integrava o vocabulário do Direito das Sucessões. O leitor que quiser usá-la deve atentar, no entanto, para o uso do adjetivo hológrafo também para se referir ao testamento particular, o que se faz considerando-se que este também é elaborado de próprio punho pelo testador e assinado. Tal uso, não obstante, não é técnico, vez que nosso testamento particular não precisa necessariamente ser escrito de próprio punho pelo testador — admite-se o meio mecânico —, e ainda exige a participação das testemunhas — no mínimo, três.
Vale destacar que, apesar de a lei não o mencionar, entende-se que o testamento hológrafo tem de ser datado, para que se apure a capacidade do testador ao tempo da elaboração do testamento e para que se determine qual é o testamento mais recente, caso se descubra mais de um.
Confesso que também me agrada bastante o fato de que o art. 1.879 não especificou quais circunstâncias autorizam a confecção do testamento emergencial, estabelecendo cláusula geral, deixando a solução para o juiz, no caso concreto. Mais aplausos para o Código de 2002 nesse ponto.
O que definitivamente não me agrada, por outro lado, é o fato de que o Código veio em 2002 com uma solução que já não seria tão boa lá na década de 70, quando foi gestado. Que dirá no século XXI. Ainda mais agora, na segunda década do novo século. O assunto merece atualização.
Imagine você, aproveitando um exemplo que já foi cobrado em Exame de Ordem, uma pessoa fazendo uma trilha em uma mata, que se acidenta e teme morrer antes de ser resgatada, e que, por não ter herdeiros necessários, quer deixar sua herança para um amigo.
Quais as chances de essa pessoa dispor de papel e caneta, primeiramente? Ainda que tal material esteja disponível, quais as chances de essa pessoa saber que pode elaborar testamento de próprio punho, naquelas circunstâncias? E, pior: quais as chances da pessoa saber que tem que declarar no testamento as circunstâncias que a impediram de contar com testemunhas, sob pena de descumprimento de solenidade exigida para a validade do negócio?
Por outro lado, quais as chances de essa pessoa dispor de um dispositivo eletrônico, que grave áudio ou vídeo, como um smartphone? Quais as chances de essa pessoa ter sinal de telefone ou de internet? Quais as chances de essa pessoa, ainda que esteja desconectada, ter espontaneamente a ideia de gravar um arquivo de áudio ou vídeo fazendo sua disposição de última vontade? Quais as chances de essa pessoa, espontaneamente, explicar as circunstâncias em que se encontra?
A todas essas perguntas acerca do testamento gravado, eu responderia: a chance é sempre consideravelmente muito maior do que no caso do testamento que tem que ser feito por escrito.
Por isso, tenho defendido que o Código seja reformado para transformar o caso do art. 1.879 em verdadeira forma autônoma de testamento, forma excepcional, admitindo-se a manifestação de última vontade tanto por escrito quanto por arquivo de áudio ou vídeo. Na hipótese de ocorrer tal reforma, a melhor denominação para a nova forma, acredito, passaria a ser testamento emergencial.
Veja também:
- Repensando o Direito Civil Brasileiro (22): Notas sobre a história do conceito de posse no Direito Civil Brasileiro (parte 1)
- Decodificando o Código Civil (30): Aquisição da propriedade de coisas móveis por ocupação
- Decodificando o Código Civil (29): Vontade real x vontade declarada — hipóteses legais de prevalência da vontade real
- Decodificando o Código Civil (28): Vontade real x vontade declarada e o art. 110
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