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De Gugu a Gógol: deve a lei reservar patrimônio aos herdeiros?

GUGU LIBERATO

HERANÇA

TESTAMENTO

Anderson Schreiber

Anderson Schreiber

27/07/2023

Após cerca de três anos de uma rumorosa disputa, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, de forma unânime, entendeu pela validade do testamento do falecido apresentador Gugu Liberato[1]. A decisão do STJ, embora não definitiva, representa uma primeira indicação quanto ao destino de uma fortuna avaliada em aproximadamente R$ 1 bilhão[2]. A controvérsia envolve diferentes pessoas próximas ao apresentador e tem sido responsável por suscitar importante debate no Brasil acerca do respeito à vontade do falecido.  

Testamento de Gugu Liberato

Como se sabe, em 22 de novembro de 2019, os jornais brasileiros foram inundados por notícias sobre o falecimento de Gugu devido a um acidente doméstico, em Orlando, nos Estados Unidos[3]. A comoção gerada pela sua morte deve-se em parte ao seu carisma e ao afeto que o público no Brasil dirigia a Gugu. As primeiras informações veiculadas pela imprensa afirmavam que sua fortuna seria dividida da seguinte forma: 75% do patrimônio do apresentador seriam destinados aos seus três filhos e os outros 25% seriam reservados aos seus sobrinhos. A divisão, ao que informam as notícias, foi aquela desejada pelo próprio apresentador em seu testamento[4].  

A mãe dos filhos de Gugu, todavia, não havia sido contemplada com um percentual do patrimônio, embora receba, segundo os jornais, uma pensão mensal de US$ 10.000,00 (equivalente a aproximadamente R$ 48.000,00) e tenha recebido em doação, em 2012, uma mansão no Brasil[5]. A mãe promoveu, então, ação de reconhecimento de união estável perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ainda pendente de julgamento. Em seu Instagram, iniciou a postagem de imagens que comprovariam a existência de união estável, o que introduziu o assunto no debate público nacional[6]

Em 15 de dezembro de 2022, veio à tona outro dado que contribuiu para a controvérsia: um chefe de cozinha propôs ação judicial em que igualmente pleiteia o reconhecimento de união estável com o apresentador, entre 2016 e a data de seu falecimento[7]. A ação também está pendente de julgamento.   

Em março de 2023, mais uma informação se tornou pública: um comerciante, com 48 anos de idade, havia ajuizado ação de reconhecimento de paternidade, com requerimento de exame de DNA e exumação do corpo do apresentador. Além de solicitar a utilização do sobrenome de Gugu, o autor também passou naturalmente a figurar na disputa por parcela da herança[8]

A controvérsia ainda parece estar longe do fim e o interesse da mídia pelos ingredientes mais íntimos, ligados à personalidade e à vida do famoso apresentador, afigura-se, em alguma medida, inevitável. Há, todavia, uma questão subjacente cujo debate tem sido continuamente adiado no Brasil: a proteção à herança legítima, destinada por lei aos herdeiros necessários, deve ser mantida entre nós? Não seria mais prático reservar ao testador a liberdade de indicar livremente o destino de 100% do seu patrimônio? 

Evidentemente isso nada tem a ver com a solução que será dada ao caso Gugu Liberato, que precisa ser julgado sob as normas vigentes no momento da abertura da sucessão – isto é, no momento do falecimento do testador –, mas todo o interesse público gerado em torno deste tema talvez sirva a iniciar uma discussão mais ampla sobre os efeitos gerados pela reserva de parte do patrimônio aos herdeiros necessários.   

Reserva legal de parcela do patrimônio

Em muitos casos, a reserva legal de parcela do patrimônio do falecido a filhos, cônjuges e companheiros tem sido o motor de disputas judiciais que perduram por anos a fio, gerando insegurança e incerteza para todos os envolvidos, além de onerarem o Poder Judiciário com disputas complexas. A proteção da legítima no Brasil transcende, ademais, o direito das sucessões. Não se protege a legítima apenas contra disposições testamentárias (Código Civil, artigo 1.789)[9], mas também contra liberalidades praticadas em vida (Código Civil, artigo 549)[10], o que exige, não raro, verdadeiros “retornos ao passado”, suscitando a revisão de fatos que as pessoas já tinham como consolidados e exigindo cálculos virtuais do valor de bens doados.   

Tudo isso é fruto de uma opção legislativa. Há países que adotam uma ampla e irrestrita liberdade de dispor do próprio patrimônio, como ocorre, em regra, na tradição do common law. Tem-se argumentado que uma liberdade irrestrita poderia acabar, em certo caso concreto, deixando familiares ao desamparo, como filhos menores que dependeriam de auxílio do Estado para sobreviver ou cônjuges ou companheiros que, estando em estado de dependência econômica do falecido, acabariam vivendo uma situação de miséria em uma idade em que possivelmente já não teriam mais condições de trabalhar e obter seu próprio sustento. Nesse sentido, a melhor doutrina sustenta, entre nós, que a solução adotada pelo direito brasileiro, de modo geral, “concilia a liberdadee a solidariedade no âmbito do direito das sucessões”, sendo certo que a reserva hereditária “desempenha, para os membros da família, a função de instrumento para a concretização de uma vida digna, uma vez que estabelece mecanismos econômicos capazes de libertá-los de suas necessidades[11]

Outras soluções são, todavia, possíveis e podem, com algum cuidado, alcançar o mesmo resultado, ou seja, preservar os recursos necessários à manutenção de uma vida digna aos herdeiros que dependam – justificadamente – dos recursos deixados pelo falecido, mas assegurar uma maior liberdade ao testador. O próprio percentual do patrimônio reservado à legítima no Brasil é bastante elevado: 50% do acervo total.

Uma reforma legislativa poderia reduzir tal percentual ou mesmo adaptá-lo ao valor da herança: por exemplo, 25% se o patrimônio total do de cujus superar um certo valor. Ter-se-ia, assim, uma espécie de variação quantitativa que já é lei em diversos estados do Brasil em relação à cobrança do imposto de transmissão causa mortis e doação (ITCMD).  

Outra possibilidade, já aplicada em alguns países, como a Noruega[12] ou nossa vizinha Argentina[13], é fazer a amplitude da legítima variar conforme a idade dos herdeiros (um percentual maior se houver herdeiros menores de idade) ou de acordo com outros critérios vinculados à situação particular de cada herdeiro, como sua eventual incapacidade civil ou o acometimento de alguma enfermidade grave ou, ainda, a situação de dependência econômica. Isso talvez exprimisse de modo mais fidedigno um compromisso efetivo com a realização da solidariedade familiar[14]

Não se pode, evidentemente, deixar que a criação de critérios funcionais, necessariamente concretos, torne tão casuística a repartição da herança que cada sucessão tenha que ser orquestrada pelo Poder Judiciário, analisando individualmente a situação dos múltiplos herdeiros, sob pena de uma judicialização excessiva da qual o Direito Sucessório tem procurado justamente se afastar, nos últimos anos. Parece possível, contudo, adotar critérios objetivos para a definição de herdeiros que mereçam efetivamente a proteção outorgada pela legítima, em algum percentual, à luz de normas que já integram a ordem jurídica brasileiro. É o caso, por exemplo, 1) dos filhos menores, que, por imposição da Constituição[15] e do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente[16], já são beneficiários do dever de assistência e amparo aos menores; 2) dos filhos maiores com deficiência, por força do Estatuto da Pessoa com Deficiência[17]; 3)dos ascendentes idosos, ante o Estatuto da Pessoa Idosa[18]; e, por fim, 4) do cônjuge ou companheiro que, não dispondo de remuneração capaz de sustentar padrão de vida digno, dependa economicamente da assistência do falecido[19]. Nestes casos, a reserva da legítima mostra-se adequada à tutela efetiva da solidariedade familiar[20]

Nikolai Gógol

Fora destas hipóteses, convém refletir criticamente sobre a conveniência de limitações legais inafastáveis à liberdade de testar. E o assunto precisa ser debatido à luz do dia, sem o preconceito que guia discussões relacionadas à morte, ainda hoje vista como tabu. Há mais de 180 anos, Nikolai Gógol publicou Almas mortas, romance que é considerado uma obra prima da literatura russa. O interesse pela obra foi imediato não apenas pelo retrato realista do regime semiescravagista do Império Russo, mas pela figura do protagonista da obra, um ex-funcionário público que comprava títulos de propriedade de servos já falecidos, no afã de alcançar status e riqueza. O lucrar com a morte alheia, que soava execrável, ganha contornos humanos na obra de Gógol e exprime, a rigor, uma consequência indissociável do direito de herança tal como consagrado, ainda hoje, na imensa maioria dos países do mundo.  

Quando o Direito reserva parte do patrimônio de uma pessoa a seus herdeiros necessários incentiva, a rigor, uma expectativa econômica em torno da morte – misturando dois campos muito díspares. Isso gera efeitos discutíveis não apenas sobre disputas hereditárias, mas também sobre a gestão de direitos autorais – com restrição de acesso a obras intelectuais cuja exploração acaba não sendo objeto de consenso entre herdeiros –, sobre o uso do nome da pessoa falecida e sobre o uso de sua imagem, que enfrenta agora um novo desafio com o uso da inteligência artificial, como se viu em recentíssima publicidade de fabricante de automóveis com recriação em vídeo da cantora Elis Regina. O novo recurso, que já está gerando amplo debate na sociedade brasileira, nos faz perguntar genuinamente se “apesar de termos feito/ tudo o que fizemos / ainda somos os mesmos…[21]. Este é um tema, contudo, para outra coluna.

Fonte: Jota

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LEIA TAMBÉM


[1] Ver, para mais detalhes, a reportagem intitulada “STJ valida testamento de Gugu Liberato; advogado das gêmeas Marina e Sofia irá recorrer”, publicada pelo Estadão, em 20.6.2023 (estadao.com.br). 

[2] Confira a reportagem intitulada “Herança de Gugu: o que compõe o espólio avaliado em 1 bilhão de reais”, publicada pela Veja, em 25.5.2023 (veja.abril.com.br). 

[3] Ver, para mais detalhes, a reportagem intitulada “Gugu Liberato, um dos maiores nomes da TV brasileira, morre aos 60 anos”, publicada pelo G1, em 22.11.2019 (g1.globo.com). 

[4] Confira a reportagem intitulada “STJ valida testamento de Gugu Liberato deixando 75% aos filhos”, publicada pelo portal Migalhas, em 20.6.2023 (migalhas.com.br). 

[5] Ver reportagem da Folha de S.Paulo intitulada “Sem herança, viúva de Gugu ficou com pensão de R$ 47 mil e mansão em Alphaville”, publicada em 21.6.2023 (folha.uol.com.br). 

[6] Ver: https://www.instagram.com/p/B8ROvKLAdA4/

[7] Ver, para mais detalhes, a reportagem intitulada “Gugu Liberato: Justiça de SP reabre ação sobre união estável do apresentador com Thiago Salvático”, publicada pelo Estadão, em 23.6.2023 (estadao.com.br). 

[8] Confira a reportagem intitulada “Comerciante se diz filho de Gugu, pede DNA e exumação e entra na briga por herança, publicada pela Folha de S. Paulo em 21.6.2023 (folha.uol.com.br). 

[9] “Artigo 1.789 Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança.” 

[10] “Artigo 549. Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento.” 

[11] Ana Luiza Maia Nevares, A sucessão do cônjuge e do companheiro na perspectiva civil-constitucional, 2ª ed., São Paulo: Atlas, 2015, p. 28 e 31. 

[12] Eis a previsão do § 36 do Chapter V do Inheritance Act da Noruega: “Decedent’s children whose fostering has not been completed at the time of decedent’s death are entitled to a sum of the estate as a prior share in order to secure their sustenance and education, wherever reasonable under the circumstances. The size of such sum shall be adjusted according to the circumstances. For the purpose of such adjustment, due account shall be taken of the inheritance which the unfostered child will otherwise receive, whether the child has any property of its own, whether its fostering has been ensured in some other manner, the expenses incurred by the decedent for the education of his other children, and other factors. If several children have not been completely fostered, each child shall receive such amount as is reasonable, with due regard for their requirements and other circumstances. Children living at home who, without receiving reasonable compensation, have been of particularly great help to the decedent, may at the time of the inheritance settlement claim a sum of the estate as a prior share, if such claim is reasonable under the circumstances. The size of such sum shall be adjusted according to the circumstances. For the purpose of such adjustment, due account shall be taken of the help afforded by the child, its prospects for employment, the amount of the inheritance otherwise to be received by the child, the economic situation in general of the child and of the other heirs, and other factors”. 

[13] Código Civil argentino: “Artigo 2448. El causante puede disponer, por el medio que estime conveniente, incluso mediante un fideicomiso, además de la porción disponible, de un tercio de las porciones legítimas para aplicarlas como mejora estricta a descendientes o ascendientes con discapacidad. A esos efectos, se considera persona con discapacidad, a toda persona que padece una alteración funcional permanente o prolongada, física o mental, que en relación a su edad y medio social implica desventajas considerables para su integración familiar, social, educacional o laboral.” 

[14] Para mais detalhes, ver Anderson Schreiber e Francisco de Assis Viegas, Por uma Releitura Funcional da Legítima no Direito Brasileiro, in Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 19, 2019, pp. 211-250. 

[15] “Artigo 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (…) Artigo 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.” 

[16] “Artigo 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.” 

[17] “Art. 8º É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à sexualidade, à paternidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à educação, à profissionalização, ao trabalho, à previdência social, à habilitação e à reabilitação, ao transporte, à acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à informação, à comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, entre outros decorrentes da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico.” 

[18] “Art. 3º É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar à pessoa idosa, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.” 

[19] “Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: (…) III – mútua assistência”. 

[20] Seja consentido remeter, ainda uma vez, a Anderson Schreiber e Francisco de Assis Viegas, Por uma Releitura Funcional da Legítima no Direito Brasileiro, in Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 19, 2019, pp. 211-250. 

[21] Trecho da letra de Como nossos pais, composição de Belchior que fez sucesso na voz de Elis Regina (álbum Falso Brilhante, 1976)

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