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As aparências e a partilha de bens
06/05/2024
Por aí, se diz e se rete: as aparências enganam. Sinceramente? Eis mais um daqueles pontos em que a sabedoria popular, expressada em ditos e máximas, mostra-se tola. A bem da precisão, as aparências podem enganar. Mas, sejamos realistas: as aparências podem afirmar, confessar, denunciar, expressar uma verdade. Calha que talvez seja mais comum aparências verdadeiras do que enganosas ou haveremos de concluir que a má aparência é, pelo contrário, atestado de virtude: quem aparenta ser desonesto na verdade é um santo homem. E mais não é preciso falar, sob pena de, um pouco adiante, sermos tragados pela filosofia, transitando pelos sítios da fenomenologia.
O que aparenta honestidade ou desonestidade podem ser expressões de realidade. A aparência, o fenômeno, presume-se ser até investigação e demonstração em contrário. Não sem razão, a fenomenologia (ela, novamente!) não se afirma como niilismo (redução de tudo ao nada: nihil, em latim), mas como postura crítica, como ponto de partida de investigações: do fenômeno ao ser: da aparência à essência. Insistimos: o que aparenta ser pode ser. Aliás, indo além, pode-se mesmo afirmar: o que aparenta ser tende a ser, presume-se ser. Se quiser ampliar o tratamento jurídico da questão, basta emendar: salvo prova em contrário. Se bem que, em muitos casos, a aparência não basta; é preciso haver prova da situação jurídica. Dever de provar, como na propriedade imóvel ou na condição de sócio em sociedade simples ou empresária. E esse dever nos remete essencialmente às situações de prova formal definida em lei, designadamente o registro público.
É preciso não perder isso de vista: as aparências tem extrema relevância jurídica, embora seja possível provar em sentido contrário, ou seja, que o que aparenta ser não é. E, ademais, há mesmo situações em que é dever provar o contrário. Se não está diante dessas situações excepcionais de prova ou dever de prova, prevalece o fenômeno: aquilo que se dá a conhecer, que é aceito por todos; noutra palavra, prevalecem as aparências. Inclusive como indício da prática de atos ilícitos. Exemplos? Claro! Em 2008, a Polícia Federal deflagou a chamada Operação Bicho Mineiro e a base de toda a investigação foram as aparências. Pessoas que, juridicamente, não tinham ativos suficientes para fazer frente a seu passivo (tributário, trabalhista etc), ostentavam uma vida de luxo: aparentavam ter, embora alegassem nada ter. Eram bens titularizados por laranjas, no Brasil e no exterior, dentro de um processo de blindagem patrimonial. E blindagem patrimonial é ato ilícito, tivemos ocasião de demonstrar. A opção colocada à disposição das partes é o planejamento jurídico por meio de atos lícitos: optar pela melhor estruturação usando caminhos legais. E foram as aparências, por igual, que orientaram outras tantas operações similares, como a Operação Rotterdam, Operação Monte Éden.
Aparências como como fator determinante da inversão do ônus probatório
Mas deixemos de lado as fraudes fiscais e respectivos tipos penais e passemos a nos ocupar das questões que sobre as quais nos debruçamos em Divórcio, Dissolução e Fraude na Partilha de Bens: simulações empresariais e societárias (Editora Atlas). Quem acompanha a questão das partilhas patrimoniais e o desafio da possibilidade de se praticarem fraudes para lesar a correta divisão dos haveres, precisa considerar a relevância jurídica das aparências como fator determinante da inversão do ônus probatório. Quem aparenta ter, mas alega que as aparências enganam, tem o dever jurídico de provar tal engano das aparências, ou seja, comprovar que a aparência de riqueza em desconexão com receita (encaixe), patrimônio ativo e passivo (dívidas contratadas), é regular. Exemplo: o carro de luxo e várias despesas pessoais altas decorrem de um programa de benefícios que a empresa oferece a todos que ocupam funções similares; diretorias, por exemplo. Aparências que enganam; não dizem respeito ao patrimônio pessoal e não alcançam o patrimônio comum; são benefícios transitórios que podem se extinguir a qualquer momento, finda a relação de emprego ou prestação de serviços. A mansão? Pertence aos pais que a emprestaram (comodato); gastos com roupas, restaurantes e bares, viagens? Pagos pelos pais, por uma tia, pelos avós. A regularidade patrimonial se prova.
Não se trata de um problema exclusivo da dissolução de vínculos afetivos (casamento e união estável) em regimes que impliquem a formação de patrimônio comum. Antes de bater reiteradamente as portas das varas de família, o desafio já era comum nas varas empresariais ou cíveis às quais se atribuía a competência para o desfazimento de sociedades despersonalizadas, anteriormente chamadas indevidamente de sociedades de fato: eram fatos jurídicos, aziendas comuns que se formavam apesar da opção pela não constituição de uma pessoa jurídica. Entre os músicos que tocam juntos (a orquestra, a banda, o duo ou trio ou quarteto ou quinteto etc) visando paga (cachê, couvert etc) há um contrato de sociedade que pode ser despersonalizado ou que pode ser formalizado numa sociedade, isto é, uma pessoa jurídica. Não há um dever de constituição de pessoa jurídica e, assim, de constituição de um patrimônio próprio (da pessoa jurídica), com respectiva escrituração contábil (artigo 1.179 do Código Civil), escorado em acervo documental que ateste a veracidade e conformidade dos lançamentos.
Código Civil: “Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.
Parágrafo único. A atividade pode restringir-se à realização de um ou mais negócios determinados.
[…]
Art. 985. A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma da lei, dos seus atos constitutivos (arts. 45 e 1.150).”
Afere-se assim a contribuição que o Direito Societário pode oferecer ao Direito de Família, como destacamos no livro e temos repetido nos artigos publicados neste blog do Gen Jurídico. Basta recordar algumas previsões, do mesmo Código Civil, para a sociedade em comum: “Art. 988. Os bens e dívidas sociais constituem patrimônio especial, do qual os sócios são titulares em comum.” E não há dever de manter escrituração contábil própria, embora seja necessário atentar para a disposição do “Art. 987: Os sócios, nas relações entre si ou com terceiros, somente por escrito podem provar a existência da sociedade, mas os terceiros podem prová-la de qualquer modo.” E não se deve esquecer que a sociedade em comum já constava do artigo 304 do Código Comercial de 1850, ou seja, que o tema da formação de um patrimônio comum, sem personalidade jurídica, já ocupa a atenção de teóricos e advogados de Direito Societário há muito. E isso inclui a eventualidade de atos fraudulentos, urdidos com a finalidade de macular uma partilha adequada dos haveres resultantes da dissolução do vínculo contratual.
Importância das aparências no processo de partilha
Voltemos ao tema central: qual importância têm as aparências dentro de um processo de partilha de um patrimônio comum? Antes de mais nada, elas são, até prova em contrário, uma afirmação do que se passa. É por isso que se convocam testemunhas para as demandas: para narrarem o que viram, o que sabem, de algo. Delas não se espera que enunciem a essência do que se passou, mas aparência que podem aferir: eu vi isso… eu ouvi aquilo… me pareceu que… A tradução da essência é um desafio que pode ter contornos filosóficos (o mito platônico da caverna) ou, até, místico. No fim das contas, é quase incontestável que vivemos num mundo de aparências: tomamos as coisas pelo que aparentam, embora seja possível que a realidade seja outra e, no Direito Penal, a legítima defesa putativa é um exemplo extremamente forte.
A aparência define um parâmetro, um ponto de partida ou, no mínimo, um contexto relevante. No plano da partilha, compõe um dos elementos de partida para a determinação do patrimônio comum. E, para tanto, teremos que ser repetitivos; é inevitável: reforça a compreensão do problema: o trabalho é diverso do que se passa nas sociedades simples e empresárias, onde há escrituração contábil obrigatória e formal (seguindo normas legais e regulamentares); nestas, é possível fazer um balanço (e auditar seus elementos) para, assim, determinar o que são, efetivamente, o patrimônio ativo e o patrimônio passivo, incluindo procedimentos de reavaliação de bens que podem ter experimentado valorização (não-raro como mero efeito do tempo, considerando seu lançamento escritural pelo valor histórico, valor de desenvolvimento etc.). É um trabalho técnico, complexo, mas que se realiza sobre bases concretas, reduzindo o espaço para estimativas e, mais do que isso, dificultando ocultamentos singelos. Exemplo: mesmo a movimentação com dinheiro em espécie precisa ser registrada. Se não é, deixa rastros e, assim, pode ser descoberta, apontada, quantificada.
Se não há tal certeza formal nos patrimônios comuns despersonificados e, mesmo, sem afetação jurídica com igual contabilidade formal e acervo probatório complementar, a necessidade de estimar se torna maior, principalmente em relação a elementos, como dinheiro em espécie, joias, obras de arte. Hábitos caros se tornam relevante: são a aparência de uma receita e ou caixa que, não sendo encontrado nos registros bancários, faz-se presumir omitido e pode, sim, ser estimado. Com facilidade encontram-se casos de cônjuges ou conviventes que mantêm atividades de renda oculta, formação de fundos ocultos (criptomoedas, ouro, moedas estrangeiras etc.). E nunca é demais recordar que, se os gastos não aderem à formação da azienda partilhável, a percepção de uma receita superior pode ter impacto direto na fixação do valor de pensionamento, especialmente em benefício de incapazes. De qualquer sorte, as aparências são uma referência importante. Um perito poderá aferir da evolução de gastos qual é o respectivo fluxo em espécie ou em vias camufladas (a exemplo de cartões e contas em nome de terceiros; sim: laranjas!) para, assim, traduzir o seu impacto sobre o montante global que dever ser considerado para a partilha. Não se busca uma fotografia, mas uma película: um filme em que a sucessão dos fotogramas, das cenas, traduz um enredo (vedados os motes surrealistas, por razões óbvias). E isso com a contribuição de peritos assistentes e os argumentos (e direito aos recursos) pelos advogados das partes, ou seja, isso com respeito ao princípio do contraditório.
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