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Assédio processual: o abusivo exercício do direito de demandar e o interesse processual
Zulmar Duarte
24/03/2022
A locução substantiva assédio processual etiqueta a situação na qual uma parte, a serviço de interesses menores, demanda para causar dano a outra parte.
É a própria relação jurídica processual, envolvendo a parte atingida como ré, com todas as incertezas, custos e incômodos daí decorrentes, que funciona como a causa eficiente dos danos.
O processo é utilizado para machucar e, em sua estrutura formalizada, no que coloca o réu sob ônus de responder, alcança o objetivo, principalmente quando acompanhado de ampla publicidade sobre sua própria existência. Mesmo porque, depois da improcedência, sempre permanecerá algo, como expressa a fórmula imortalizada por VOLTAIRE (“Mentez, mentez, quelque chose restera toujours”).
Além do mais, fazer parte de um processo, a mera condição de demandado, o estado de sujeição na relação jurídica processual, envolve comprometimento financeiro, físico, psíquico, sendo por vezes um exercício desmedido de paciência pelo tempo e esforço despendidos para demonstrar que o autor sem razão não tem razão.
Por vezes, ainda, esse autor, verdadeiro predador, utiliza de franquias constitucionais (artigo 5º, inciso LXXIII, da Constituição da República) ou infraconstitucionais (artigos 98 e seguintes do Código de Processo Civil – artigo 54 da lei 9.099, de 26 de setembro de 1995), para promover seu intento, razão por que sequer responderá, ao menos num primeiro momento, pelas despesas e honorários.
Obviamente, nem sempre é fácil identificar tais situações como abuso processual, na medida em que a visão de sacralidade do acesso à justiça ofusca tal análise, colocando-a em uma zona de penumbra, sendo que a dúvida milita em favor do trâmite processual.
Em contraponto – não se pode perder de perspectiva – o processo não é imune às práticas abusivas, asséptico às condutas emulatórias.
Assédio processual X extraprocessual
No campo extraprocessual o exercício abusivo do direito é tipificado pelo ordenamento jurídico e dele surge o dever de indenizar, como se verifica do artigo 187 do Código Civil (“Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”).[1]
Nesse contexto, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça condenou o autor a “reparar os danos de natureza extrapatrimonial que do ato ilícito de abuso processual decorrem.” (REsp 1817845/MS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, DJe 17/10/2019).
Por sua vez, no campo endoprocessual a reprimenda ao exercício do direito de ação abusivo – quando mais facilmente identificável – pode ocorrer a partir da aplicação das penas de litigância de má-fé e da indenização por perdas e danos (artigos 79, 80 e 81 do Código de Processo Civil); com maior rigor, quando envolvidas tutelas de urgência (artigo 302 do Código de Processo Civil).
Tais soluções, entretanto, virão ao cabo de largo trâmite processual, quando, muitas vezes, os fatores tempo e processo já causaram danos irremediáveis ao réu, pelo que o autor predador teria realizado seu objetivo, acertado o alvo (sempre permanecerá algo).
Todavia, uma adequada visão sobre o interesse processual permite o controle sobre a admissibilidade da demanda, interditando seu trâmite, na hipótese de ser atestada a ocorrência de abuso processual.[2]
Sem pretender reviver toda a temática envolvendo as condições da ação, e a filiação do Código a essa ou aquela teoria, considerando sua persistência no sistema[3], como deflui dos artigos 19, 330, 337, inciso XI, e 485, inciso VI, todos do Código de Processo Civil, viável sua utilização para o controle de admissibilidade da demanda.
As condições da ação como índices de viabilidade da análise do pedido formulado, considerando o que afirmado na inicial (in statu assertionis[4]) e o contexto que envolve sua apresentação, permitem o trancamento do exame da pretensão na perspectiva do abuso processual.
Mercê do raciocínio hipotético estruturado na inicial, em conjunto com a situação contextual em que inserida a pretensão, será analisada a existência de interesse processual, também na dimensão do exercício abusivo do direito de demandar.
Isso porque, desde sua matriz histórica, o interesse processual está ligado aos pressupostos da necessidade e da utilidade da tutela jurisdicional, como meios à obtenção de interesse legítimo, ainda que improcedente.[5]
Noutras palavras, o autor tem que afirmar a imprescindibilidade da jurisdição à tutela de um direito, bem como a sua utilidade, como faces do interesse processual, o que deve ser objeto de consideração por parte do juiz, inclusive para permitir o trânsito da demanda.
Nessa medida, possível que em tal exame o magistrado verifique a ocorrência do abuso processual no ato de demandar e impeça o trâmite processual, a par da ausência de interesse processual nas dimensões da necessidade e da utilidade.
Ora, se a demanda não se apresenta como efetivamente necessária, nem como objetivamente útil, mas sim homizia interesses menores direcionados ao ataque do réu, claro está a ausência do interesse processual.
Como anteposto, esse exame será realizado a partir do marco das afirmações do autor e, também, considerando o contexto processual de sua apresentação.
Não é rara, por exemplo, a propositura, por um único autor ou por diversos autores, de demandas temerárias contra o mesmo réu, muitas vezes em juízos diferentes, sobre uma miríade de alegações inverossímeis. Por vezes, esse tem sido o método deletério para cercear a liberdade de expressão ou em disputas políticas renhidas, para a desconstrução do adversário ou daquele que se opõe aos interesses de quem demanda, com repercussão na opinião publicada e, em especial, com ampla difusão nas redes sociais.[6]
Assim como o abuso do direito de defesa produz consequências processuais, pois justifica a concessão pelo magistrado da tutela de evidência (artigo 311 do Código de Processo Civil), o exercício abusivo do direito de demandar também as produz, pois impõe ao julgador a prolação de decisão sem resolução de mérito (artigos 330, 354 e 485 do Código de Processo Civil)[7].
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NOTAS
[1] A ideia já estava presente no próprio axioma latino enunciado por CÍCERO: “Summum ius, summa iniuria”, embora seja discutível que o abuso processual encontre sua formulação remota no direito romano. A base remota tem sido fixada na jurisprudência francesa a partir do Código Napoleônico e de seu artigo 1.382. Sobre o tema: ABDO, Helena Najjar. O Abuso do processo. São Paulo: RT, 2007. p. 28/29. SOUZA, Luiz Sérgio Fernandes de. O abuso de direito processual: uma teoria pragmática. São Paulo: RT, 2005. p. 19/25.
[2] Sobre o tema um dos autores do presente texto havia concluído no final do século passado: “As ações ajuizadas com abuso direito, fins subalternos ou ilícitos não produzirão um resultado útil da jurisdição, especialmente sob a óptica do Estado” (FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Condições da ação: enfoque sobre o interesse de agir no processo civil brasileiro. São Paulo: RT, 2000. p. 102).
[3] “Nada obstante, não vemos vantagem em reconduzir o interesse e a legitimidade à categoria dos pressupostos processuais, tampouco pensamos que o Código tenha realizado tal conjuminação (concordamos no ponto com CÂMARA, 2011. p. 261-269); (diversamente, DIDIER JR., 2014; DIDIER JR., 2011. p. 255-260; CUNHA, 2011. p. 227-235). Primeiro, porque o Código perseverou na prática de tratar as condições da ação em plano diverso dos pressupostos processuais, como topologicamente expressam os incisos IV e VI do art. 485. Depois, como já anteposto, as condições da ação têm ligação com a viabilidade da demanda, quid certamente diferente dos pressupostos processuais, relacionados exclusivamente com o processo enquanto processo (processo sobre o processo). Ainda que alguns pressupostos processuais tenham alguma ligação com a pretensão (por exemplo, a competência), tal nexo não se estabelece na perspectiva de (in)correção da pretensão de direito material predisposta à apreciação. Tanto que a falta de pressupostos processuais sempre estará confinada intramuros, no respectivo processo, enquanto a falta de uma condição da ação (por exemplo, legitimação ordinária), extravasa a situação deste ou daquele processo, repetindo-se em todos (salvo a ocorrência de legitimação superveniente), haja vista sua inegável vinculação com o mérito. Ademais, não se tem rendimento pragmático na inserção do interesse e a legitimidade no rol dos pressupostos processuais, sendo que, ao revés, dificulta-se e prejudica-se a perfeita compreensão de tais institutos. Mesmo porque, reina inegável indefinição quanto aos pressupostos processuais, haja vista que embainham diferentes espécies (natureza jurídica), cuja falta também implica consequências diversas. Bem observou Barbosa Moreira sobre os pressupostos processuais: “ter-se-ão boas razões para encarar com um grão de cepticismo a entronização de categoria jurídica tão heterogênea e de tão escassa coesão interna” (MOREIRA, 1989. p. 93). Talvez por isso ainda não se tenha realizado trabalho específico sobre o tema, para que possamos extrair as consequências integrais da teoria dos pressupostos processuais, como já advertia Dinamarco em notas ao livro de Liebman (LIEBMAN, 2005. v. I, p. 67). De resto, conquanto exista certa inclinação, não é unanimidade na doutrina alemã a inserção do interesse e da legitimidade nas condições da ação (SCHÖNKE, 2003. p. 118 e 218). Portanto, o interesse e a legitimidade no Código persistem como condições da ação, condicionando o exame do mérito com base em juízo exercido sobre a pretensão de direito material estratificada nos autos.” (GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte de Oliveira. Comentários ao Código se Processo Civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 49).
[4] WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. 2. ed. rev. e atual. Campinas: Bookseller, 1999. p. 80.
[5] “O interesse de agir decorre da necessidade de obter através do processo a proteção do interesse substancial; pressupõe, por isso, a assertiva de lesão desse interesse e a aptidão do provimento pedido a protegê-lo e satisfazê-lo. Seria uma inutilidade proceder ao exame do pedido para conceder (ou negar) o provimento postulado, quando na apresentação de fato apresentada não se encontrasse afirmada uma lesão ao direito ou interesse que se ostenta perante a parte contrária, ou quando os efeitos jurídicos que se esperam do provimento pedido, fosse em si mesmo inadequado ou inidôneo a remover a lesão, ou, finalmente, quando ele não pudesse ser proferido, porque não admitido pela lei. […]” (LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. Tradução e notas de Cândido Rangel Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984) (sublinhamos).
[6] Em clássico escrito que remonta aos anos 50 do século passado (“Il processo como giuoco”), CALAMANDREI já chamava a atenção para essas demandas em si predatórias: “E não há que esquecer uma figura típica, com a qual me tenho encontrado mais de uma vez: o emprego do processo como instrumento de concorrência desleal. Com o fim de arruinar a um concorrente, se coloca em cena contra ele uma causa clamorosa, lhe atribuindo alguma ação incorreta ou fraudulenta que sirva para colocá-lo em má situação perante sua clientela: ao final se perdera a causa, mas entretanto haverão falado dela os jornais, e a publicidade haverá chegado àquela suspeitosa categoria de consumidores aos quais ia destinada: e assim… quelque chose y restera” (CALAMANDREI, Piero. Direito processual civil: estudos sobre o processo civil. Tradução de Luiz Abezia e Sandra Drina Fernandez Barbery. Campinas: Bookseller, 1999. vol. 3, p. 233).
[7] Interessante discussão sobre um dos possíveis reflexos do abuso processual se dá no campo da competência para processamento de demandas, como tratado na ação direta de inconstitucionalidade n.o 7055, proposta pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), em trâmite no Supremo Tribunal Federal.