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O STF e a proteção dos animais: o caso da ADI 7.704
Ingo Wolfgang Sarlet
13/09/2024
O tema da proteção jurídico-constitucional dos animais, como é sabido, tem frequentado recorrentemente a pauta do STF, e tudo indica que assim o seguirá sendo. A última decisão do Supremo Tribunal Federal é recente, mais precisamente no último dia 22 de agosto, tendo sido proferida, em sede de medida cautelar, pelo ministro Flávio Dino, no bojo da ADI 7.704, que suspendeu trechos da Lei 17.972/2024, do estado de São Paulo, que impõem a criadores profissionais de gatos e cães a castração cirúrgica dos filhotes antes dos quatro meses de idade, ademais de proibir a venda ou entrega de filhotes não esterilizados e fixar um conjunto de obrigações a todos os criadores.
Para as entidades autoras da ação direta, a lei paulista invadiu a competência da União e do Ministério da Agricultura e Pecuária para regular a atividade profissional da criação de cães e gatos, bem como a competência de dispor sobre a proteção, a saúde e o bem-estar na criação e na comercialização dos animais, não tendo, além disso, previsto um prazo mínimo razoável para viabilizar a necessária adaptação às novas regras.
Além disso, os autores sustentam que os dispositivos legais são incompatíveis com o princípio da liberdade de escolha dos cidadãos, a liberdade do criador no exercício do seu ofício ou atividade de criação e venda de animais domésticos, o princípio da função social da propriedade sobre o animal doméstico, o princípio da livre concorrência e com o dever de proteção da fauna, na qual se inserem os cães e gatos, contra a mutilação (castração compulsória), crueldade e a extinção.
Já à vista do sumariamente relatado e antes mesmo de adentrar a análise da decisão do relator da ADI, ministro Flávio Dino, é possível constatar que, mesmo no que diz respeito à inconstitucionalidade em sentido material, apenas uma das teses que embasa a ação guarda relação direta com a proteção dos animais, visto que os demais, dizem respeito a princípios e direitos fundamentais das pessoas humanas, inclusive de viés econômico.
Quanto ao teor da decisão propriamente dito, destaca-se que, pelo menos para o efeito de enfrentar o pedido de concessão de provimento liminar, não houve enfrentamento dos argumentos advogando a inconstitucionalidade em sentido formal, ou seja, por violação das regras constitucionais sobre a repartição de competências federativas.
Da mesma forma, a decisão não se debruçou sobre a maior parte das teses veiculadas pelos autores da ação direta, limitando-se a analisar a alegação de violação do dever constitucional da proteção da fauna, da proibição de crueldade com os animais e da vedação de extinção de espécies, bem como o pleito da necessária concessão de prazo para permitir a adaptação aos parâmetros estabelecidos pela lei.
Note-se, contudo, que tratando-se de decisão em sede de cautelar, outros argumentos esgrimidos nos autos deverão (ou deveriam?) ser levados em conta pelo STF, pelo menos quando do julgamento do mérito. De qualquer sorte, independentemente da eventual procedência das demais teses manejadas, andou bem o relator ao focar na questão da proteção dos animais, porquanto, no que diz respeito a inconstitucionalidade material, é este, s.m.j., o principal ponto a ser enfrentado e equacionado.
Dignidade animal
Na sua fundamentação, o relator bem pontua que a alteração compulsória, indiscriminada e artificial da morfologia dos cães e gatos, sem considerar suas características e situações específicas, viola a dignidade desses animais, pois pode comprometer não apenas a integridade física, como a própria existência das raças.
De acordo com o ministro Flávio Dino, “há cada vez mais um consenso filosófico, social, cultural e jurídico de que cães e gatos devem ser reconhecidos como seres vivos sensíveis. Conforme observado pela eminente ministra Rosa Weber, em voto proferido na ADI 4.983, “O atual estágio evolutivo da humanidade impõe o reconhecimento de que há dignidade para além da pessoa humana, de modo que se faz presente a tarefa de acolhimento e introjeção da dimensão ecológica ao Estado de Direito.”urn:uuid:80b51627-0009-490e-ad72-95b95fecbde8
Ainda segundo o relator, “da mesma forma, também são proibidas as práticas que prejudiquem o bem-estar animal, que é “o estado mental e físico positivo relacionado à satisfação das necessidades fisiológicas e comportamentais do animal, bem como suas expectativas” (…) “existem estudos científicos que demonstram que a castração precoce, generalizada e indiscriminada de cães e gatos, sem considerar suas características individuais, aumenta significativamente os riscos de má formação fisiológica e morfológica, além de favorecer doenças que prejudicam as espécies e comprometem suas futuras gerações”.
Calha sublinhar que o relator da ADI recorreu a estudos científicos abalizados para dar maior embasamento às suas conclusões, destacando-se aqui estudo publicado na revista Frontiers in Veterinary Science, de acordo com o qual “a castração precoce pode aumentar significativamente os riscos de displasia, problemas nas articulações, cânceres e incontinência urinária dos cães e que o momento adequado à realização do procedimento varia de acordo com cada raça”.
Alinha-se com tal entendimento, a conclusão do Parecer Técnico sobre os Riscos da Castração Pediátrica em Cães, de autoria do doutor Alexandre Rodrigues, acostado aos autos, no sentido de que a castração precoce de cães apresenta riscos significativos que demanda cuidadosa avaliação individualizada e deliberação conjunta do proprietário e do veterinário a respeito da conveniência e necessidade da castração e do momento oportuno para a sua realização.urn:uuid:bded12cb-3e57-4425-850c-7a62d088414b
A decisão ainda reconhece a necessidade do estabelecimento de um prazo razoável para que canis e gatis possam se adaptar de modo seguro e adequado ao novo regramento legal, em homenagem aos princípios da segurança jurídica e da proteção à confiança legítima.
Nada obstante se trate de uma decisão em sede de cautelar, a demandar confirmação, é possível consignar que a prevalecer o entendimento já antecipado pelo ilustre relator da ação direta, o STF poderá estar dando mais um importante passo no sentido de consolidar a tese de que, não apenas a dignidade da pessoa humana tem uma dimensão ecológica, como também a vida não humana, designadamente a dos animais não humanos, deve ter sua dignidade reconhecida, respeitada e protegida, o que, ao fim e ao cabo, significa que os animais, de modo similar aos seres humanos, têm um valor intrínseco, não meramente instrumental. Até que ponto isso já permite inferir que o STF virá a reconhecer que os animais não humanos são também titulares de direitos, inclusive de natureza fundamental, ainda resta em aberto.
O que se espera, nesta quadra, é que por ocasião do julgamento do mérito, a decisão ora sumariamente apresentada seja confirmada, permitindo ao STF escrever mais um capítulo de uma história que, em termos substanciais, tem sido favorável à proteção do ambiente em geral, e dos animais em particular.