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ADI 7.795, créditos de carbono e princípio do poluidor (e emissor) pagador

Ingo Wolfgang Sarlet
20/08/2025
É conhecida a controvérsia posta na ADI 7.795/DF, relatoria do ministro Flávio Dino, onde se discute a constitucionalidade formal e material do artigo 56, caput e parágrafo único da Lei 15.042/2024 (Lei do Mercado de Carbono ou Lei do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa — SBCE), em sua redação original e na atual, conferida pela Lei 15.076/2024. O dispositivo em questão possui o seguinte teor:
O Dispositivo Contestado e sua Redação
“Art. 56. Em atendimento ao disposto no art. 84 do Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de 1966, as sociedades seguradoras, as entidades abertas de previdência complementar, as sociedades de capitalização e os resseguradores locais deverão, para cumprimento das diretrizes previstas no inciso V do caput do art. 2º do regulamento anexo à Resolução do Conselho Monetário Nacional nº 4.993, de 24 de março de 2022, e na modalidade referida no inciso V do caput do art. 7º do mesmo regulamento, adquirir, até o limite previsto na mencionada Resolução ou em norma que vier a substituí-la, mas observado o mínimo de 0,5% (meio por cento) ao ano dos recursos de suas reservas técnicas e das provisões, os ativos ambientais previstos no inciso VII do caput do art. 2º desta Lei ou cotas de fundos de investimentos dos referidos ativos ambientais. (Redação dada pela Lei 15.076/2024)
Parágrafo único. As sociedades seguradoras e demais entidades a que se refere o caput deste artigo deverão cumprir todas as obrigações previstas em lei e nas demais normas aplicáveis. (Redação dada pela Lei 15.076/2024)” (grifos meus)
O Princípio do Poluidor-Pagador na ADI 7.795/DF
Dentre as diversas teses sustentadas na ADI, no âmbito da qual tive a ocasião de exarar parecer jurídico, encontra-se a violação, pela legislação referida, do princípio do poluidor/emissor pagador. A despeito de a Lei 15.042/2024 ter avançado significativamente na consolidação do regime jurídico de proteção climática no Brasil, o teor do dispositivo contestado é sem dúvida problemático.
Note-se que de acordo com o § 1º do artigo 1º do diploma legal referido “esta lei aplica-se às atividades, às fontes e às instalações localizadas no território nacional que emitam ou possam emitir gases de efeito estufa (GEE), sob responsabilidade de operadores, pessoas físicas ou jurídicas, observado o previsto neste artigo”. (grifos meus)
O conceito de atividade, para fins da Lei 15.042/2024, reforça esse entendimento, ao prever, no artigo 2º, § 2°. I, o que segue: “atividade: qualquer ação, processo de transformação ou operação que emita ou possa emitir GEE”. As entidades arroladas no artigo 56, no entanto, s.m.j., não empreendem atividades que se enquadram como atividadesemissoras de gases de efeito estufa, na medida em que as suas emissões de GEE são inexpressivas.
Assim, a previsão do artigo 56 cria encargos e responsabilidades ambientais e climáticas de forma absolutamente artificial e descola da realidade das atividades econômicas que visa regular, não correspondendo a um suporte fático legítimo.
Certo é que o maior rigor legislativo deve ser proporcional à lesividade ou risco de lesividade inerente à atividade empreendida pelos agentes econômicos, de modo a guardar coerência e compatibilidade com o regime e os princípios consagrados pela CF/1988, entre os quais, do desenvolvimento sustentável e do poluidor-pagador. Dada a limitação de espaço, a ênfase aqui será dada ao último.
O Princípio do Poluidor-Pagador e Suas Implicações
A utilização de recursos naturais, no ciclo de produção de bens e serviços, enseja a geração de externalidades negativas, notadamente por meio da poluição e degradação dos recursos naturais, conforme apontado anteriormente. O princípio do poluidor-pagador, como contraponto a tal situação, objetiva “internalizar” nas práticas produtivas (em última instância, no preço dos produtos e serviços) os custos ecológicos, evitando-se que eles sejam suportados de modo indiscriminado (e, portanto, injusto) por toda a sociedade e, em particular, por determinados indivíduos e grupos sociais. [1]
A poluição atmosférica é um dos exemplos mais antigos (ex. chuva ácida) de externalidade, o que, no contexto da crise climática atual e em vista da emissão de gases do efeito estufa. A versão climática do princípio do poluidor-pagador toma a forma do princípio do emissor-pagador, como reportado previamente, com o escopo de responsabilizar o emissor de GEE e promover a internalização dos custos climáticos — ex. aquecimento global, episódios climáticos extremos (secas, incêndios florestais, enchentes etc.) etc. — derivados da sua atividade produtiva.
O princípio do poluidor-pagador consagra tanto uma dimensão preventiva, a fim de internalizar previamente as externalidades, quanto uma dimensão reparatória, notadamente na hipótese de a atividade não haver internalizado satisfatoriamente os custos sociais e ambientais, o que se verifica, por exemplo, na hipótese de ocorrência de um desastre ambiental ou climático.
Na linha do que afirmam, Aragão e Leme Machado, o princípio do poluidor-pagador opera não apenas de modo sancionatório, ao atribuir responsabilidades, mas também corretivo [2] e prognóstico, aliando-se aos princípios da prevenção e da precaução, com o propósito de evitar a ocorrência futura de danos e da poluição ambiental (e climática), com o propósito de direcionar agentes públicos e privados a adotar práticas e tecnologias limpas (ex. fontes alternativas de energia) ou não poluidoras.
O regime jurídico de proteção climática, por sua vez, reconhece o princípio do poluidor-pagador como um dos seus princípios orientadores, com o objetivo e internalizar as “externalidades climáticas” (ex. emissão de GEE, desmatamento florestal etc.) e atribuir as devidas responsabilidades (administrativa, civil e criminal) aos agentes públicos e privados poluidores climáticos.
A Necessidade de Responsabilidade Coerente
A mensagem central é a identificação dos agentes econômicos e das atividades por eles empreendidas que impactam negativamente o meio ambiente e o sistema climático e, com isso, fazer com que se responsabilizem, fazendo recair sobre eles (e não outros agentes econômicos!) os encargos ambientais e climáticos da poluição produzida, na medida que são eles (e não outros!) que se beneficiam economicamente da referida atividade econômica poluidora (seja ela qual for).
Os créditos de carbono podem ser compreendidos como um mecanismo de compensação pelas emissões de GEE geradas por determinados agentes econômicos. O princípio do poluidor-pagador, por essa ótica, tem por objetivo precípuo atribuir a responsabilidade pela prevenção e pela reparação do dano causado ao meio ambiente (e ao regime climático) àqueles agentes que empreendem, direta ou indiretamente, a atividade poluidora, e não a outros agentes econômicos de forma indistinta, devendo, portanto, guardar necessariamente correlação com a fonte poluidora (ex. emissora de GEE).
A Inconstitucionalidade do Artigo 56 da Lei 15.076/2024
Percebe-se, portanto, o quanto a análise do princípio do poluidor-pagador é elementar para a compreensão da (in)constitucionalidade do artigo 56 da Lei 15.076/2024, tendo em vista os destinatários da norma inscrita no dispositivo: sociedades seguradoras, as entidades abertas de previdência complementar, as sociedades de capitalização e os resseguradores. Como é fácil apreender, dada a natureza das atividades que empreendem, as entidades listadas não se enquadram naquilo que se pode denominar de “poluidores climáticos”. As entidades, pelo contrário, empreendem em setor econômico de baixa (ou nenhuma) emissão de carbono.
O principal alvo do regime jurídico de proteção climática deve ser o das atividades econômicas responsáveis de modo significativo, direta ou indiretamente, pela emissão de gases do efeito estufa, como se verifica nos setores econômicos associados à queima de combustíveis fósseis, desmatamento florestal etc. As atividades arroladas no artigo 56, no entanto, não se enquadram nessa descrição.
Os deveres jurídicos de mitigação climática — ex. a aquisição dos créditos de carbono concretiza tais deveres por meio da compensação das emissões — devem recair prioritariamente (e para atender ao princípio da proporcionalidade) sobre os emissores de quantidades significativas de GEE. O artigo 56, por outro lado, faz o inverso disso, porquanto subverte o teor do princípio do poluidor-pagador, ao onerar, de forma abusiva e desproporcional, agentes econômicos cuja atividade não guarda relação com emissões significativas de GEE.
O princípio da correção na fonte, como corolário dos princípios do poluidor-pagador e da prevenção [3], reflete justamente a ideia de que a intervenção do Estado e do legislador, em particular, deve concentrar-se nas fontes emissoras de poluição ambiental (ex. fontes emissoras de GEE). No caso da legislação climática, como é o caso da Lei 15.076/2024, a sua incidência deve circunscrever-se àquelas atividades econômicas poluidoras climáticas, ou seja, responsáveis por emissões significativas de GEE. A compulsoriedade na aquisição de créditos de carbono deve ser imposta a elas, não a agentes econômicos que, pela natureza da atividade que empreendem, como no caso das empresas que atuam no setor securitário e de previdência complementar, não emitem quantidades significativas de GEE.
Como se pode deduzir das razões articuladas, o conteúdo do artigo 56 antagoniza com as premissas básicas e racionalidade do regime jurídico de proteção climática do qual a Lei 15.076/2024 faz parte. Exigir compensação de emissão de GEE — por meio da aquisição compulsória de ativos ambientais previstos no inciso VII do caput do artigo 2º do diploma ou cotas de fundos de investimentos dos referidos ativos ambientais — de agentes econômicos ou atividades que não têm nada, ou muito pouco, a compensar inverte a lógica do princípio do poluidor-pagador. É o emissor de GEE que deve pagar, não outros agentes econômicos.
Na prática, o que se verifica é que o artigo 56 da Lei 15.042/2024 promove uma “terceirização” de responsabilidades de forma arbitrária e sem respaldo na legislação ambiental, deslocando o ônus climático para setor econômico não emissor de GEE, ao invés de, pela lógica do princípio do poluidor-pagador, responsabilizar os setores que emitem quantidades expressivas de GEE.
Reitere-se, à guisa de conclusão, que a Lei 15.042/24 em termos gerais representa um passo significativo dado pelo Congresso no que diz respeito ao combate das mudanças climáticas, o que não afasta a existência de inconsistências que desafiam a problematização e um juízo crítico, que é precisamente o que nos motivou também neste espaço privilegiado desta ConJur a adiantar algumas considerações sobre a matéria.
- Execução penal, falta grave e proporcionalidade: por uma melhor equação
- O STF e a proteção dos dados pessoais
- O início do julgamento da ADI 5.728/DF e a (in)constitucionalidade da EC 96/2017 (Vaquejada)
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[1] A respeito das externalidades negativas e o seu decorrente custo social, pelo prisma ecológico, v. NUSDEO, Fábio. Desenvolvimento e ecologia…, p. 52.
[2] MACHADO; ARAGÃO, Princípios do direito ambiental…, p. 77.
[3] MACHADO; ARAGÃO, Princípios do direito ambiental…, p. 108.