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A reforma do Código Civil – Fim do regime da separação obrigatória de bens
Flávio Tartuce
09/02/2024
Iniciado o ano de 2024, o tema de maior debate do Direito Civil Brasileiro da atualidade, sem dúvida alguma, diz respeito à Reforma do Código Civil. Como destaquei no meu último texto publicado neste canal, em 24 de agosto de 2023 o Presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, nomeou e formou uma Comissão de Juristas para empreender os trabalhos de atualização e de reforma do Código Civil Brasileiro de 2002.
Essa comissão tem a presidência do Ministro Luis Felipe Salomão e a vice-presidência do Ministro Marco Aurélio Bellizze, ambos do Superior Tribunal de Justiça, cabendo a mim a Relatoria Geral, ao lado da Professora Rosa Maria Andrade Nery. O prazo para o desenvolvimento dos trabalhos é de cento e oitenta dias, com a possibilidade de eventual prorrogação.
Foram formados nove grupos de trabalho, de acordo com os livros respectivos do Código Civil e com a necessidade de inclusão de um capítulo específico sobre o Direito Digital. As composições das subcomissões, com os respectivos sub-relatores, foram as seguintes: a) Parte Geral – Professor Rodrigo Mudrovitsch (relator), Ministro João Otávio de Noronha, Professora Estela Aranha e Juiz Rogério Marrone Castro Sampaio; b) Direito das Obrigações – Professor José Fernando Simão (relator) e Professor Edvaldo Brito; c) Responsabilidade Civil – Professor Nelson Rosenvald (relator), Ministra Maria Isabel Gallotti e Juíza Patrícia Carrijo; d) Direito dos Contratos – Professor Carlos Eduardo Elias de Oliveira (relator), Professora Angelica Carlini, Professora Claudia Lima Marques e Professor Carlos Eduardo Pianovski; e) Direito das Coisas – Desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo (relator), Professor Carlos Vieira Fernandes, Professora Maria Cristina Santiago e Desembargador Marcelo Milagres; f) Direito de Família – Juiz Pablo Stolze Gagliano (relator), Ministro Marco Buzzi, Desembargadora Maria Berenice Dias e Professor Rolf Madaleno; g) Direito das Sucessões – Professor Mario Luiz Delgado (relator), Ministro Cesar Asfor Rocha, Professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Professor Gustavo Tepedino; h) Direito Digital – Professora Laura Porto (relatora), Professora Laura Mendes e Professor Ricardo Campos; i) Direito de Empresa – Professora Paula Andrea Forgioni (relatora), Professor Marcus Vinicius Furtado Coêlho, Professor Flavio Galdino, Desembargador Moacyr Lobato e Juiz Daniel Carnio. Importante destacar que desde o início dos nossos trabalhos temos contado com o enorme apoio dos servidores do Senado Federal, Lenita Cunha e Silva, Leandro Augusto de Araújo Cunha Teixeira Bueno e Gabriel Udelsmann.
Foram realizadas, em 2023, três audiências públicas, em São Paulo (OABSP, em 23 de outubro), Porto Alegre (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em 20 de novembro) e Salvador (Tribunal de Justiça da Bahia, em 7 de dezembro). Além da exposição de especialistas e dos profundos debates ocorridos nesses eventos, foram realizados outros eventos privados em 2023 e muitos já estão agendados para este início de 2024. Vale repetir, a demonstrar o espírito democrático dos trabalhos, que foram abertos canais para envio de sugestões pelo Senado Federal e oficiados mais de quinhentos institutos jurídicos, e muitos enviaram suas importantes contribuições.
Em dezembro de 2023 foram consolidados os textos dos dispositivos sugeridos por cada um dos grupos de trabalho, com cerca de 1.800 páginas, e enviados para a revisão dos relatores gerais, que neste momento preparam os textos para consolidação e votação, que ocorrerão em abril de 2024. Foram também nomeados quatro consultores para auxiliar nos nossos próximos trabalhos, os Professores Ana Cláudia Scalquette, Layla Abdo Ribeiro de Andrada, Maurício Bunazar e Vicente de Paula Ataíde Junior. Ainda em dezembro foi incluído mais um membro na comissão, o Professor Dierle José Coelho Nunes, para o grupo de trabalho sobre Direito Digital.
Está prevista outra audiência pública para o mês de fevereiro de 2024, a quarta delas, no Senado Federal, com a participação do Ministro da Suprema Corte Argentina Ricardo Luis Lorenzetti, presidente do grupo de trabalho que elaborou o Novo Código Argentino, de 2014, tido como um verdadeiro Supercódigo, pela amplitude dos temas que trata. Por certo, ainda há um longo caminho a percorrer, sem falar nos debates das propostas que ocorrerão no Parlamento Brasileiro.
De todo modo, apesar de termos meras propostas para debates, ainda longe de um anteprojeto, procurarei trazer em meus textos deste ano de 2024 a exposição de algumas sugestões que possivelmente devem prosperar ao final, tendo em vista os trabalhos empreendidos até aqui, o perfil da Comissão de Juristas e os debates que permearam os assuntos nos últimos vinte anos, seja na doutrina ou na jurisprudência.
Fim do regime da separação legal ou obrigatória de bens
Pois bem, uma das inovações que possivelmente será proposta ao final, estando na pauta das Comissões de Direito de Família, de Direito das Sucessões e de Direito Contratual, é o fim do regime da separação legal ou obrigatória de bens, previsto, atualmente, no art. 1.641 do Código Civil. Nos termos desse comando, o regime é imposto aos cônjuges em três situações: a) nos casos de pessoas que contraírem o casamento com a inobservância de suas causas suspensivas (art. 1.523 do CC); b) no caso da pessoa maior de 70 anos, tendo sido essa idade alterada dos originais 60 anos, por força da Lei n. 12.344/2010; e c) nos casos de todos os que dependerem de suprimento judicial para casar, por exemplo, as pessoas com idade entre 16 e 18 anos.
Em relação ao seu inciso II, sempre foi forte a corrente doutrinária que sustenta a sua inconstitucionalidade, por trazer situação discriminatória ao idoso, tratando-o como incapaz para o casamento. Tem-se afirmado que tal previsão não visa a proteger o idoso, mas seus herdeiros, tendo feição estritamente patrimonialista, na contramão da tendência do Direito Privado contemporâneo, de proteger a pessoa humana.
Reconhecendo doutrinariamente essa inconstitucionalidade, o Enunciado n. 125 da I Jornada de Direito Civil trouxe como proposta, já no ano de 2003, a revogação do comando. Foram as suas justificativas:
“A norma que torna obrigatório o regime da separação absoluta de bens em razão da idade dos nubentes (qualquer que seja ela) é manifestamente inconstitucional, malferindo o princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República, inscrito no pórtico da Carta Magna (art. 1.º, inc. III, da CF/1988). Isso porque introduz um preconceito quanto às pessoas idosas que, somente pelo fato de ultrapassarem determinado patamar etário, passam a gozar da presunção absoluta de incapacidade para alguns atos, como contrair matrimônio pelo regime de bens que melhor consultar seus interesses”.
Ainda no âmbito da doutrina, vários autores defendem a inconstitucionalidade da previsão, caso de Maria Berenice Dias, de Pablo Stolze Gagliano e de Rolf Madaleno, que compõem a subcomissão de Direito de Família na Comissão de Juristas. Também sustento essa inconstitucionalidade em meus livros e artigos sobre o tema.
Jurisprudência
Na jurisprudência, dois acórdãos sempre são citados, com a mesma conclusão, um do Rio Grande do Sul e outro de São Paulo, pela eminência de seus relatores (TJRS, Apelação 70004348769, 7.ª Câmara Cível, Rel. Maria Berenice Dias, j. 27.03.2003; e TJSP, Apelação Cível 007.512-4/2-00, 2.ª Câmara de Direito Privado Rel. Des. Cézar Peluso, j. 18.08.1998). Ademais, tem-se afirmado que o aumento da idade para os 70 anos, conforme a Lei n. 12.344/2010, não afastou o problema, mantendo-se integralmente a tese de inconstitucionalidade.
Dois projetos de leis anteriores, do mesmo modo, já propunham a revogação da norma. O primeiro era o Estatuto das Famílias, então proposto pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). O segundo, no Senado Federal, o Projeto de Lei n. 209/2006, de autoria do Senador José Maranhão, estava amparado no parecer da Professora Silmara Juny Chinellato, Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Em outubro de 2022, o Supremo Tribunal Federal reconheceu repercussão geral a respeito da afirmação de inconstitucionalidade desse art. 1.641, inc. II, do Código Civil. Isso se deu nos autos do Agravo no Recurso Extraordinário 1.309.642/SP, com a Relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso (Tema 1.236). Foram realizadas as audiências com oitiva das partes e dos amigos da Corte em 2023, e o início do julgamento do tema está marcado para a volta do recesso, em fevereiro de 2024.
Em verdade, enorme será a contribuição do Supremo Tribunal Federal para a Reforma do Código Civil se reconhecer essa inconstitucionalidade, da mesma forma como se deu a respeito do tema do fim da separação judicial (Tema n. 1.053), julgado no ano passado.
Além do citado problema de inconstitucionalidade, a verdade é que o regime da separação obrigatória de bens, em todos os incisos do art. 1.641 do vigente Código Civil, revelou-se absolutamente anacrônico, excessivamente limitador da liberdade, distante da realidade contemporânea e só gerou problemas nos últimos anos, além de uma desnecessária e excessiva judicialização.
Súmula n. 377 do Supremo Tribunal Federal
Um dos problemas iniciais enfrentados disse respeito à permanência ou não da Súmula n. 377 do Supremo Tribunal Federal, que remonta à década de 1960, e que prevê a comunicação dos bens havidos durante o casamento nesse regime. Muito se debateu, no âmbito da doutrina e da jurisprudência, se essa sumular deveria ser aplicada na vigência da codificação privada de 2002, vencendo a corrente que respondia positivamente.
Definida por doutrina e por jurisprudência a permanência da sumular no ordenamento jurídico, seguiram-se debates sobre os bens que se comunicam, com prova ou não do esforço comum. Sucessivamente, discutiu-se, novamente na doutrina e na jurisprudência, por anos a fio e com muito afinco, a sua incidência ou não para a união estável, e novamente com quais limites. Ao final, em 2022, surgiu a Súmula n. 655 do Superior Tribunal de Justiça, in verbis: “aplica-se à união estável contraída por septuagenário o regime da separação obrigatória de bens, comunicando-se os adquiridos na constância, quando comprovado o esforço comum”.
Nos últimos anos, destaco ainda o surgimento da tese de afastamento da Súmula n. 377 por convenção dos consortes, incentivada pelo saudoso Mestre Zeno Veloso, afirmação que acabou por ser adotada em julgamento do Superior Tribunal de Justiça: “no casamento ou na união estável regidos pelo regime da separação obrigatória de bens, é possível que os nubentes/companheiros, em exercício da autonomia privada, estipulando o que melhor lhes aprouver em relação aos bens futuros, pactuem cláusula mais protetiva ao regime legal, com o afastamento da Súmula n. 377 do STF, impedindo a comunhão dos aquestos” (STJ, REsp 1.922.347/PR, 4.ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 07.12.2021, DJe de 01.2.2022).
Com o devido respeito, debates técnicos profundos, desnecessários em muitos casos, e com questões técnicas complicadas até para os mais experientes juristas, nunca se justificaram, ainda mais quando distantes da realidade e da compreensão pela sociedade.
Assim, por bem, pelo menos no meu entendimento, a subcomissão de Direito de Família, além de outras interessantes propostas para o tema de regime de bens, resolveu propor a revogação do art. 1.641 do Código Civil no todo. Vejamos as suas justificativas:
“O Direito Patrimonial também teve especial assento na sugestão da Subcomissão, com destaque para uma diagnose diferencial mais clara e assertiva entre os pactos, seja conjugal (casamento), seja convivencial (união estável), prestigiando-se, com isso, a autonomia privada nas relações de família: ‘A primeira alteração procedida no âmbito dos regimes de bens e dos pactos conjugais ou convivenciais foi a de estender seus efeitos jurídicos tanto ao instituto do casamento como ao da união estável e permitir que os pactos conjugais e/ou convivenciais possam ser estipulados tanto antes como depois do casamento ou da instituição da união estável, permitindo, destarte, que, depois da celebração do casamento ou da constituição de uma união estável, se faça possível a alteração do regime de bens, mediante escritura pública pós-conjugal ou convivencial, sem a intervenção judicial, mas cujos efeitos nunca serão retroativos (ex tunc), sempre ex nunc, sem retornar ao passado, mesmo no caso da mudança para o regime da comunhão universal, ressalvados sempre os direitos de terceiros’ (trecho de justificativa).
O Estado precisava dar mais espaço à vontade de quem pretende autodeterminar o seu próprio destino. Suprimiu-se todo o confuso regramento do regime de participação final nos aquestos, bem como a injustificada, senão inconstitucional, separação obrigatória de bens”.
Ainda de acordo com a subcomissão de Direito de Família, “foi proposta a revogação de todo o artigo 1.641, com consequente ajuste redacional no art. 1.654. Com a revogação, o instituto da separação obrigatória de bens em razão da idade ou da pseudoconfusão de bens por não haver sido feito a partilha ou o inventário de um relacionamento anterior, deixa de existir em nosso sistema. A normatização revogada discrimina as pessoas no tocante à sua capacidade de discernimento, apenas porque septuagenários, assim como é incoerente impor um regime obrigatório de separação de bens por supor que pudessem ser confundidos os bens da relação afetiva anterior com o novo relacionamento conjugal ou convivencial, sabido que toda classe de bens goza de fácil comprovação quanto à sua aquisição, quer se tratem de imóveis, móveis, semoventes, automóveis, depósitos e aplicações financeiras, constituições de sociedades empresárias etc.”. Como se pode perceber, portanto, a ideia não é só revogar o inciso II do art. 1.641, mas todo o dispositivo, o que conta com o meu apoio, já manifestado nas citadas audiências públicas, com os fins de destravar o Direito Civil, expressão que tenho utilizado com frequência.
Exatamente na mesma linha posicionou-se a subcomissão de Direito das Sucessões, sobretudo porque retirou do art. 1.829 a menção ao regime da separação obrigatória de bens, com os fins de excluir a concorrência sucessória do cônjuge – e do companheiro – com os descendentes. Na redação projetada, o dispositivo passaria a ter a seguinte redação: “a sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge ou com o companheiro sobrevivente, salvo no regime de separação de bens; II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge ou com o companheiro sobrevivente, salvo no regime de separação de bens; III – ao cônjuge ou ao companheiro sobrevivente; IV – aos colaterais até o quarto grau”. A separação de bens mencionada é a convencional, decorrente de pacto antenupcial ou contrato de convivência, a única que persistirá no sistema. Também se almeja incluir um novo parágrafo único no preceito, prevendo que nos casos de concorrência sucessória, como na comunhão parcial de bens, “a concorrência do cônjuge ou companheiro com descendentes ou ascendentes recairá somente sobre os bens comuns”. Pressinto que a nova redação desse art. 1.829 será um dos principais temas de debates da Comissão de Juristas na votação que ocorrerá em abril.
Por fim, também houve a retirada do regime da separação obrigatória de bens pela subcomissão de Direito Contratual. Isso se deu, principalmente, no tratamento da venda de ascendente para descendente. Na atual redação do art. 496 do Código Civil, está previsto que é anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido. O parágrafo único do comando estabelece que, “em ambos os casos, dispensa-se o consentimento do cônjuge se o regime de bens for o da separação obrigatória”. Com o novo texto sugerido, sem prejuízo de outros aperfeiçoamentos necessários, o caput do preceito passaria a prever que “é anulável a venda de ascendente a descendente quando o preço for inferior ao valor de mercado do bem, salvo se os outros descendentes e o cônjuge ou companheiro do alienante expressamente houverem consentido”. Em continuidade, o seu novo § 1.º estabeleceria o consentimento do cônjuge ou do companheiro se o regime de bens for o da separação, mais uma vez prevista apenas aquela de origem convencional.
Espera-se, portanto, que essa proposta de modificação do sistema civilístico, retirando-se do Código Civil a separação obrigatória de bens, seja adotada pela Comissão de Juristas e, sucessivamente, pelo Parlamento Brasileiro. Não há, no meu entender, mais qualquer justificativa para essa indesejada limitação da autonomia privada dos cônjuges e dos companheiros, que só gerou profundos e graves problemas nos últimos anos.
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