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CIVIL
CLÁSSICOS FORENSE
REVISTA FORENSE
Casamento religioso – inscrição “post mortem” de Clóvis Paulo da Rocha
Revista Forense
19/02/2024
– A inscrição do casamento religioso, no Registro Civil, deve ser requerida por ambos os cônjuges.
– Interpretação do art. 163, § 2.º, da Constituição.
– “Idem” da lei n.º 1.110, de 1950.
PARECER
* 1. A autora-apelante, mãe do sargento da Aeronáutica José Nílson Façanha Bezerra, falecido em 3 de julho de 1950, na cidade de Belém, no Pará, propôs a presente ação para que fôsse declarada a inexistência do casamento de seu filho com Henriqueta da Silva Lisboa ou Henriqueta Lisboa Bezerra.
O seu filho e Henriqueta da Silva Lisboa consorciaram-se religiosamente no dia 31 de janeiro de 1948, na Matriz Paroquial de Santana, da Arquidiocese de Belém, no Pará. Após o seu falecimento, D. Henriqueta da Silva Lisboa requereu no Registro Civil da 7.ª Circunscrição, desta Capital, a inscrição do casamento religioso, a fim de que pudesse o mencionado casamento ter os mesmos efeitos do casamento civil, nos têrmos do § 2.º do art. 163 da Constituição federal de 1946, e art. 4.° da lei n.º 1.110, de 23 de maio de 1950, o que foi deferido pela respeitável sentença junta por certidão a fls. 8.
A fls. 50 a ação foi contestada. Na audiência de instrução e julgamento foi julgada improcedente a ação (folhas 85 v.-88). Daí o presente recurso de apelação.
Nulidade da inscrição do documento religioso no Registro Civil
2. A ação visa à nulidade da inscrição do documento religioso no Registro Civil. Êste é o escopo da ação.
Não se trata assim de nulidade, anulação ou declaração de inexistência do casamento. A inexistência dos efeitos civis resultarão da procedência da nulidade da inscrição.
Delimitado o âmbito da ação, examinemos a procedência ou improcedência da argüição de nulidade.
Alega a autora que a inscrição é nula porque a lei exige que a inscrição seja feita a requerimento de ambos os cônjuges e, no caso, a inscrição foi requerida e feita após a morte do cônjuge-marido. Êste, portanto, não requereu a inscrição. A inscrição foi requerida sòmente por sua viúva. Em tôrno dessa circunstância gira tôda a controvérsia do processo.
3. O casamento religioso era o único existente no Brasil, o único que produzia todos os efeitos civis, desde a descoberta até que a lei n.º 1.144, de 1861, permitiu o casamento civil doa católicos e, posteriormente, proclamada a República, houve a separação entre a Igreja e o Estado, ficando abolido o casamento religioso, por decreto de 7 de janeiro de 1890.
O dec. n.º 181, de 24 de janeiro de 1890, instituiu como único casamento válido, reconhecido pelo Estado, o matrimônio civil. Esta situação manteve-se até a Constituição de 1934, cujo art. 34 permitiu a celebração religiosa do casamento. A matéria veio a ser regulada pela lei n.º 379, de 16 de janeiro de 1937, que estabeleceu as condições necessárias para a validade do casamento religioso. A Constituição de 1937 silenciou a respeito. O dec.-lei nº 3.200, de 19 de abril de 1941, Lei de Proteção à Família, introduziu algumas modificações na lei n.º 379. No regime dessa legislação, era mister, para validade do casamento religioso, que tivesse havido prévia habilitação perante a autoridade civil. Veio a Constituição de 1946 que, no art. 163, §§ 1.º e 2.º, permitiu a validade do casamento religioso com efeito civil, quer com habilitação prévia, quer com habilitação a posteriori, desde que fôsse feita a inscrição no Registro Civil.
A matéria veio a ser disciplinada na lei n.º 1.110, de 23 de maio de 1950.
Vejamos agora os dispositivos legais pertinentes à hipótese dos autos.
Art. 163 da Constituição federal:
“Art. 163…
§ 1.º O casamento será civil, e gratuita a sua celebração. O casamento religioso equivalerá ao civil se, observados os impedimentos e as prescrições da lei, assim o requerer o celebrante ou qualquer interessado; contanto que seja o ato inscrito no Registro Público.
§ 2.º O casamento religioso, celebrado sem as formalidades dêste artigo, terá efeitos civis, se, a requerimento do casal, fôr inscrito no Registro Público, mediante prévia habilitação perante a autoridade competente”.
O art. 4.º da lei n.º 1.110 dispõe:
“Art. 4.° Os casamentos religiosos, celebrados sem a prévia habilitação, perante o oficial de Registro Público, anteriores ou posteriores à presente lei, poderão ser inscritos, desde que. apresentados pelos nubentes, com o requerimento de inscrição, a prova do ato religioso e os documentos exigidos pelo art. 180 do Cód. Civil”.
No § 1.º da Constituição se prevê a hipótese do casamento religioso contraído com prévia habilitação e a inscrição pode, neste caso, ser requerida pelo celebrante ou qualquer interessado.
A lei n.º 1.110, no art. 2.°, regulando êste dispositivo constitucional, também preceitua que, feita a habilitação prévia perante a autoridade civil, expedida a certidão pelo oficial do Registro de que os nubentes estão habilitados a contrair matrimônio e celebrado êste perante autoridade religiosa, qualquer interessado poderá requerer a sua inscrição no Registro Civil.
Na segunda hipótese, a do § 2.º do art. 163 da Constituição federal, se exige requerimento do casal e o cumprimento dos requisitos relativos ao processo de uma habilitação a posteriori idêntica à habilitação prévia comum.
Numa hipótese requer-se apenas o requerimento de qualquer interessado, mas, na outra, o requerimento do casal como diz a Constituição, ou dos nubentes como fala a lei n.º 1.110, no seu art. 4.º.
Do histórico da legislação se pode verificar, desde a Constituição de 1934, a lei n.º 379, o dec.-lei n.° 3.200, a Constituição de 1946 e a lei n.º 1.110, que a tendência dessa legislação foi de ir, pouco a pouco, ampliando o reconhecimento do casamento religioso, para lhe conferir todos os efeitos do casamento civil.
A princípio maiores eram as exigências para se conseguir aquela finalidade. Hoje estão mais reduzidas. Hoje veio se permitir a inscrição com habilitação a posteriori, para abranger todos os casamentos religiosos, realizados em qualquer época e se dando à inscrição no Registro Civil um efeito retro-operante, ex tunc, desde então, porque, em face do art. 7.° da lei n.º 1.110, de 1950, a inscrição produz “efeitos jurídicos a contar do momento da celebração do casamento”.
Mas ainda faz a lei uma restrição, é a de que, na hipótese da habilitação a posteriori, o pedido da inscrição seja feito por ambos os cônjuges, ou pelo casal, nos precisos têrmos constitucionais.
É possível que de futuro esta exigência legal venha desaparecer, havendo uma completa equiparação entre o casamento civil e religioso. Esta lei, no entanto, ainda não apareceu e enquanto não surgir terá de ser feita a exigência da atual legislação.
A egrégia 6.ª Câmara do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, na apelação civil n.º 2.384, em venerando acórdão de que foi relator o eminente desembargador e mestre GUILHERME ESTELITA, teve ocasião de estudar o problema, decidindo o caso em que um dos nubentes faleceu antes da inscrição, mas tendo êle próprio requerido a inscrição. Afirma o venerando acórdão que o falecimento do nubente antes de feita inscrição no Registro Civil, por êle requerida, não obsta à sua concessão. Afirmou, entretanto, o venerando acórdão ser imprescindível o requerimento de ambos os cônjuges para se permitir a inscrição do casamento religioso, sem prévia habilitação civil.
Merece transcrição o trecho do venerando acórdão, da lavra do eminente desembargador GUILHERME ESTELITA, quando aprecia a necessidade de requerimento de ambos os cônjuges para a inscrição do casamento religioso.
Diz S. Ex.ª:
“Em verdade, como relembra LEVI CARNEIRO em parecer constante dos autos, fls. 159 e seg., é ao senador FERREIRA DE SOUSA que se deve a vitória da emenda de que resultou o § 2.º do art. 163. Justificando-a, pôs em relêvo êsse parlamentar e jurista a diferença que há entre a hipótese do § 1.º e a do § 2.º, ou seja, a de casamento religioso com prévia habilitação civil para o fim declarado de celebração religiosa e o casamento simplesmente religioso sem aquela habilitação. A ambos, a inscrição no Registro Civil dá eficácia, mas, no primeiro caso, qualquer interessado pode requerê-la, ao passo que, no segundo, só ambos os cônjuges. Isso porque, consoante as próprias expressões de FERREIRA DE SOUSA, “…em se tratando de casamento religioso realizado sem prévia habilitação, isto é, sem preenchimento das condições do casamento civil, só poderia ser registrado e só terá eficácia civil se, feita posterior habilitação, fôr a inscrição requerida por ambos os cônjuge”. Justificando a exigência de ser o registro requerido por ambos os cônjuges, esclareceu destinar-se a “evitar a inconveniência desta situação”… alguém que tenha casado no religioso, sem qualquer intuito de casamento civil, ou seja de casamento legal, poderia posteriormente ver-se surpreendido com os efeitos do casamento civil porque o outro cônjuge ou qualquer interessado houvesse requerido tal registro” (“REVISTA FORENSE”, vol. CXIX, pág. 448).
A decisão acima mencionada subiu ao colendo Supremo Tribunal Federal como recurso extraordinário n.º 14.348, cujo venerando acórdão e encontra publicado no “Arq. Judiciário”, vol. XCII, pág. 293.
Aí encontramos o voto do eminente ministro EDGAR COSTA, no qual é focalizada a necessidade indeclinável do requerimento de ambos os cônjuges para a inscrição do casamento religioso.
Os outros eminentes ministros que votaram não focalizaram êste aspecto, porque no caso tinha havido requerimento de ambos os cônjuges.
Invoca-se, como precedente, outro caso julgado, no regime da lei anterior, de casamento religioso in articulo mortis, no qual um dos nubentes faleceu no dia em que outorgou procuração com poderes especiais para a inscrição no Registro Civil (venerando acórdão de 7 de dezembro de 1943, da egrégia 5.ª Câmara, in “Arq. Judiciário”, vol. 70, pág. 426).
Esta hipótese não pode servir de precedente porque teve outros fundamentos e foi proferida no regime da lei n.º 379, de 1937.
Do histórico da lei resulta igualmente a necessidade de requerimento de inscrição assinado por ambos os cônjuges. A exigência do requerimento do casal resultou de emenda do senador FERREIRA DE SOUSA, a fim de evitar que um dos cônjuges fôsse surpreendido com a inscrição requerida pelo outro, como informa o desembargador JOSÉ DUARTE, inverbis:
“Ora, se alguém se casou sem o intuito do casamento civil, será surpreendido com o registro feito pelo outro cônjuge ou qualquer interessado. Exige-se, assim, o consentimento efetivo para que se consubstanciem os efeitos do casamento civil. A emenda foi aprovada” (“A Constituição Brasileira de 1946”, “Exegese”, pág. 259).
E, mais adiante, observa JOSÉ DUARTE:
“Na segunda, porém, não se atenderá, senão, às próprias exigências do rito religioso, e abstrair-se-á do processo de habilitação prévia na conformidade da lei civil. É, neste caso, essencial: a) que se processe a habilitação, a fim de que se observem os impedimentos legais; b) que o pedido de registro seja formulado, pelo casal. Sòmente a êste cabe manifestar a vontade de equiparar o casamento religioso celebrado, antes, sem as formalidades da lei civil, ao casamento regulado por esta mesma lei. Êsse o pensamento de FERREIRA DE SOUSA, só considerando interessados na hipótese o casal” (“A Constituição Brasileira de 1946”, “Exegese”, pág. 259).
Exige o requerimento de ambos porque é por meio dêle que as partes manifestam a vontade de comunicar efeitos civis ao casamento religioso. Não é possível dar ao casamento religioso efeitos civis sem que haja a manifestação de vontade expressa das partes.
4. Não procede, a nosso ver, o argumento de que não podia mais haver a inscrição porque o casamento já estava dissolvido pela morte. Este argumento não procede porque, como vimos, o art. 7.º da lei determina expressamente que a inscrição retroaja à data da celebração do casamento. Se os efeitos só existis em a partir da inscrição, estariam certos os argumentos, mas desde que a inscrição tem efeito retroativo, evidentemente não se trata de criação de um vínculo impossível pela morte de um dos cônjuges antes da inscrição.
Além do texto expresso da lei, poderíamos, ainda, invocar o venerando acórdão, já citado, da lavra do eminente desembargador GUILHERME ESTELITA e também, os votos proferidos no recurso extraordinário também já mencionado, entre os quais o do eminente ministro HAHNEMANN GUIMARÃES, que feriu precisamente o assunto, para dizer que é retro-operante a inscrição.
5. No caso dos autos, estando claramente demonstrado que a inscrição não foi requerida por ambos os cônjuges, mas, apenas por um dêles, após a morte do outro, é evidente que não foi satisfeita a exigência, não só da Constituição, como também da lei disciplinadora da matéria. A inscrição é, assim, nula de pleno direito. E pelo requerimento da inscrição que os cônjuges manifestam a vontade de dar efeitos civis ao casamento religioso.
6. Nestas condições, invocando os doutos suplementos da egrégia Câmara, parece-nos que merece reforma a sentença apelada, dando-se provimento à apelação para decretar-se a nulidade da inscrição.
Rio de Janeiro, 24 de julho de 1954. – Clóvis Paulo da Rocha, por delegação do Dr. procurador geral da Justiça do Distrito Federal.
____________________
Notas:
* N. da R.: Parecer emitido na apelação cível n.º 26.216, sendo apelante Pergentina Façanha Bezerra e apelada Henriqueta da Silva Lisboa, submetida à 5.ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal.,
LEIA TAMBÉM O PRIMEIRO VOLUME DA REVISTA FORENSE
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 1
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