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Autonomia administrativa da Defensoria Pública e controle pelo Tribunal de Contas
Franklyn Roger
09/07/2020
Franklyn Roger Alves Silva e Diogo Esteves
Recentemente, o Tribunal de Contas da União ao apreciar o processo n. TC 012.967/2019-0, cujo acórdão foi relatado Ministro Bruno Dantas, julgou representação para avaliar possíveis incompatibilidades do regime de teletrabalho estabelecido pela Defensoria Pública da União, com as competências legais, o regime jurídico e as atribuições dos membros instituição, na forma da Resolução CSDPU n. 101/2014.
A citada Resolução disciplina a realização de atividades, tarefas e atribuições fora da unidade da Defensoria Pública da União, por meio de trabalho a distância nas seguintes hipóteses: 1 – para acompanhamento de cônjuge ou companheiro, também servidor público civil ou militar, removido no interesse da Administração Pública; 2 – por motivo de saúde do servidor, cônjuge, companheiro ou dependente, aferido por perícia médica oficial; 3 -para possibilitar curso de mestrado, doutorado ou pós-doutorado.
Uma das contrapartidas ao teletrabalho, estabelecidas no ato normativo do Conselho Superior da DPU, é a definição de medida compensatória, mediante aumento na distribuição ordinária de processos em fração não superior a 50% (cinquenta por cento) da distribuição original, consideradas as peculiaridades da unidade de lotação.
Ao analisar o tema, o Tribunal de Contas da União entendeu que a modalidade de trabalho remoto implantada pela Defensoria Pública da União desde 2014 desvirtuaria “a essencialidade da instituição”.
Apesar do quadro desenhado no acórdão, verifica-se que a corte de contas não realizou uma análise pormenorizada das funções institucionais e da autonomia administrativa da Defensoria Pública, além de inobservar a realidade tecnológica que bate as portas do sistema de justiça.
Assim, o objetivo do presente estudo é demonstrar que o regime de teletrabalho, realidade em diversos tribunais, encontra espaço no regime jurídico da Defensoria Pública, a partir da leitura dos arts. 3º e 4º da Lei Complementar n. 80/1994, diversamente do que foi concluído pelo TCU.
De início, é importante considerar a dúvida sobre a própria validade do controle exercido pelo Tribunal de Contas da União no caso em apreço. O art. 71 da Constituição Federal e a Lei n. 8.443/92 regulam as competências do Tribunal de Contas, pautadas no eixo de fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade.
A lei avança e traz uma série de competências também relacionadas à gestão de pessoal, mas não é possível extrair um fundamento de validade do controle das atividades funcionais das instituições públicas que detenham autonomia administrativa.
O voto do Ministro Bruno Dantas não analisa o regime jurídico da Defensoria Pública em toda sua extensão e esse talvez seja o maior equívoco do Tribunal de Contas da União no enfrentamento da temática aqui tratada; acreditar que a totalidade das funções desempenhadas pela Defensoria Pública exija presença do Defensor Público e atendimento ao público.
A decisão também não analisa o aspecto da autonomia administrativa da Defensoria Pública da União na sua organização, sequer mencionando essa importante característica institucional, o que também constitui omissão grave no julgamento.
É certo que a autonomia administrativa da Defensoria Púbica da União foi alcançada há poucos anos através da Emenda Constitucional n. 74/2013, cuja constitucionalidade permanece em debate no Supremo Tribunal Federal por conta de um açodamento da Presidente da República à época.
Essa autonomia, importante instrumento para a gestão adequada, permite à Defensoria Pública praticar, de maneira independente e livre da influência dos demais Poderes Estatais, atos próprios de gestão, tais como: adquirir bens e contratar serviços; estabelecer a lotação e a distribuição dos membros da carreira e dos servidores; compor os seus órgãos de administração superior e de atuação; elaborar suas folhas de pagamento e expedir os competentes demonstrativos; organizar os serviços auxiliares; praticar atos e decidir sobre situação funcional e administrativa do pessoal; elaborar seus regimentos internos; praticar atos gerais de gestão administrativa, financeira e de pessoal; etc.
Por força da autonomia administrativa outorgada pela EC nº 45/2004 e subjetivamente ampliada pelas ECs nº 69/2012 e nº 74/2013, resta vedada a vinculação da Defensoria Pública a qualquer outra estrutura do Estado, reafirmando-se sua posição como instituição extrapoder.
A jurisprudência tem sido criteriosa no exame da autonomia administrativa da Defensoria Pública e em algumas oportunidades já se manifestou pela impossibilidade de controle judicial na gestão da lotação de seus membros e criação de órgãos no âmbito da instituição.
Destacamos os casos do Rio Grande do Sul[1] e Bahia[2], onde sentenças que determinaram a instalação de órgão da Defensoria Pública foram cassadas pelos respectivos tribunais locais.
O Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade se de manifestar a respeito do tema, durante a Suspensão de Segurança nº 800/RS3. Considerando a quantidade elevada de ações semelhantes, possuindo como pretensão a designação de Defensores Públicos Federais em diversas seções e subseções judiciárias, e diante da notória escassez de recursos humanos nos quadros da Defensoria Pública da União, o então Ministro Presidente Ricardo Lewandowski determinou a suspensão de todas as liminares que ocasionassem intervenção na gestão administrativa da DPU (STF – Presidência – STA nº 800/RS – Decisão Monocrática Min. Ricardo Lewandowski, decisão: 05-08-2015).
Mais recentemente, o Superior Tribunal de Justiça também se manifestou sobre o tema, em julgamento proferido no âmbito do RMS 59.413-DF, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado pela Quinta Turma, reconhecendo a interferência indevida na autonomia administrativa da instituição.
Com as autonomias constitucionais da Defensoria Pública e sua transformação em uma instituição de caráter individual e coletivo pautada na atuação em favor da vulnerabilidade, verificam-se uma série de encargos conferidos à instituição que não dependam de atendimento frequente ao público, mas de um atuar estratégico em prol de interesses de envergadura difusa.
Em seu voto, o relator do acórdão afirma que da “extensa lista de funções da Defensoria Pública, aqui já colacionadas, constata-se que diversas delas exigem a presença física do membro, mormente a participação em audiências e o atendimento à população, o que, de pronto, indica a incompatibilidade entre o trabalho à distância dos Defensores e o fiel cumprimento das funções institucionais da Defensoria Pública”.
O surto da pandemia e as medidas de distanciamento social obrigaram todos os atores do sistema de justiça a reinventar os modos de atuação e de atendimento ao público, medidas estas também adotadas por diversas Defensorias Públicas, não só no Brasil como nos serviços de assistência jurídica do resto do mundo, conforme recente relatório produzido pelo Global Access to Justice Project4.
Ao mesmo tempo, se pensarmos que a Defensoria Pública da União não está implantada em 207 (duzentas e sete) das 271 (duzentas e setenta e uma) Seções Judiciárias da Justiça Federal em virtude da ausência de Defensores Públicos Federais suficientes na carreira, a organização de trabalho remoto pode permitir a criação de polos de atendimento que congregam diversas regiões e amplie os serviços da instituição.
Relembre-se que a Justiça Federal, no segundo grau de jurisdição, conta com apenas 5 (cinco) Tribunais Regionais Federais para todas as unidades federativas do Brasil, o que também indicaria a pertinência de trabalho remoto para otimizar o funcionamento da assistência jurídica dos Defensores Públicos de 1a Categoria (art. 21 da LC n. 80/94).
Apenas a título de exemplo, indicamos algumas funções institucionais, previstas no art. 4º da Lei Complementar n. 80/94, cuja realização de teletrabalho constituiria maior eficiência ao serviço, colocando em xeque a argumentação do TCU.
A função de representação perante os organismos internacionais (art. 4º, VI da LC n. 80/94) pode ser realizada por meio de teletrabalho e de emprego de medidas tecnológicas, representando verdadeira economia ao erário, ao se evitar deslocamentos para fora do país, por exemplo.
A atuação na tutela coletiva prevista nos incisos VII e VIII do art. 4º da LC n. 80/94 pode justificar a realização de teletrabalho ou a reorganização dos órgãos de atuação, especialmente para a elaboração de ações coletivas e outros instrumentos de atuação para a defesa dos direitos difusos, tarefa que exige trabalho preponderantemente intelectual.
A curadoria especial, uma função institucional prevista no art. 4º, XVI da LC n. 80/94 e no art. 72 do CPC, tradicionalmente desempenhada sem que haja atendimento presencial das partes, tendo em vista que o seu pressuposto de atuação é, exatamente, a ausência material em uma relação processual, pode ser realizada a distância.
As funções previstas no art. 4º, incisos IX (impetração de ações constitucionais em defesa das funções institucionais e prerrogativas) e XXI (execução e recebimento das verbas sucumbenciais) constituem atividades integralmente intelectuais sem que haja atendimento de partes, visto que se referem a interesses institucionais.
Em suma, o presente estudo poderia continuar elencando uma série de outras funções institucionais não só previstas na Lei Orgânica da Defensoria Pública, mas em diplomas legais negligenciados pelo Tribunal de Contas da União (Código de Processo Civil, Lei da Ação Pública, Lei do Mandado de Injunção, Lei de Execução Penal dentre outras).
Percebe-se que, diferentemente da conclusão alcançada no acórdão da corte de contas, o art. 4º da LC n. 80/94 possui funções institucionais que comportariam o atendimento por meio do teletrabalho. É certo que a preocupação trazida pelo relator, a respeito do desvirtuamento do perfil de atuação da Defensoria Pública é muito importante, mas ninguém melhor que o próprio administrador da Defensoria Pública, pautado na autonomia administrativa, para verificar se há prejuízo ao bom funcionamento institucional.
Importante rememorar que o atendimento ao público é uma realidade da Defensoria Pública e jamais será suprimido. O que se pretende demonstrar é que o perfil constitucional atribuído à Defensoria Pública também lhe garantiu um atuar estratégico, cujo exercício não depende do atendimento presencial pelo Defensor Público.
Ou até mesmo que a Defensoria Pública possa se organizar para que tenha portas de entrada de acesso ao público e divisão interna de trabalho para otimizar o seu funcionamento, tudo isso pautado na autonomia administrativa e no conhecimento do administrador que lida, diariamente, com o funcionamento da máquina de prestação de assistência jurídica.
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1 (TJRS – 21ª Câmara Cível – Apelação nº 0236374-70.2013.8.21.7000 – Relator Des. DES. FRANCISCO JOSÉ MOESCH, decisão: 28-08-2013)
2 (TJ/BA – Quinta Câmara Cível – Processo nº 0311949-16.2012.8.05.0000 – Relatora Des. Marcia Borges Faria, decisão: 02-04-2014)
3 Em sentido semelhante: “Na hipótese em apreço, a sentença impugnada impõe à Administração a efetivação de lotação de Defensor Público da União em Rio Grande/RS, atribuição que se encontra, em princípio, dentro do seu juízo discricionário de conveniência e oportunidade, interferindo, dessa forma, diretamente na destinação do limitado número de Defensores Públicos de que dispõe a União” (STF – Presidência – STA nº 183/RS – Decisão Monocrática Min. ELLEN GRACIE, decisão: 14-12-2007)
4 https://www.conjur.com.br/dl/maioria-paises-nao-facilita-acesso.pdf