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O Projeto de Lei de Licenciamento Ambiental – uma análise propositiva

Paulo de Bessa Antunes
07/08/2025
Em coautoria com Priscila Artigas.
O projeto de lei (PL) do licenciamento ambiental nº 2159/2021 (Lei Geral do Licenciamento Ambiental – LGLA), cuja origem é o PL 3729/2004, tramitou perante o Congresso Nacional por 21 anos.
Aliás, não seria exagerado dizer que não há tema ambiental no Brasil tão debatido quanto o licenciamento ambiental. Em nossa opinião trata-se de uma distorção que não é nova em nossa sociedade que valoriza mais a forma do que o conteúdo. Neste ponto, é preciso esclarecer que a proteção ambiental não se faz unicamente pelo direito administrativo processual ambiental (licenciamento), mas também pelo direito material, tal como expresso, por exemplo, na lei da Mata Atlântica ou no Código Florestal. Qualquer que seja o processo ou metodologia adotada no licenciamento ambiental, tais leis são de observância obrigatória. Interpretação diversa é juridicamente incorreta. O licenciamento ambiental cumpre o papel de definir, em concreto, como um empreendimento ou atividade observará as regras contidas no direito ambiental material.
Seria inclusive importante incluir neste debate que o bom licenciamento ambiental exige, mais do que novas normas, órgãos licenciadores bem estruturados com servidores suficientes e treinados para os desafios que esse processo impõe. O sucateamento decorrente da falta de investimentos nos órgãos que compõem o Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA não será resolvido com uma nova norma.
O licenciamento ambiental tem as suas origens remotas no Decreto-Lei 1.413/1975 que dispôs sobre o controle da poluição por atividades industriais; posteriormente a Lei 6.938/1981 que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), em seu artigo 9º, III e IV instituiu a avaliação dos impactos ambientais e o licenciamento ambiental como instrumentos da PNMA, ou seja, como meios utilizados para a concretização de tal política. Em nível federal, o licenciamento ambiental é, basicamente, regulado por normas administrativas e não por lei. É relevante anotar que, mesmo antes da edição da PNMA, muitos estados já praticavam o licenciamento ambiental, segundo normas de seus direitos internos.
A Constituição Federal de 1988 (CF), em seus artigos 23, 24 e 225 – em especial – dispôs amplamente sobre proteção ambiental, estabelecendo um sistema de repartição de competências legislativas e administrativas que, é preciso reconhecer, se revela pouco claro e capaz de suscitar controvérsias legislativas relevantes.
No caso do PL da LGLA todas as dificuldades criadas pela repartição constitucional de competências saem à luz do dia, como demonstraremos. O § 1º do artigo 24 da CF limita-se a dispor que: “[n]o âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.” A Constituição, no entanto, não esclarece o que são normas gerais e não há em nossas leis uma definição normativa sobre o conceito de normas gerais. Veja-se que a “identificação de uma lei federal como lei geral nem sempre é uma tarefa fácil, pois raras são as leis que se assumem como leis gerais”.3
A jurisprudência tem se dividido relativamente à compreensão do que seria uma norma geral. A primeira das tendências é de natureza centralizadora e que tende a identificá-la como um dispositivo de aplicação uniforme no País. Este entendimento é bem ilustrado pelo voto do Ministro Ayres Britto na ADin 3645/PR, “norma geral, a princípio, é aquela que emite um comando passível de uma aplicabilidade federativamente uniforme”. Em sentido radicalmente diverso está a manifestação do Ministro Carlos Velloso, proferida nos autos da ADIn-MC 927-7/RS, verbis:
[p]enso que essas “normas gerais” devem apresentar generalidade maior do que apresentam, de regra, as leis. Penso que “norma geral”, tal como posta na Constituição, tem o sentido de diretriz, de princípio geral. A norma geral federal, melhor seria dizer nacional, seria a moldura do quadro a ser pintado pelos Estados e Municípios no âmbito de suas competências.
Aqui é preciso esclarecer que o nosso posicionamento é no sentido de prestigiar a concepção de que a LGLA deveria ser uma lei quadro, isto é, uma orientação com diretrizes a serem seguidas pelos integrantes da federação, de acordo com as suas necessidades regionais e locais. Não é razoável que uma lei federal imponha aos estados um modelo único de licenciamento ambiental que, como se sabe é um “procedimento administrativo destinado a licenciar atividades ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental” (Lei Complementar 140/2011, artigo 2º, I), quando as realidades regionais, institucionais, financeiras, técnicas e ambientais são extremamente diversas.
De fato, a competência legislativa concorrente permite a competência suplementar, significando o poder dos estados de formular normas desdobrando o conteúdo de princípios ou normas gerais ou destinadas a suprir a ausência ou omissão destas. A bem ver,
a descentralização de competências pela Constituição Federal – comum para proteção ambiental e concorrente para legislar sobre o mesmo assunto – tem, ao que parece, quatro principais razões: (i) a necessidade de ampla fiscalização em relação a atos danosos ao meio ambiente; (ii) em um país de dimensões continentais, as diferentes regiões apresentarão diversas realidades sociais, ambientais e econômicas; (iii) os benefícios da proteção ambiental variam sobremaneira ao longo do país, bastando considerar que os limites para a emissão gasosa no Estado de São Paulo trará benefícios que não serão sentidos quando impostos ao Estado do Mato Grosso; e (iv) os custos para alcançar um determinado parâmetro de proteção ambiental variam substancialmente de região para região.4
Uma ressalva, no entanto, é necessária: quando se trata de normas protetoras do meio ambiente, a intervenção federal é bem-vinda para evitar certas patologias evidenciadas nas normatizações estaduais.
Uma dessas patologias reside no fato de os estados pretenderem estabelecer padrões inferiores de proteção ambiental, buscando incentivar a instalação de indústrias, aumentar a oferta de empregos e a arrecadação de tributos.5
Visão geral
O PL rompe com o modelo de licenciamento trifásico instituído pelo Decreto Federal 88.351/19836 que criou as Licenças Prévia, de Instalação e de Operação, ao admitir toda uma série de novas licenças ambientais, tais como: (1) Licença Ambiental Única (LAU); (2) Licença por Adesão e Compromisso (LAC); (3) Licença de Operação Corretiva (LOC); e, Licença Ambiental Especial (LAE). À exceção da LAE, as demais licenças, mesmo que com denominações um pouco modificadas, já se encontram pressentes em diversos ordenamentos estaduais e municipais.
Há previsão de procedimentos específicos para o licenciamento ambiental que são os seguintes: (1) ordinário para a modalidade trifásica; (2) procedimento simplificado para as modalidades: (a) bifásica; (b) de fase única; ou (c) por adesão e compromisso; (3) corretivo, com possibilidade de aplicação da modalidade por adesão e compromisso e, (4) especial para atividades ou empreendimento estratégicos. O licenciamento trifásico, em nossa opinião, somente se justifica para empreendimentos de grande porte.
O STF já firmou o entendimento de que a simplificação do licenciamento ambiental apenas é possível para empreendimentos de pequeno ou baixo impacto. Nesse sentido: a ADI 6618 (Relator Min. Cristiano Zanin7) define que a Lei 15.434/2020 do Estado do Rio Grande do Sul, não poderia contrariar os termos do art. 12, § 1° da Resolução CONAMA 237/1997, critério não cumprido pela Licença Única (LU) e a Licença Ambiental por Compromisso (LAC), estabelecidas, respectivamente, nos arts. 54, IV e VI” da norma meridional. Na mesma linha, o RE 1264738/SC (Relator Ministro Luiz Fux8), em que se concluiu que
os estados membros podem complementar a legislação federal em matéria de licenciamento ambiental, mormente no que se refere a procedimentos ambientais simplificados para atividades e empreendimentos de pequeno potencial de impacto ambiental.
Evidentemente que o PL, uma vez convertido em lei, é norma de hierarquia superior à Resolução do Conama; dessa maneira, é razoável supor que, em se tratando de empreendimentos de pequeno “potencial degradador” tanto a LAU como a LAC atendem aos requisitos constitucionais. Chama a atenção, no entanto, que o PL prevê a possibilidade de a LAC ser aplicável para empreendimentos ou atividades de médio potencial poluidor, o que certamente colide com a posição já indicada do STF.
O § 6º do artigo 5º do PL admite que “[a]s licenças ambientais podem, a critério da autoridade licenciadora, contemplar o objeto das autorizações de supressão de vegetação e de manejo de fauna, observada a legislação pertinente.” A medida é salutar, pois não faz sentido que o órgão ambiental emita uma licença ambiental para depois emitir a autorização para a supressão de vegetação.
A questão da dispensa de licenciamento ambiental é tema que tem gerado muita controvérsia e discussões que, em boa parte dos casos, não se sustentam. É importante observar que o licenciamento ambiental é exceção e não regra, pois somente estão sujeitas ao licenciamento ambiental “os empreendimentos e as atividades que sejam “utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental”; logo, a regra é que as atividades econômicas não estejam submetidas ao licenciamento ambiental. Para que uma atividade ou empreendimento sejam ambientalmente licenciáveis é necessário que seja capaz de degradar o ambiente. Essa regra, no entanto, se descaracterizou de tal forma que os órgãos de controle ambiental emitem “certidão declaratória de não sujeição da atividade ou do empreendimento ao licenciamento ambiental”, o que, na prática, significa uma presunção de que toda e qualquer atividade é capaz de causar degradação ambiental.
O PL compila em grande parte disposições que já estavam regulamentadas em legislação dispersa. É o caso, por exemplo, da limitação imposta para as condicionantes ambientais, que não poderão exigir a mitigação ou compensação de impactos ambientais causados por terceiros e tampouco de medidas para suprir deficiências ou danos decorrentes de omissões do Poder Público.
Tal restrição já está estabelecida na Portaria Interministerial nº 60/2015, editada para dispor sobre os procedimentos de órgãos intervenientes no processo de licenciamento ambiental federal. Da mesma forma, a Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019) veda a imposição de medidas compensatórias ou mitigatórias abusivas, assim entendidas aquelas que se mostrem sem nexo (relação de causa e feito) com o impacto e, ainda, sem razoabilidade ou desproporcionais.
Não obstante, são conhecidos casos de grandes empreendimentos que foram obrigados a implantar obras de saneamento, construção de hospitais, escolas e postos de saúde, assumindo obrigações típicas do Poder Público, sem que isso tivesse uma efetiva relação com os impactos que foram causados ao meio socioambiental.
Diante disso, o PL 2.159/2021 é bem-vindo ao limitar a imposição de condicionantes que contemplem exigências desproporcionais e sem nexo de causalidade com os impactos efetivamente gerados. O projeto contém uma regra específica que impede que tais empreendimentos arquem com medidas para suprir deficiências ou danos decorrentes de omissões do poder público.
Da mesma forma, o PL uniformiza as regras para atuação dos órgãos intervenientes (agora, chamados de autoridades envolvidas). Os prazos de manifestação estão bem definidos, como também a consequência para eventual omissão (que será a continuidade do trâmite processual). Já havia regras nesse sentido no ordenamento jurídico (LC 140/2011 e, em âmbito federal, a Portaria Interministerial 60/2015) que, contudo, deixavam margens para dúvidas acerca, por exemplo, da vinculação ou não da anuência dos órgãos intervenientes no processo de licenciamento. Há diversos casos, aliás, de órgãos estaduais que não chamam a intervenção de órgãos como a Funai e o Iphan por falta de regulamentação acerca de sua atuação no processo. Tais situações passam a ser claramente regradas pela nova norma geral do licenciamento ambiental.
A participação popular no licenciamento está assegurada por meio de 4 instrumentos: (1) audiência pública: modalidade de participação no licenciamento ambiental, de forma presencial ou remota, aberta ao público em geral, na qual deve ser apresentado, em linguagem acessível, o conteúdo da proposta em avaliação e dos respectivos estudos, especialmente as características da atividade ou do empreendimento e de suas alternativas, os impactos ambientais e as medidas preventivas, mitigadoras e compensatórias, com o objetivo de dirimir dúvidas e de recolher críticas e sugestões; (2) consulta pública: modalidade de participação remota no licenciamento ambiental, pela qual a autoridade licenciadora recebe contribuições, por escrito e em meio digital, de qualquer interessado; (3) reunião participativa: modalidade de participação no licenciamento ambiental, de forma presencial ou remota, pela qual a autoridade licenciadora solicita contribuições para auxiliá-la na tomada de decisões; e (4) tomada de subsídios técnicos: modalidade de participação presencial ou remota no licenciamento ambiental, pela qual a autoridade licenciadora solicita contribuições técnicas a especialistas convidados, com o objetivo de auxiliá-la na tomada de decisões.
Apesar das garantias de participação popular, o PL não prestigia os conselhos de meio ambiente. Por exemplo, o PL prevê que a definição do porte da atividade ou do empreendimento, como também o potencial poluidor, serão estabelecidos pelo ente federativo competente pelo licenciamento ambiental (conforme a LC 140/2011). Ou seja, caberá ao Poder Executivo de cada ente federativo (União, estados e municípios) estabelecer a lista das tipologias de empreendimentos que se encaixam na LAC, o que significa que tais listas podem ser alteradas a cada gestão e ao gosto de cada governante. Com mais sensatez, seria salutar que tais definições derivassem dos Conselhos de Meio Ambiente, o que atenderia o princípio da participação popular, balizador do Direito Ambiental.
Há pontos do PL que certamente exigirão apreciação de constitucionalidade pelo Poder Judiciário. O que, aliás, é muito natural em normas ambientais, em que se evidenciam incessantes conflitos de interesses entre o desenvolvimento econômico e a conservação e a preservação ambiental. Certamente, ver-se-á intensa judicialização em torno de algumas regras ali contidas. Isso, contudo, não deve ser obstáculo para a edição da norma geral.
Fato é que o ordenamento jurídico brasileiro necessita de uma norma geral para racionalizar a legislação brasileira em torno do licenciamento ambiental. Afinal, a proliferação de normas em todos os níveis da federação gera burocracia excessiva, elevados custos no processo, falta de clareza de procedimentos, alta atuação discricionária de agentes, superposição de competências e longo e desnecessário tempo para a implantação e operação de empreendimentos e atividades econômicas.
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NOTAS
1 Professor Titular da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio. 2002 Elisabeth Haub Award for Environmental Law and Diplomacy. Ex-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental – UBAAA. Advogado
2 Doutora e Mestre em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Conselheira e Presidente da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados de São Paulo. Professora do curso de pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade Federal do Paraná – UFPR. Advogada.
3 ANTUNES, Paulo de Bessa. Federalismo e competências ambientais no Brasil. 2ª edição. São Paulo: Atlas. 2015, p. 69.
4 REVESZ, Richard L. STAVINS, Robert N. Environmental Law and Policy. NYU Public Law Research Paper 82; NYU Law & Econ Research Paper 04-015; Harvard Public Law Working Paper No. 102; KSG Working Paper No. RWP04-023. Setembro/2004. Disponível em: <http://ssrn.com/ abstract=552043>. Acesso em: 03 ago.2025.
5 Artigas, Priscila Santos. Medidas Compensatórias no Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 257.
6 Posteriormente revogado pelo Decreto nº 99.274/1990.
7 STF, ADI 6618, Tribunal Pleno, Relator Min. Cristiano Zanin, Julgamento: 07/04/2025; Publicação: 07/04/2025
8 STF. RE 1264738/SC. Min Luiz Fus, DJ 08.09.2020.