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A descoberta não é uma ficção jurídica!

Nelson Rosenvald

Nelson Rosenvald

04/11/2015

Gauguin

Parece ficção e daria um ótimo enredo. Desde 1975, um quadro atribuído a Paul Gauguin (Fruits sur une table/1869) e outro de Pierre Bonnard (La femme aux deux fauteuils/1909) permaneceram pendurados na cozinha de um funcionário da Fiat de Turim, que adquiriu ambas as pinturas em um leilão por míseras 45.000 liras (cerca de 23 euros atualmente), sem saber sua verdadeira autoria nem que haviam sido roubadas da casa de colecionistas de Londres, cinco anos antes. Segundo a reconstrução efetuada pela polícia italiana, os ladrões transladaram as obras de arte a Paris, onde tomaram um trem com destino a Turim, mas algo deve ter acontecido na fronteira com a Itália –talvez um controle policial— que lhes fez desaparecer, abandonando o saque. Os empregados da companhia italiana de Trens do Estado encontraram as telas e, ao desconhecer seu grande valor, deixaram-nas durante um tempo no departamento de objetos perdidos. Como não foram reclamados por ninguém, acabaram leiloados. Ninguém se deu conta, até então, de que se tratava de autênticas obras de arte, apesar de que ambas estavam catalogadas e se sabia que estavam perdidas. O único que apreciou a beleza das obras do pós-impressionismo francês —que representam cestos de frutas e uma jovem sentada em uma cadeira de vime— foi o trabalhador da Fiat, que de boa-fé fez a oferta e levou o lote por uma bagatela, jamais imaginando que as obras valem aproximadamente 35 milhões de Euros!

La femme aux deux fauteuils

O homem pregou os quadros na parede da cozinha em Turim e depois na Sicília, onde foi morar ao se aposentar, lá restando as preciosidades por 40 anos. Em 2013, um filho do proprietário —estudante de arquitetura— descobriu que uma das obras se assemelhava muito a de um catálogo de Gauguin. Começou a investigar até que a notícia, através dos especialistas consultados, chegou aos ouvidos dos agentes dos Carabinieri encarregados da tutela de Bens Culturais. Os pesquisadores comprovaram que, efetivamente, se tratava de um Gauguin e um Bonnard roubados em 1970 da casa de um casal de colecionistas de arte de sobrenome Marks e Kennedy, que os adquiriram em um leilão em 28 de junho de 1961. Alguns jornais ingleses da época informaram sobre o roubo dos dois quadros de uma casa do bairro londrino de Regent’s Park. As autoridades italianas entraram em contato com as britânicas para averiguar se Marks e Kennedy, já falecidos, deixaram herdeiros, porém, a resposta foi negativa. Não havia ninguém para reclamar pelos quadros…

Como consequência, após um imbróglio jurídico, o aposentado italiano foi considerado proprietário das duas pinturas. Cautelosamente, solicitou anonimato e planeja vender o quadro de Gauguin para desfrutar da lua de mel que nunca proporcionou a sua esposa, além de viabilizar um futuro confortável para os filhos e netos. Porém, ele garantiu que manterá consigo a obra de Bonnard, digna de grande valor sentimental.

Como seria o desfecho dessa aventura pelo Código Civil Brasileiro? Aqui, temos o modelo jurídico da descoberta, que consiste no fato jurídico de alguém encontrar coisa alheia perdida. Trata-se de um achado de coisas que temporariamente estão fora do alcance físico do dono. A descoberta gera para o descobridor uma obrigação consistente em entregar a coisa que saiu da esfera de proteção do titular. Em tese, a descoberta gera um direito de recompensa em favor do inventor, o famoso achádego (terror dos universitários, assim como outros termos privatistas tais como cabecel, censuário, compáscuo…), cujo piso mínimo será 5% do valor do bem. Ocorre, que quem encontrou os quadros foram os empregados da ferroviária, sem saber se os bens haviam sido perdidos, abandonados ou furtados. Caso o proprietário reivindicasse a coisa para si, os funcionários não fariam jus à recompensa, pois, pelo dever de ofício ínsito às suas funções, incumbia-lhes restituir as coisas achadas. Aliás, nessas circunstâncias, sequer seriam possuidores dos objetos, mas detentores em nome alheio. Conforme a lei civil, os quadros seriam remetidos ao juízo competente. Depositados os bens, deveriam ser publicados editais a fim de que o proprietário reclamasse a titularidade sobre eles. Caso ninguém se apresentasse no prazo de 60 dias, o bem seria vendido em hasta pública (art. 1.237, CC). No affair ítalo-britânico, o casal originariamente proprietário dos quadros havia falecido sem que existissem herdeiros aptos a exercer a pretensão de recuperação da coisa móvel.

Ocorre que não há norma específica que acautele o adquirente de boa-fé nos casos em que – tal como o sucedido na Itália – o bem tenha sido encontrado, mas aquele que fora originariamente privado da coisa não possa ou não queira recuperá-la. Não se aplicam as normas sobre a evicção (art. 447, CC), apenas incidentes nos casos em que o adquirente arremata bens de um devedor ou garante, em sequência a uma execução. Ante a essa lacuna, resta-nos apenas aplicar o princípio da boa-fé objetiva, em sua função de controle (art. 187, CC), para restituir os quadros ao adquirente que atuou conforme o modelo de retidão. Aquele que comprou bens confiante na seriedade do leilão público não pode posteriormente ser deles privado justamente pelo Estado, que transmitiu-lhe a legítima expectativa de confiança quanto à idoneidade de todo o procedimento que culminou com a arrematação dos quadros. A proibição do venire contra factum proprium impede que sucessivos comportamentos contraditórios acarretem um abuso do direito e causem danos patrimoniais e extrapatrimoniais em face de quem agiu conforme os padrões civilizatórios de honestidade, exigidos de qualquer cidadão nas mesmas condições socioculturais do feliz aposentado da FIAT.

Infelizmente, uma aventura tão fascinante tem os seus dias contados. A teor do § 2º, do art. 746 do CPC/15, quando a coisa alheia perdida for remetida ao magistrado, ele “mandará publicar edital na rede mundial de computadores” para que o dono ou o legítimo possuidor a reclame. Na internet o mundo é plano e instantâneo e qualquer proprietário saberá onde se encontram os bens achados por outrem. Não haverá mais oportunidade para que essas improváveis narrativas sejam construídas. Ganha a segurança jurídica, perde o acaso, que segundo Balzac, ”é o maior romancista do mundo”.


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