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A decisão do STF sobre o regime da separação obrigatória de bens e os caminhos possíveis da reforma do CC

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A decisão do STF sobre o regime da separação obrigatória de bens e os caminhos possíveis da reforma do CC

Flávio Tartuce

Flávio Tartuce

22/03/2024

Como desenvolvido no meu último texto publicado por este canal, pendia no Supremo Tribunal Federal o julgamento a respeito da inconstitucionalidade do art. 1.641, inc. II, do Código Civil, que impõe o regime da separação obrigatória de bens para a pessoa maior de setenta anos (STF, Agravo no Recurso Extraordinário n. 1.309.642/SP, com a Relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso ? Tema 1.236).

Em 1º de fevereiro deste ano de 2024, logo na volta das atividades da Corte após o recesso, a questão acabou por ser julgada, concluindo o Tribunal e de forma unânime que o regime da separação obrigatória de bens nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoas com mais de setenta anos pode ser alterado pela vontade das partes, pelo exercício da autonomia privada, desde que seja feito por escritura pública, a ser lavrada no Tabelionato de Notas.

De forma totalmente surpreendente, portanto, em afirmação não defendida por qualquer doutrinador de que se tenha notícia ou por qualquer Tribunal Brasileiro, inclusive no Superior Tribunal de Justiça, o Supremo Tribunal Federal inaugurou a tese segundo a qual o art. 1.641, inc. II, do Código Civil é norma dispositiva ou de ordem privada ? e não norma cogente ou de ordem pública, como antes se sustentava de forma unânime ?, podendo ser afastada por convenção entre as partes.

Apesar da afirmação dos Ministros, quando do julgamento, no sentido de que manter essa obrigatoriedade da separação obrigatória de bens desrespeitaria o direito de autodeterminação das pessoas idosas, a verdade é que não se declarou inconstitucional o preceito, como parte considerável da doutrina entendia, fazendo com que a norma continue em plena vigência no ordenamento jurídico brasileiro. Com o devido respeito ? aos julgadores e aos que cantaram vitória com o decisum, em prol da liberdade ?, entendo que, por continuar a ser a regra geral no nosso sistema civil, a vontade das pessoas idosas continua sendo aviltada.

Escritura pública

Ademais, a única possibilidade de se afastar a previsão extrajudicialmente é pela escritura pública, lavrada em Tabelionato de Notas, o que está na contramão da tendência de redução das burocracias para os atos existenciais familiares, percebida, por exemplo, com a entrada em vigor da lei 14.382/2022, conhecida como Lei do SERP (Sistema Eletrônico de Registros Públicos). Sem falar que, pelos seus custos, a escritura pública não é acessível para grande parte da população.

A Corte também entendeu que, além da opção da escritura pública, as pessoas acima dos setenta anos que sejam casadas ou vivam em união estável até a data do julgamento podem alterar o regime de bens por meio de uma ação judicial, nos termos do art. 1.639, § 2º, do Código Civil e do art. 734 do Código de Processo Civil, e, em todos os casos, a alteração produzirá efeitos patrimoniais apenas para o futuro, ou seja, efeitos ex nunc e não ex tunc.

Nesse contexto, para os casamentos e uniões estáveis firmados antes do julgamento, as partes podem manifestar imediatamente ? perante o juiz ou o Tabelião ? a sua vontade de mudança para outro regime, caso da comunhão parcial, por exemplo, que é o adotado pela grande maioria da população brasileira.

Modulação dos efeitos da decisão

Quanto à modulação dos efeitos da decisão, julgou-se que, em respeito à segurança jurídica, ela somente passa a valer para os casos futuros, sem afetar os processos de herança ou divisão de bens que já estejam em andamento. Foi incluída na decisão do Ministro Relator a seguinte ressalva: “a presente decisão tem efeitos prospectivos, não afetando as situações jurídicas já definitivamente constituídas”.

Ao final, a tese de repercussão geral fixada para o Tema n. 1.236, para os fins de atingir todos os processos judiciais em curso e os futuros, de todas as instâncias, e até eventual mudança da lei, foi a seguinte: “nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no artigo 1.641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes mediante escritura pública”.

Pois bem, como já adiantei, trata-se de uma conclusão inédita, não encontrada nas páginas da doutrina e em outros julgados, porque até aqui se afirmou que a separação do maior de setenta anos era totalmente obrigatória, sem a possibilidade de convenção em contrário, por ser o art. 1.641, inc. II, do Código Civil norma cogente ou de ordem pública.

Separação obrigatória entende-se algo peremptório

Como separação obrigatória entende-se algo peremptório, que não admite escolhas, que não oferece opções para as partes, que não aceita outros caminhos de planejamento ou convenção pelos consortes ou conviventes, excluindo totalmente o exercício da autonomia privada. O que o Supremo Tribunal Federal passou a dizer é que não se tem mais, no caso do art. 1.641, inc. II, do Código Civil, uma separação realmente obrigatória, pois, muito além da possibilidade de se alterar o regime de bens por meio de uma ação judicial, as partes podem afastar o regime e escolher outro por meio de uma escritura pública.

Não se pode negar, portanto, que a separação de bens do maior de setenta anos deixou de ser uma separação obrigatória. Passou a ser uma separação legal, mas obrigatória não é mais, uma vez que as partes podem convencionar em sentido contrário, afastando a previsão. Sendo assim, passamos a ter no sistema civilístico duas separações legais: a obrigatória ? prevista nos incisos I e III do art. 1.641 do Código Civil; e a não obrigatória ? que está no inciso II do mesmo dispositivo, para os maiores de setenta anos.

Além disso, temos agora dois regimes legais ou supletivos, na ausência de previsão em sentido contrário em pacto antenupcial ou contrato de convivência, e com a possibilidade de serem afastados por escritura pública. Para as pessoas em geral, esse regime é o da comunhão parcial de bens, como está no art. 1.640 do Código Civil ? para o casamento ?, e no art. 1.725 do Código Civil ? para a união estável. Para as pessoas maiores de setenta anos, o regime que vale como regra geral é a separação legal de bens, na linha do que foi definido pelo Supremo Tribunal Federal, em seu julgamento. A existência de dois regimes legais confirma a minha afirmação de contínuo aviltamento à vontade dos maiores de setenta anos.

Alterações na realidade jurídica

Parece-me que a nova decisão, portanto, altera a nossa realidade jurídica a respeito do tema, devendo a matéria ser repensada pelas Cortes Brasileiras pela doutrina, em dois aspectos principais que trago para debate, sem prejuízo de outros que poderão surgir no futuro.

O primeiro deles diz respeito à Súmula n. 377 do Supremo Tribunal Federal, que remonta ao ano de 1963 e segundo a qual, “no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”. Como se sabe, na interpretação que hoje predomina no Superior Tribunal de Justiça, a sumular somente tem incidência para a divisão dos bens havidos pelo esforço comum, tendo decidido a sua Segunda Seção que, “no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento, desde que comprovado o esforço comum para sua aquisição” (STJ, EREsp 1.623.858/MG, relator Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador convocado do TRF 5ª Região), Segunda Seção, DJe 30/05/2018). O próprio Tribunal da Cidadania ampliou a aplicação da ementa para a união estável, também com a necessidade dessa comprovação do esforço, editando a sua Súmula n. 655: “aplica-se à união estável contraída por septuagenário o regime da separação obrigatória de bens, comunicando-se os adquiridos na constância, quando comprovado o esforço comum”.

Ora, o que sempre fundamentou a permanência da Súmula n. 377 do Supremo Tribunal Federal no sistema após a entrada em vigor do Código Civil de 2002 foi a conclusão de se tratar de uma separação obrigatória, peremptória, regida por norma cogente ou de ordem pública, sem a possibilidade de se estabelecer o contrário. Foi justamente por isso, e pela vedação do enriquecimento sem causa, que me alinhei aos doutrinadores que defenderam a permanência da sumular no nosso ordenamento jurídico, o que gerou as decisões posteriores do Tribunal da Cidadania.

Com a decisão do STF em estudo, esse pilar do sistema é alterado. Isso porque, se há a possibilidade de as partes com idade superior a setenta anos preverem ou convencionarem o contrário da separação de bens, escolhendo outro regime, ou alterarem o regime judicialmente, não há que se falar mais em aplicação da sumular, pois ela era justificada pela falta de opções de outros caminhos de escolha aos cônjuges ou conviventes. Se essa posição não prevalecer na jurisprudência, é preciso, ao menos, que as Cortes Brasileiras, especialmente o STJ, debatam e digam se isso foi alterado ou não.

Em outras palavras, é preciso que o Tribunal da Cidadania analise se houve ou não a superação do seu entendimento anterior pacificado, o chamado overruling, nos termos da parte final do art. 489, §1º, inc. VI, do Código de Processo Civil, segundo o qual “não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: (…) deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”. Para tanto, a propósito, o próprio Tribunal poderá realizar audiências públicas com a oitiva de especialistas sobre a temática, como está no art. 927, § 2º, do próprio Estatuto Processual: “a alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese”.

Ora, se o quadro fático e jurídico que criou e consolidou o sistema anterior de precedentes e a jurisprudência a respeito da temática ? com a aplicação da Súmula n. 377 do STF, o julgamento do EREsp 1.623.858/MG pelo STJ e a sua Súmula n. 655 ?, foram alterados com a nova decisão da Corte Suprema com o que foi prolatado no Tema 1.236, é mais do que necessário rever as balizas anteriores e discutir novamente o assunto, a fim de se manter a jurisprudência estável, íntegra e coerente, como impõe o art. 926 do Código de Processo Civil.

Reitero que a jurisprudência brasileira, sobretudo do Superior Tribunal de Justiça, precisa dizer novamente se a Súmula n. 377 ainda é aplicável, mesmo com a possibilidade de afastamento do regime de separação por escritura pública ou por uma ação judicial de mudança do regime de bens.

A outra questão de relevo diz respeito à sucessão hereditária, sobretudo quanto à concorrência dos descendentes com o cônjuge ou convivente do falecido. Como está previsto no art. 1.829 do Código Civil? na correta leitura após a decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil (Temas n. 498 e 809) ?, a sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: aos descendentes, em concorrência com o cônjuge ou convivente sobrevivente, salvo se casado este ou se viver em união estável com o falecido, “no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares”.

Como se pode notar, é afastada a concorrência sucessória dos descendentes com o cônjuge ou convivente do de cujus no “regime da separação obrigatória de bens”. Porém, como defendi neste texto, não há mais uma autêntica separação obrigatória no caso do inciso II do art. 1.641, pois os cônjuges ou conviventes podem convencionar em sentido contrário, o que traz a conclusão pela concorrência em casos tais, assim como se dá na separação convencional de bens e como restou decidido pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ, REsp 1.382.170/SP, relator Ministro Moura Ribeiro, relator para acórdão Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Seção, julgado em 22/04/2015, DJe 26/05/2015).

Sendo assim, entendo que esse tema também deverá ser revisto pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, como sustentei a respeito da Súmula n. 377 e a superação de entendimento, sobretudo porque não havia essa opção de convencionar ao contrário antes do novo julgamento do Supremo Tribunal Federal. Como se retira de outro acórdão do Tribunal da Cidadania, na contramão da nova decisão em estudo, “o que não se mostra possível é a vulneração dos ditames do regime restritivo e protetivo, seja afastando a incidência do regime da separação obrigatória, seja adotando pacto que o torne regime mais ampliativo e comunitário em relação aos bens” (STJ, REsp 1.922.347/PR, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 07/12/2021, DJe de 01/02/2022). Ou, ainda, entre os acórdãos mais remotos: “a norma do art. 258, parágrafo único, II, do Código Civil, possui caráter cogente. É nulo e ineficaz o pacto antenupcial firmado por mulher com mais de cinquenta anos, estabelecendo como regime de bens o da comunhão universal” (STJ, REsp 102.059/SP, relator Ministro Barros Monteiro, Quarta Turma, julgado em 28/05/2002, DJ de 23/09/2002, p. 366). Os dois julgados do Tribunal da Cidadania, como se pode notar, colidem frontalmente com a tese final exarada no julgamento do Tema n. 1.236, a demonstrar a discordância dos dois Tribunais Superiores a respeito da temática, a confirmar a necessidade de se rediscutir a temática.

Como outro aspecto fundamental que gostaria de trazer para debate para a civilística, e com o devido respeito ao que está sendo fixado pelo STF quanto à modulação de efeitos, penso que a nova tese não atingir os processos de inventário ainda em curso, e com partilha ainda não encerrada, representa uma situação de total injustiça e de verdadeira afronta à estabilidade e à segurança. Isso porque, na linha dos últimos julgados colacionados, os cônjuges e conviventes viviam em um sistema em que não havia a opção de se convencionar o contrário ao regime de separação obrigatória. Dito de outra forma, não havia qualquer opção de planejamento familiar e sucessório, ao contrário do que está sendo afirmado agora pela Corte Suprema ? de forma inédita, reitere-se. Se tivessem antes essa opção, muitos cônjuges e conviventes a teriam adotado, não podendo agora ser prejudicados.

Entendo, nesse contexto, que a ressalva no sentido de que “a presente decisão tem efeitos prospectivos, não afetando as situações jurídicas já definitivamente constituídas” não tem o condão de atingir os processos em curso com partilhas ainda não efetivadas, pois as situações jurídicas não estão definitivamente constituídas nessas hipóteses. Lembro, a propósito, que, no próprio julgamento da inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, o caminho adotado foi o de que o novo entendimento deve ser aplicado aos inventários judiciais em que a sentença de partilha não tenha transitado em julgado e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública. Penso que a solução deve ser a mesma para o Tema n. 1.236, o que ainda pode ser reavaliado pela própria Corte Suprema.

Como última observação, não se pode negar que a nova decisão do Supremo Tribunal Federal intensifica e traz mais desafios para a proposta de Reforma do Código Civil, ora em discussão. Como destaquei em meu texto anterior, as subcomissões de Direito de Família, de Direito Contratual e de Direito das Sucessões nomeadas no âmbito do Senado Federal sugeriram o fim do regime da separação obrigatória de bens. Sem dúvidas que seria mais fácil para o nosso trabalho que a separação obrigatória do maior de setenta anos tivesse sido retirada do sistema por julgamento do STF, assim como ocorreu com a separação judicial (Tema n. 1.053).

De todo modo, não tendo sido esse o caminho adotado, a Relatoria Geral, formada por mim e pela Professora Rosa Maria de Andrade Nery, pretende levar para os debates finais duas propostas para votação pela Comissão de Juristas.

A primeira delas, adotada por mim e seguindo as citadas subcomissões, é de retirada da separação obrigatória do sistema, em todas as hipóteses, fazendo com que as questões relativas a fraudes sejam resolvidas pelos institutos da Teoria Geral do Direito Civil, e de acordo com as peculiaridades do caso concreto, sem sacrificar a vontade de todas as pessoas com idade superior a setenta anos. É mantida e até ampliada, ademais, a hipoteca legal em favor dos filhos, sobre os imóveis do pai ou da mãe que passar a outras núpcias ou estabelecer união estável, antes de fazer o inventário do casal anterior (art. 1.489, inc. II, do Código Civil).

A segunda proposta, da Professora Rosa Nery, é no sentido de retirar a imposição do regime da separação obrigatória de bens para a pessoa com idade superior aos setenta anos, mantendo-se apenas para as atuais previsões do art. 1.641, incs. I e III, presente uma causa suspensiva do casamento e nos caso de pessoas que dependem de suprimento judicial para se casar. Inclui-se ainda um novo art. 1.641-A na codificação privada, prevendo que “é vedado o regime da comunhão universal de bens no casamento ou na união estável para os maiores de 80 anos, que tenham herdeiros necessários”.

Caberá, ao final, à Comissão de Juristas, nas votações que ocorrerão em abril, decidir qual a melhor solução. Sucessivamente, caberá ao Parlamento Brasileiro, dentro do regime democrático, adotar um desses caminhos ? ou mesmo um outro ?, sendo certo que a temática representa um dos maiores desafios do Direito de Família e do Direito das Sucessões na atualidade, não tendo encontrado a necessária estabilidade nos vinte anos de vigência do Código Civil de 2002.

Fonte: Migalhas

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