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A Facultatividade do Regime de Separação de Bens para Pessoas septuagenárias no Brasil Análise da Decisão do STF

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A Facultatividade do Regime de Separação de Bens para Pessoas septuagenárias no Brasil: Análise da Decisão do STF

Rubem Valente

Rubem Valente

02/07/2024

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que tornou facultativo o regime de separação de bens para casamentos e uniões estáveis de pessoas acima de 70 anos, representa uma mudança paradigmática na ordem jurídica brasileira. Historicamente, o Código Civil impôs a obrigatoriedade desse regime com o objetivo de proteger os idosos de possíveis abusos financeiros.1 No entanto, essa imposição, de constitucionalidade duvidosa, há muito tem sido criticada por restringir a autonomia das pessoas idosas.

Evolução histórica do regime de separação de bens no Brasil

O regime de separação de bens para pessoas idosas foi introduzido com a intenção de proteger um grupo vulnerável contra possíveis abusos patrimoniais. Contudo, essa proteção legal, embora bem-intencionada, desconsiderava a capacidade de autodeterminação dos indivíduos idosos. Sobre a questão em lide, a doutrina assevera (TARTUCE, 2024, p. 138):

“O inciso II do art. 1.641 do CC visa, supostamente, à tutela do idoso, potencial vítima de um golpe do baú, em geral praticado por pessoa mais jovem, com más intenções. De qualquer forma, até para sustentar a tese de inconstitucionalidade a seguir demonstrada, parece-me que a norma tende a proteger não o idoso, mas os interesses patrimoniais dos seus herdeiros, que, muitas vezes à espreita, esperam a morte do familiar e o recebimento do acervo patrimonial. De imediato, insta notar que o casamento, para o idoso, não trará prejuízos afetivos, mas vantagens, ainda mais se contraído com pessoa mais jovem.”

O artigo 1.641, inciso II, do Código Civil brasileiro estabelece que o regime de separação de bens é obrigatório para pessoas acima de 70 anos. Essa disposição legal foi pensada para evitar casamentos por interesse financeiro, porém, como visto anteriormente, a obrigatoriedade dessa norma tem sido objeto de debates quanto à sua compatibilidade com os princípios constitucionais.2

A autodeterminação é um princípio fundamental que assegura aos indivíduos a liberdade de tomar decisões sobre sua própria vida. Para os idosos, esse direito é crucial, pois reconhece sua capacidade de gerir seus próprios interesses e patrimônio. De mais a mais, verifica-se que o aludido dispositivo legal entra em rota de colisão com o Estatuto da Pessoa Idosa – Lei 10.741/2003. Nesta linha de intelecção, desde há muito a doutrina critica o aludido dispositivo legal (GAGLIANO & PAMPLONA, 2011, p. 325): “o que notamos é uma violência escancarada ao princípio da isonomia, por conta do estabelecimento de uma velada forma de interdição parcial do idoso”.

Dessa forma, vislumbra-se uma dupla inconstitucionalidade sobre a norma em questão, tanto sob o viés da violação da igualdade diante da possibilidade de qualquer adulto capaz poder se casar; quanto pelo etarismo.

Jurisprudência relevante sobre o tema

Diversas decisões judiciais têm abordado a questão da obrigatoriedade do regime da separação de bens para idosos, com algumas reconhecendo a necessidade de flexibilizar a regra para respeitar a vontade e a autonomia dos indivíduos3. Parte respeitável da doutrina posicionava-se no sentido da inconstitucionalidade do aludido dispositivo legal, conforme o Enunciado n. 125 do CJF/STJ, que propõe a revogação da norma:

“a norma que torna obrigatório o regime da separação absoluta de bens em razão da idade dos nubentes (qualquer que seja ela) é manifestamente inconstitucional, malferindo o princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República, inscrito no pórtico da Carta Magna (art. 1.º, inc. III, da CF). Isso porque introduz um preconceito quanto às pessoas idosas que, somente pelo fato de ultrapassarem determinado patamar etário, passam a gozar da presunção absoluta de incapacidade para alguns atos, como contrair matrimônio pelo regime de bens que melhor consultar seus interesses”.

A decisão do STF em análise representa um marco nessa linha jurisprudencial. A decisão (Tema 1.236) do STF, fixou a seguinte tese de repercussão geral: “Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no artigo 1.641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes mediante escritura pública”.Com a decisão do plenário do STF, a obrigatoriedade do regime de separação de bens para pessoas acima de 70 anos deixa de existir, tornando-se facultativa a regra que, antes, era obrigatória. O STF realizou, portanto, uma interpretação conforme a constituição do artigo 1.641, II, do CCB. Esta sábia decisão equilibra a proteção dos idosos com a garantia de seus direitos de autodeterminação.

De outro lado, a imposição do regime da separação obrigatória de bens é evidenciada como mais uma intromissão indesejada do Estado na vida privada e familiar; tal imposição denuncia, também, um patrimonialismo exagerado, que não está em sintonia com o Direito Civil Contemporâneo, que visa a tutela primordial da dignidade humana. Embora a mudança possa gerar incertezas jurídicas, inicialmente, a longo prazo, espera-se que contribua para uma maior justiça e respeito às vontades individuais, sem comprometer a segurança jurídica.

Implicações para os casamentos e uniões estáveis de pessoas idosas

Diante de tudo quanto exposto anteriormente, verifica-se que, após a aludida decisão do STF, quem vier a casar ou constituir uma união estável ou mesmo quem já casou ou constituiu uma união estável com 70 anos ou mais, tem agora a possibilidade de lavrar uma escritura pública de alteração do regime legal, no caso de união estável, ou mediante autorização judicial na hipótese de casamento, elegendo regime de bens de sua livre escolha. Isso porque o STF modulou os efeitos da aludida decisão e conferiu eficácia prospectiva ao julgado (efeito ex nunc).

Nesse sentido, conclui-se que a partir da decisão em comento, o septuagenário que vier a casar ou constituir união estável pode optar, por meio de pacto antenupcial ou escritura pública, respectivamente, o regime de bens. Vale frisar que tal escolha não poderá ser realizada por meio de instrumento particular. Por outro lado, aquelas pessoas que já casaram ou constituíram uniões estáveis, antes desta decisão, sob a égide do Código Civil em vigor, ou mesmo, sob a influência do Código Civil de 1916 podem optar, de agora em diante, pela alteração do regime de bens escolhido. No caso dos casados, com fundamento no art. 1639, §2º, pode-se alterar o regime de bens por meio de decisão judicial enquanto os companheiros podem servir-se da escritura pública para alterar o regime. Sobre esta antinomia valorativa, a doutrina autorizada sobre o tema tece pertinentes críticas (MADALENO, 2024, p. 77):

(…) não comungo desta discriminação das pessoas casadas precisarem pedir autorização judicial e os conviventes simplesmente mandarem lavrar escritura pública, não sendo por outra razão que a Comissão de Revisão do Código Civil adotou como sugestão de mudança a completa desjudicialização das alterações dos regimes de bens entre casados e conviventes, sendo que a alteração do regime só produzirá efeitos ex nunc, ou seja, para o futuro.”

Verificam-se, portanto, efeitos colaterais acerca da decisão em comento que precisam ser saneados.

Conclusão

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de tornar facultativo o regime de separação de bens para casamentos e uniões estáveis de pessoas acima de 70 anos representa um avanço significativo na proteção dos direitos de autodeterminação e dignidade dos idosos. Esta mudança reflete um entendimento mais moderno e humanizado das relações conjugais e patrimoniais, reconhecendo que a imposição automática de um regime específico de bens com base na idade é incompatível com os princípios constitucionais de igualdade e liberdade individual.

A análise da decisão do STF revela uma jurisprudência que valoriza a autonomia dos indivíduos e a necessidade de adaptar a legislação às realidades sociais e às necessidades específicas das pessoas idosas. A flexibilização do regime de bens permite que os septuagenários possam escolher, de maneira consciente e informada, o regime que melhor atende aos seus interesses, evitando, assim, uma tutela excessiva e desnecessária do Estado sobre suas decisões pessoais e patrimoniais.

Contudo, a implementação prática dessa decisão requer atenção para possíveis efeitos colaterais e desafios, especialmente no que diz respeito à harmonização com outras disposições legais e à garantia de que todos os envolvidos compreendam plenamente suas implicações. Assegurar que os idosos tenham acesso a informações claras e apoio jurídico adequado será crucial para que essa mudança normativa alcance seus objetivos de promover a justiça e o respeito à dignidade humana. Em suma, a facultatividade do regime de separação de bens para pessoas acima de 70 anos é uma medida que contribui para um Direito Civil mais inclusivo e respeitoso dos direitos individuais, alinhado com os valores de uma sociedade democrática, pluralista e com intervenção mínima do estado nas relações privadas.

Referências

BRASIL. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm?ref=blog.suitebras.com. Acesso em: 21.jun. 2024

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 1236. ARE 1309642 RG, Relator: Min. Roberto Barroso, publicado em 02 abril 2024. Disponível em: http://www.stf.jus.br . Acesso em: 21 jun. 2024.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 2011. v. VI. Direito de Família.

MADALENO, Rolf. Direito de Família. 14ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024.

TARTUCE, Flávio. Direito civil. Direito de Família. 19ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024. v. 5.

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NOTAS

1 Código Civil Brasileiro, Art. 1.641: “É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: (…) II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; (Redação dada pela Lei nº 12.344, de 2010).

2 Relator do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1309642, com repercussão geral, o ministro Luís Roberto Barroso afirmou que a obrigatoriedade da separação de bens impede, apenas em função da idade, que pessoas capazes para praticar atos da vida civil, ou seja, em pleno gozo de suas faculdades mentais, definam qual o regime de casamento ou união estável mais adequado. Ele destacou que a discriminação por idade, entre outras, é expressamente proibida pela Constituição Federal (artigo 3°, inciso IV).

3 O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu pela inconstitucionalidade da previsão do art. 1.641, II, do CC em vigor, por esta trazer violação à dignidade da pessoa humana (TJRS, Apelação 70004348769, 7.ª Câmara Cível, Rel. Maria Berenice Dias, j. 27.03.2003, votação por maioria).

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