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Bancos – Desconto – Cobrança De Comissão – Juros De Antão De Morais

REVISTA FORENSE 160

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04/01/2024

– A comissão, no desconto, faz parte da remuneração do banqueiro, que a recebe, não como adicional dos juros, mas como paga de seu serviço de expediente e cobrança. Escapa portanto, à compreensão da Lei da Usura, porque tem causa jurídica diversa dos juros: remuneram o serviço do banqueiro, como emprêsa comercial e não o capital descontado.

– O desconto não é mútuo; não está compreendido nas disposições da Lei da Usura e da que regula os crimes contra a economia popular.

PARECER

1. Com o objetivo de propaganda ou de vencer a concorrência de estabelecimentos tradicionais, os Bancos adotaram a praxe de não exigir, nos descontos, comissão pela cobrança dos títulos descontados ou pela transferência de numerário. Agora, porém, com o encarecimento do serviço bancário, um Banco desta praça pretende cobrar a referida comissão, tomando por base as taxas de sua Tarifa Geral.

2. Temendo, porém, que essa cobrança incida nas leis da usura, deseja o consulente obter resposta ao seguinte quesito:

É vedado, nos descontos de duplicatas, notas promissórias e letras de câmbio, cobrar, além dos juros, uma comissão, para atender ao serviço bancário, mediante a taxa estipulada na Tarifa Geral de Cobrança?”

Respondo negativamente. Tal cobrança não é vedada. É perfeitamente lícita.

3: Como justificação dessa resposta, lembrarei, desde logo, a opinião do eminente mestre professor AFONSO PENA JÚNIOR, o qual, por duas vêzes, tratou do assunto, julgando inatacável a cobrança “Banco do Brasil”, pareceres, A. Coelho Branco F., 1941, págs. 201 e 254). O primeiro dêsses pareceres (nº 41) está assim redigido:

“Trata-se, no caso, de verdadeira comissão, que o descontador paga a terceiro pelo serviço de cobrança. Não se verifica, portanto, a hipótese, prevista na lei, de um simulacro de comissão, para cobrar juros superiores aos da lei. É legítima a comissão. Tão legítima, como, por exemplo, a que o comissário de café cobra pela venda de partidas a um seu comitente, que seja, ao mesmo tempo, seu mutuário. Ninguém pretenderá que o comissário, pelo fato de receber juros de 12% do empréstimo ao fazendeiro, esteja inibido de cobrar comissão das vendas que faz por conta dêle, desde que – bem entendido – a percentagem seja a dos estilos da praça”.

E o segundo (nº 52) não é menos decisivo:

“É meu parecer que a agência tem razão e pode cobrar a comissão por não ser esta de desconto, mas de cobrança, que é um verdadeiro serviço, pelo qual o Banco recebe normalmente remuneração.

“A chamada comissão de desconto só se considera ilegítima, quando se trata de título criado expressamente para o desconto, e quando, portanto, o Banco se limita a emprestar os fundos do desconto. Quando, porém, além de tal empréstimo, de que cobra juros, faça êle serviço que constitui outro ramo do seu negócio, como é o de cobrança, aí a exigência da remuneração corrente de tal serviço não importa fraude às taxaslegais de juros“.

4. Para cabal solução do assunto, afigura-se-me necessário indagar a natureza jurídica da comissão e do desconto. Se a comissão não é remuneração do capital, mas do serviço prestado; se o desconto não é mútuo, uma e outro escapam, como se verá, à compreensão da Lei da Usura.

5. A comissão, no desconto, faz parte da remuneração do banqueiro. É o que esclarecem LESCOT et ROBLOT, “Les effets de commerce”, Rousseau & Cie., 1953, vol. 1, pág. 32, n° 31:

“L’escompte est l’endossement d’un effet de commerce à un banquier qui en paie le montant à l’endosseur sous déduction d’un somme composant la rémunération du banquier”.

Em que consiste essa remuneração? É o que, em nota, explicam aquêles escritores: “Cette rémunération se compose de trois éléments: 1º, l’intérêt…; 2º, la commission…; 3º, le change”

6. Êsses três elementos da remuneração têm, cada um, significação especial. Os juros remuneram o capital descontado; a comissão que, a princípio, segundo explicam LESCOT et ROBLOT, era um meio de disfarçar o aumento da taxa, quando esta não era livre, “a été conservée pour couvrir les frais généraux du banquier pour les soins divers que lui occasionne chaque opération”.

Finalmente, o câmbio é exigido por alguns banqueiros, além da comissão, quando o título descontado não é pagável na praça do descontador.

7. Todos os escritores incluem na remuneração do banqueiro, além dos juros, a comissão. Limito-me a citar ESCARRA, “Príncipes de droit commercial”, Sirey, 1937, tomo 6, nº 600:

“En ce qui concerne sa rémunération, l’avance de fonds…comporte, au profit du banquier, la perception d’intérêts et, généralement, d’une commission”.

E, ainda, CARVALHO DE MENDONÇA, vol. 6°, parte 3, nº 1.470:

“Os bancos cobram, também, além do desconto, uma eventual comissão sôbre a importância nominal do título descontado, qualquer que seja o tempo do vencimento, destinada a compensaro seu trabalho como emprêsa comercial“.

8. Vê-se, assim, que a comissão integra a remuneração do banqueiro, que a recebe, não como adicional dos juros, mas como paga de seu serviço de expediente e cobrança. Escapa, portanto, à compreensão da Lei da Usura, porque tem causa jurídica diversa a dos juros: remuneram o serviço do banqueiro, como emprêsa comercial, e não o capital descontado. O insigne ESCARRA, ob. cit., nº 600, pág. 421, bem o esclarece:

“La validité de ces commissions n’est pas discutable ici que d’un d’autres domaines du droit bancaire. Il ne saurait étre question d’y voir un intérêt suplémentaire. Elles représentent la rémunératicn de services rendus par le banquier et non la rémunération du capital prêté. Elles sont la contrepartie de l’obligation où il se trouve de conserver des ressources suffisantes pour faire face aux demandes du client, la rémunération de ses risque de trésorerie. C’est pourquoi, d’une part elles ne sont pas atteintes par la réglementation visant l’usure et, d’autre part, même lorsque les intérêts de l’avance sont passibles de l’impôt cédulaire sur le revenu…les dites commissions ne sont pas frappés par cet impôt”.

9. Bem claro ficou, assim, que a cobrança de comissão não representa um suplemento disfarçado de juros e, por isso, não infringe a Lei da Usura. Se, todavia, essa comissão não obedecer à Tarifa Geral, se fôr excessiva, já, então, funcionará a Lei da Usura. É o que elucida ESCARRA, encerrando o tópico transcrito:

“Toutefois, si la preuve était faite que des commissions, du fait de leur importance, ne sont que des intérêts deguisés,

elles seraint assujetties à l’impôt et pourraient être, d’autre part, éventuellement retennues comme constituant le délit d’usure des décrets-lois des 16 juillet, 28 août, 30 octobre 1935″.

10. Observa ESCARRA (ob. cit., número 606) que a determinação da natureza jurídica do desconto, se empréstimo, cessão, delegação ou contrato sui generis, tem importância para se saber se a Lei da Usura compreende êsse contrato. No caso da consulta essa determinação é necessária, porque, tanto o dec. nº 22.626, de 7 de abril de 1933 (Lei da Usura), como o dec.-lei nº 869, de 18 de novembro de 1938 (lei que definiu os crimes contra a economia popular), só tratam do mútuo; e; assim, se o desconto não é mútuo, não há falar em usura.

11. ESCARRA e RIPERT, com grande bom-senso, mostram que o desconto tem características próprias: embora semelhante a alguns contratos – à cessão, à compra e venda, à delegação, ao mútuo – não é nenhum dêsses contratos, porque é, na realidade, um contrato com fisionomia própria, um contrato de desconto. ESCARRA (ob. cit., nº 606) escreve:

“Êste contrato não é, em parte alguma, descrito nem analisado em nossas leis. Por isso, não é de admirar se se levantaram controvérsias sôbre sua natureza. A maior parte destas controvérsias são de caráter teórico e não as referimos senão como lembrança. Na prática, os direitos e obrigações respectivos das partes no desconto são conhecidos e não “suscitam maior dificuldade”.

Informa ESCARRA (ob. cit., nº 607) que a jurisprudência france a jamais aceitou a tese de ser o desconto um empréstimo:

“Mesmo sob o império da lei de 3 de setembro de 1807, a jurisprudência havia repelido a análise que jazia do desconto um mútuo. Ela via nesta instituição um contrato sui generis estranho à referida lei. Daí vinha que os tribunais podiam sòmente indagar se se não havia qualificado impròpriamente de desconto um mútuo usurário. Alguns autores ensinam, entretanto, que o desconto é um empréstimode natureza especial, o que, na verdade, não significa grande coisa. Há, ao menos, um argumento decisivo contra qualquer assimilação do desconto ao mútuo. É que o descontador adquire o crédito que desconta em plena propriedade, por via do endôsso, se se trata de um título à ordem, o, que acontece o mais das vêzes, e, de maneira geral, pelo mecanismo jurídico próprio do título descontado”.

12. RIPERT, “Droit Commercial”, troisième édition, nº 2.202, pág. 884, tratando da natureza do desconto, mostra alue não é nem cessão nem mútuo:

“Uma e outra concepções são explicações de uma instituição de direito comercial pelas regras do direito civil. Elas não avaliam suficientemente o mecanismo jurídico do endôsso dos títulos comerciais. O endôsso é uma operação de caráter abstrato, cuja causa jurídica não deve ser levada em consideração. O banqueiro é beneficiário de um endôsso translativo; torna-se, pois, portador do título e não se deve considerá-lo credor pignoratício. Se exerce um regresso contra o endossante é o regresso do câmbio ” (recours du change) e não o regresso do mutuante contra o mutuário. O desconto é, pois, pura e simplesmente o endôsso de um título, com dedução operada pelo descontador sôbre a quantia nominal, sem que se tenha de indagar a causa em virtude da qual o banqueiro adquire o saque. Aliás, o mais das vêzes a importância do saque é lançada imediatamente a crédito do endossante, em sua conta-corrente, sob reserva implícita de posterior recebimento. A operação bancária se basta por si mesma sem que seja mister aparentá-la a um contrato de direito civil”.

Equiparação de desconto a um mútuo

13. A idéia de equiparar o desconto a um mútuo já não encontra apoio na doutrina mais moderna. Na Itália, forte corrente doutrinária apóia a teoria de RIPERT, pela qual a operação bancária do desconto vale por si mesma, sem necessidade de confundí-la com outro contrato, notadamente com o mútuo. Na “Rivista del diritto commerciale”, vol. 32, parte segunda, pág. 152, lê-se uma sentença da Côrte de Cassação na qual se decidiu: “nello sconto cambiario non esiste, oltre il rapporto di girata, anche un rapporto di mutuo”.

Essa é a opinião de VIVANTE, BOLAFFIO e ASCARELLI, consoante mostra PAOLO GRECO em comentário à referida sentença. Certo, uma ou outra autoridade permanece ainda jungida ao equívoco do mútuo. Cingir-me-ei, para mostrar o êrro dessa opinião, a três escritores que estudaram ex professo a matéria. Seja o primeiro MINERVINI, “Lo sconto bancário”, Nápoles, 1949, o qual (pág. 57), após mostrar que desconto não é mútuo, conclui (pág. 74) tratar-se de uma compra e venda. O segundo (MESSINEO, “Operazioni di Borsa e di Banca”, Giuffrè, 1954, página 446) afirma categòricamente: “la struttura giuridica dello sconto ripugna ad ogni assimilazione col mutuo (o prestito) che è contratto con prestazione da una sola parte. Lo sconto, essendo contrato con prestazioni corrispettive, non puó perciò solo, essere un mutuo.

O professor ENRICO COLAGROSSO, “Diritto bancário”, Roma, 1947, nº 86, estuda, aprofundadamente, a natureza jurídica do desconto; mostrando que não é, absolutamente, mútuo. Conclui (pág. 255) que se trata de negócio misto, formado com elementos de vários tipos contratuais.

14. Vários autores afirmam que o contrato de desconto é um contrato de empréstimo. Mas, isso não significa que seja um mútuo. É o que bem esclarece o professor FIORENTINO, “Le operazioni bancarie”, Jovene, 1952, pág. 92:

“Affermare che il contratto di sconto è un contratto di prestito non significa affermare che esso è un contratto di mutuo. Sconto e mutuo sono oggi due distinti contratti nominati o tipici, i quali, pur se appartengono alio stesso genero, si différenziano per alcuni particolari caracteristiche“.

15. O que tem levado vários autores a confundir o desconto com o mútuo é o aspecto econômico. O professor ANDREA ARENA, “Lo sconto della carta commerciale”, Giuffrè, 1936, pág. 25, assim desfaz o engano:

“Um último relêvo: o motivo principal pelo qual escritores ilustres se pronunciaram em favor da teoria do mútuo, por nós combatida, deve buscar-se no fato de que se encarou a operação de desconto sob o aspecto econômico, ao invés do aspecto jurídico. Pensou-se de fato, em nossa opinião, que a operação de desconto é para o banco de crédito ordinário uma operação ativa, isto é, uma daquelas operações que genèricamente se caracterizam pela circunstância de que com ela se trata de empregar os fundos obtidos com as operações passivas. Mas, o aspecto econômico induziu a equívoco os estudiosos não se levou, de fato, suficientemente em conta que também quando certas operações se devem destacar da prática, incumbe ao jurista estudar a natureza da relação em si e por si, sem ser ligado ao ponto de “vista econômico nem vinculado às expressões e meios usados pelas partes”.

16. Viu-se, acima, com FIORENTINO, que o desconto pode ser considerado, genèricamente, um empréstimo, o que não significa seja um mútuo. Também NAVARRINI, “Trattato Elementare”, vol. 1, nº 547, salienta: “prestito, dunque; ma di cui sono notevole alcune particularità”.

Estas particularidades afastam definitivamente o desconto do mútuo. Neste, não há transferência da propriedade. Dispõe o art. 1.256 do Cód. Civil que o mutuário é obrigado a restituir ao mutuante o que dêle recebeu em coisas do mesmo gênero, qualidade e quantidade. É certo que no desconto pode, eventualmente, surgir esta obrigação por fôrça da cláusula subentendida pro solvendo. Todavia esta cláusula não muda a natureza jurídica do negócio. Ela intervém por fôrça de outros princípios: o desaparecimento da causa, o enriquecimento ilícito.

17. Nosso direito não disciplina o desconto. O Cód. Comercial, art. 255, declara que os descontos se regulam pelas convenções das partes. Ora, o comerciante que leva ao Banco seus efeitos, para descontá-los, não pretende fazer um mútuo, senão a transferência definitiva do título, mediante pagamento de seu valor, menos o desconto. Contrato inominado, simples operação cambiária de endôsso, cessão, venda, alienação, ou, de modo geral, empréstimo, tudo isso pode ser o desconto, conforme a teoria melhor ou pior que se adote. Mútuo é que não pode ser, porque não há mútuo onde não existe a obrigação de restituir.

18. Mas, se o desconto não é mútuo, não está compreendido nas disposições da Lei da Usura e da que regula os crimes contra a economia popular. É, de fato, jurisprudência pacífica que o dec. número 22.626, de 7 de abril de 1933, só abrange os contratos de mútuo feneratício. Assim se firmou o Tribunal de Justiça de São Paulo (“Rev. dos Tribunais”, vols. 105, página 582; 110, pág. 174; 115, pág. 734; 113, pág. 732; 145, pág. 687). Assim se orientou o Supremo Tribunal Federal (“Arq. Judiciário”, vol. 76, pág. 145; “REVISTA FORENSE”, vol. 97, pág. 359, ac. de 9 de junho de 1943, magistralmente relatado pelo Sr. OROZIMBO NONATO).

19. O art. 2º do dec. nº 22.626, de 7 de abril de 1933, está em vigor, pois não foi revogado pelo dec. nº 182, de 5 de janeiro de 1938. Reza êsse artigo:

“É vedado, a pretexto de comissão, receber taxas maiores do que as permitidas por esta lei”.

Mesmo que o desconto fôsse mútuo e, portanto, regulado pelo dec. nº 22.626, êsse dispositivo só teria aplicação se houvesse simulação para fraudar a lei, cobrando-se, de fato, mais juros do que permitidos sob a veste de comissão. Mas, já ficou acima bem elucidado êsse ponto com a lição luminosa de ESCARRA (ns. 8 e 9).

Elucidado também ficou (nº 7) que a comissão faz parte da remuneração do banqueiro para compensar outros serviços, que necessàriamente decorrem do endôsso, sem qualquer ligação com o capital descontado.

20. Assim, não há como aplicar ao caso da consulta o dec. n° 22.626: desconto não é mútuo; e comissão, cobrada para atender aos serviços do Banco, não é acréscimo de juros. Resta indagar a lei que definiu os crimes contra a economia popular (dec.-lei nº 869, de 18 de novembro de 1938). Dispõe o art. 4° dêste diploma:

“Constitui crime da mesma natureza a usura pecuniária…, assim se considerando: cobrar juros superiores à taxa permitida por lei, ou comissão ou desconto, fixo ou percentual sôbre a quantia mutuada, além daquela taxa”.

Sôbre a quantia mutuada diz a lei: ora, já ficou elucidado até ao fastio que desconto não é mútuo. Logo, a cobrança de comissão, mesmo exagerada, não constitui o crime aí previsto. Muito menos constituirá a cobrança razoável e mínima, constante de uma tarifa impressa, uniforme e geral, destinada a cobrir despesas e serviços reais, e não a servir, como adicional de juros, mediante simulação, que se não presume.

21. Ficou, dessarte, ao que penso, bem justificada a resposta negativa que acima dei ao quesito. A cobrança da comissão, além dos juros, é lícita e a nenhuma pena ou nulidade expõe o consulente.

São Paulo, 15 de outubro de 1954. – Antão de Morais, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.

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